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Obrigações na esfera internacional

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO “Os mais importantes autores brasileiros de Direito Internacional

15.2 Obrigações na esfera internacional

No âmbito do Direito Internacional Privado, as obrigações assumem aspectos peculiares e de solução nem sempre uniforme. Isso ocorre porque diferentes fatores contribuem para transformar as obrigações envolvendo agentes de nacionalidades diversas em relações complexas. Ressalte-se que tais situações são cada vez mais corriqueiras, tendo em vista a proliferação de serviços oferecidos pela Internet. Trata-se, por exemplo, de sujeitos que podem ter domicílios diferentes, nacionalidades distintas, local de constituição do contrato que não coincide com o da execução, lugar do imóvel objeto do contrato diferente do domicílio dos sujeitos, língua em que é redigido o acordo não é a mesma falada pelos contratantes, entre outras situações.

Amílcar de Castro lembra que, para propor direito único no julgamento das obrigações convencionais em direito internacional, os doutrinadores se dividem em oito grupos, cada um dos quais propondo um conceito foco: nacionalidade ou domicílio do credor ou do devedor, lugar da execução,

direito de escolha de cada parte e direito do foro.5

Outros critérios podem determinar a legislação aplicável aos contratos – o principal dentre os vínculos obrigacionais –, tais como a língua na qual o contrato está redigido, a escolha do foro ou tribunal arbitral, a aplicação de conceitos jurídicos de uma determinada ordem jurídica, as negociações das partes no período de formação do contrato e a lei escolhida para reger contratos anteriormente celebrados.6

O próprio lugar de cumprimento ou da execução do contrato, o mais adotado, pode apresentar incertezas. Contudo, observe-se inicialmente a principal virtude do critério do lugar da execução do contrato: estar a lex loci executionis materialmente conectada com os interesses das partes. Com efeito, há uma tendência secular no DIPr em localizar as relações jurídicas pelo elemento que manifestam

exteriormente ou, também dito, materialmente:7 daí a preponderância, por exemplo, do estatuto real ou forum rei sitae, em relação aos bens, ou da lex loci delicti, em relação aos atos ilícitos. Na América Latina, em especial nos países do Mercosul, o critério da lei do lugar da execução é adotado na Argentina (arts. 1.205 a 1.216 do CC), no Uruguai (art. 2.399 do CC) e no Paraguai (art. 297 do CC). Segundo Pocar, a lei do lugar da execução do contrato é bastante frequente na prática legislativa e jurisprudencial, constituindo-se o critério decisivo para a determinação da lei aplicável.8 Por outro lado, a caracterização do lugar da execução do contrato como critério geral resta afastado quando se verificam situações nas quais o contrato é executado em diversos lugares, ou quando tal lugar se apresenta indeterminado. Imaginem-se as dificuldades para dirimir controvérsias decorrentes do contrato de um piloto de Fórmula 1 brasileiro contratado por equipe italiana para trabalhar nos Estados Unidos, França, Austrália, Japão e Argentina.

Disso decorre a construção do conceito do lugar da execução principal (lieu d’exécution

principal), que, no caso da venda de bens móveis, pode ser o lugar do pagamento do preço, por exemplo.

Dessa forma, a previsibilidade e a segurança dessa solução acabam igualmente mitigadas. Assim, excetuando-se as hipóteses nas quais a jurisprudência acaba desenvolvendo corretivos para os critérios rígidos, o contrato será submetido a legislações diversas, cuja harmonização pode ser um processo difícil. Batiffol refere uma decisão da Corte Federal suíça, datada de 10 de junho de 1952, na qual foi estabelecida como lei aplicável ao contrato aquela do local da execução da prestação característica da obrigação, a fim de solucionar o impasse ocasionado pela diversidade de leis passíveis de aplicação, em virtude da lex loci executionis.9

De fato, dos vários ramos das relações jurídicas internacionais, talvez o Direito das Obrigações seja o que mais facilmente demonstre as fragilidades do método clássico de indicação da lei aplicável. Ainda que a ideia subjacente às regras aplicáveis a determinada situação jurídica seja a de aplicar uma – e apenas uma – lei ao caso concreto, sob pena de introduzir um desequilíbrio não desejado entre as partes interessadas na causa, podem as regras de conflito, inclusive as mais afinadas, provocar um

dépeçage (despedaçamento) das situações jurídicas conectadas a mais de um ordenamento jurídico.

Assim, as próprias regras de DIPr podem eventualmente criar incoerências.10

15.3 Autonomia da vontade

Tema polêmico no Direito das Obrigações e, com igual razão, na área do Direito Internacional Privado, é a autonomia da vontade. Em um primeiro momento é conveniente verificar a existência de duas liberdades essenciais na contratação internacional: a de escolher a lei aplicável ao contrato e a de eleger o foro ao qual as partes se submeterão para dirimir os litígios que possam eventualmente surgir. A

primeira tem conteúdo de direito material e permite que as partes indiquem, com intensidade variável, a legislação aplicável entre as ordens jurídicas com as quais o contrato estiver conectado. A segunda tem conotação nitidamente processual e se traduz em compromisso das partes de se submeterem a determinado órgão jurisdicional para exame das lides emergentes do contrato, baseando-se na previsibilidade do resultado e no prestígio da corte escolhida.11

A autonomia da vontade é defendida ou simplesmente aceita por muitos autores e igualmente rejeitada por outros tantos. Amílcar de Castro não a aceita, distinguindo preliminarmente autonomia da vontade de submissão voluntária (esta seria o caso do naturalizado, que tem de adotar os direitos e deveres impostos à sua nova condição). Afirma que Dumoulin, cuidando do regime matrimonial de bens, acabou “responsável pelo erro cometido” por autores dos séculos XVIII e XIX, que introduziram a ideia de autonomia da vontade na esfera do Direito Internacional Privado. Na verdade, para Dumoulin a vontade das partes, em matéria de contrato, seria soberana, o que não corresponderia à realidade, já que

“em direito não existe a suposta autonomia da vontade, pois o que há sempre é liberdade concedida pelo direito, e por este limitada”.12

Na mesma linha, soma-se Oscar Tenório, para quem a sustentação dos adeptos da doutrina da autonomia da vontade de que “se aplica a lei que as partes tacitamente escolheram ou a que preferiram presumidamente”,13 pode conduzir o intérprete a erros e equívocos. Referindo-se à classificação das leis em imperativas ou proibitivas e facultativas, lembra o limitado campo para a autonomia da vontade nas primeiras, sem falar nas restrições impostas pela ordem pública. Também Osíris Rocha se opõe à autonomia da vontade, considerando-a “uma impropriedade jurídica”.14

Há, entretanto, vasta doutrina posicionando-se em favor dessa teoria. A principal virtude apontada à autonomia da vontade está em atender aos reais interesses das partes envolvidas na relação,15 o que, muitas vezes, as conexões objetivas, tais como a da lei do lugar da formação ou a do lugar de execução do contrato, podem não realizar. Contudo, o real interesse das partes pode ser desvirtuado, na hipótese de envolver sujeitos vulneráveis, dando origem a abusos.16

Edgar Amorim vê a autonomia da vontade como princípio de escolha legalmente admitido.17 Acentuando que atualmente o Direito Público invade a área do Direito Privado, diminuindo o espaço para aplicação da autonomia da vontade, recorda o apogeu do instituto no começo do século XIX, com o liberalismo, e o seu posterior descrédito. Ainda observa que é cada vez menos intensa a aplicação da autonomia da vontade, tanto no âmbito do direito interno quanto no do direito internacional, sendo hoje limitada a presença desse instituto na legislação da maioria dos Estados.

No direito positivo brasileiro, a Introdução ao Código Civil de 1916 facultava às partes, em seu artigo 13, o direito de escolha da lei que regeria as suas obrigações. Em oportuno comentário sobre esse dispositivo, Carvalho Santos complementa que “em doutrina, pois, não se erra quando se diz que as partes têm inteira autonomia, sendo elas seu próprio legislador”.18

Haroldo Valladão admite a autonomia da vontade, em especial para as matérias referentes ao

fundo dos contratos e ao regime de bens do casamento. Esclarece que a autonomia da vontade se

submete à lei escolhida pelas partes, por intermédio de convenção expressa ou presumida (do pacto

tácito), decorrente de certas circunstâncias, como o estatuto do lugar onde contraíram e o domicílio

desses contraentes.19

Reafirmando que a vontade individual é hábil para escolher a lei competente em virtude de uma autorização ou delegação legislativa dada pela lei do DIPr, Valladão é enfático na defesa do instituto, lamentando que pensamentos estanques não compreendam que o DIPr tenha horizontes próprios, mais amplos e livres, adotando, quando razoável e justa, a vontade individual como elemento de conexão.20

Assim, não há como negar que a vontade das partes como determinante da lei aplicável ao contrato proporciona confiança, certeza, segurança e previsibilidade nas relações entre particulares. Evidentemente, tal pensamento tem como premissas básicas a boa-fé e a relativa simetria de entendimento, entre as partes, sobre a lei competente.

Ao mencionar a distinção entre autonomia da vontade e submissão voluntária, Amílcar de Castro afirma que Savigny se referia à segunda entendendo que a pessoa humana tem, por exemplo, a liberdade de fixar ou não domicílio em determinado Estado, mas, desde que o estabelece, submete-se voluntariamente ao direito aplicável aos domiciliados. Outro exemplo: a pessoa pode, ou não, adquirir imóveis em determinado país, mas se os adquirir submeter-se-á voluntariamente ao direito de propriedade desse Estado. Ademais, qualquer pessoa, em vez de contratar no próprio lugar de seu domicílio, pode preferir realizar o contrato em país estrangeiro, submetendo-se voluntariamente ao direito desse país. Mas, em qualquer desses exemplos, a pessoa não escolhe o direito, somente pratica o ato do qual depende a aplicação do direito. Segundo o autor mineiro, na lição de Savigny, é nesse sentido de submissão voluntária que se fala de autonomia da vontade na esfera do DIPr.21

Para Savigny, um dos pandectistas que operacionalizou a autonomia da vontade, o lugar do cumprimento do contrato é sempre determinado diretamente pela vontade das partes, de forma expressa ou tácita, e esse lugar determina a jurisdição especial da obrigação, que decorre sempre de uma submissão livre. Nesse sentido, ao desenvolver o estudo do DIPr, nele enfatiza a importância do ser humano na sua sistematização, pois a pessoa é o objetivo próximo e imediato sobre o qual impera a regra jurídica. Ela deve ser colocada acima de tudo na sua existência geral, como sujeito de todos os direitos, pois produz e concorre para produzir todas as relações jurídicas. Ademais, essa produção ocorre, na maior parte dos casos e nos mais importantes, graças à liberdade do ser humano.22

A jurista Nadia de Araújo,23 ao enquadrar a autonomia da vontade no DIPr como expressão de direitos de cunho subjetivo, estabelece relação entre o papel da vontade no âmbito das relações internacionais e o papel desempenhado nas relações de direito civil. Segundo a autora, no período em que não se encontrava positivada nas legislações jusprivatistas internacionais, a autonomia à vontade – escolha da lei aplicável pelas partes contratantes – foi entendida como expressão dos seus direitos subjetivos. Dessa forma, a vontade das partes permitia conferir força obrigatória às disposições legais de determinado ordenamento jurídico. Tal função da vontade é a mesma apresentada pela teoria da vontade na formação dos contratos civis.24 Enquanto para a teoria da vontade no plano da formação dos contratos é a vontade que dá força obrigatória aos contratos, no plano das relações internacionais é a força obrigatória da vontade que faz valer as disposições legislativas de determinado ordenamento.

Contudo, o desenvolvimento da indústria e a urbanização, dentre outros fatores, permitiram observar que a desigualdade econômica entre as partes contratantes levava à opressão do mais forte sobre o mais fraco, acarretando a necessidade de intervenção do legislador para corrigir e regular essas diferenças. Assim, concluiu-se pela necessidade de diminuição da liberdade contratual. A partir desse entendimento, surgem as concepções objetivistas, que defendem a primazia da lei, cabendo-lhe delimitar o império da vontade ao estabelecer os seus limites. Por isso, Batiffol, ao filiar-se aos objetivistas, refere que a aceitação da autonomia da vontade decorreu da escolha do direito positivo em valorizá-la.25

Nadia de Araújo refere que, na atualidade, há igualmente duas posições quanto ao enquadramento da autonomia da vontade: para os partidários da tese subjetivista, a vontade tem por finalidade descartar certas disposições imperativas da lei normalmente aplicável; enquanto que para os objetivistas, a vontade teria uma função de conexão, constituindo, na verdade, indicação da localização da lei escolhida pelas partes para reger o contrato. De qualquer maneira, lembra que atualmente a discussão sobre a

legitimação da autonomia da vontade perdeu muito de seu atrativo, na medida em que convenções internacionais permitiram expressamente essa faculdade às partes na escolha da lei contratual.26 No que tange ao caminho percorrido até a positivação do princípio da autonomia da vontade, nos países de tradição romano-germânica, ressalta-se a importância da posição adotada pela jurisprudência para a afirmação do princípio como regra de conexão aos contratos internacionais. O marco encontra-se no caso American Trading Co., julgado pela Corte de Cassação francesa em 1910, cuja decisão afirmou que a lei aplicável aos contratos seria aquela que as partes haviam adotado. Enquanto isso, o princípio começava a ser aceito por outros tribunais europeus, até ser positivado, com inegável auxílio da doutrina, na Convenção de Roma de 1980.27

A admissão da autonomia da vontade nas relações contratuais internacionais deu-se também nos países do common law, a exemplo dos Estados Unidos, que adotaram o princípio a partir do Restatement

Second. Assim, o sistema passou a ter duas regras: a) as partes podiam eleger a lei aplicável ao

contrato; e b) na falta de escolha, dever-se-ia aplicar a lei do Estado com o qual o contrato e as partes possuíssem a relação mais significativa. Contudo, essa escolha da lei aplicável não estava de todo privada de limites, uma vez que o Restatement Second estabeleceu que as partes não poderiam escolher uma lei que não tivesse alguma relação com o contrato.28

No continente americano, onde é ausente o princípio da autonomia da vontade nos países do Mercosul, Nadia de Araújo entende que a codificação do DIPr se constitui em um dos fatores imprescindíveis para se atingir a integração econômica: sem uma uniformização jurídica não se pode fazer uma integração econômica ou política, sendo necessário garantir uma base normativa comum, o que ocorrerá por meio da CIDIP V,29 que estabelece a autonomia da vontade como principal elemento de

conexão da lei, não colocando qualquer limitação ao seu uso em contratos realizados com consumidores.

No âmbito das Convenções Internacionais, de maneira geral, a aceitação do princípio é ampla: Convenções de Roma e de Viena, de 1980; Convenções sobre a lei aplicável às vendas de caráter internacional de objetos móveis corporais, de 1955, e lei aplicável aos contratos de vendas internacionais de mercadorias, de 1986, ambas realizadas sob os auspícios da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado; e CIDIP V. Essa última Convenção, além do Brasil, foi assinada pela Bolívia, Uruguai e Venezuela na data de sua conclusão, em 17.03.1994, sendo firmada pelo México, país- sede da conferência, em 27.11.1995.30

Se houver um desequilíbrio de poder negocial entre os contratantes, a autonomia da vontade na escolha da lei que deve regular o contrato nem sempre assegurará ao contratante mais fraco uma verdadeira liberdade de escolha. Em geral, a doutrina aponta como necessária a limitação da autonomia da vontade em contratos internacionais que envolvam partes tipicamente fracas.31

Além disso, conforme Bernard Audit, quando a regra de conflito faz da vontade das partes a conexão, ela não realiza uma função unicamente localizadora: a adoção da autonomia procede da ideia de se tornar mais de acordo com os interesses das partes, em todas as áreas, inclusive no comércio internacional em matéria puramente contratual. Assim, embora não se trate de justiça substancial pura, deixa-se aos contraentes a tarefa de escolher qual a lei mais apropriada para reger a relação.32

Portanto, pode-se afirmar que a autonomia da vontade no DIPr também representa a afirmação do ser humano perante o Estado.33 Seu reconhecimento foi o primeiro passo no sentido de valorizar a pessoa no DIPr, e não simplesmente a lógica dos países. Se o individualismo não tivesse se desenvolvido na órbita internacional não teria sido possível reconhecer que entre os seres humanos há conflitos e que os Estados nada mais são do que um conjunto de pessoas: não pode haver tanta diferença entre os países e os cidadãos. Se os Estados são conjuntos de pessoas agindo, os valores pessoais, individuais, de

dignidade de todos os seres humanos, devem ser reafirmados.

A discussão acerca da autonomia da vontade na nossa disciplina permite retomar uma discussão que permeia o DIPr contratual desde seus primórdios. Ocorre que as dificuldades da aplicação da lex loci

executionis fizeram com que a jurisprudência desenvolvesse a ideia da “prestação característica” para

corrigir a possibilidade de dépeçage (fracionamento, mecanismo pelo qual um contrato ou uma instituição é dividido em diferentes partes, que serão, cada uma delas, submetidas a leis diversas).34 Assim, um dos argumentos favoráveis à adoção da autonomia da vontade em DIPr, segundo já ressaltado, foi exatamente que as partes pudessem escolher a prestação característica; em outras palavras, que elas determinassem a lei que estivesse mais conectada a seus interesses. Daí o surgimento das conexões alternativas, como a dos vínculos mais estreitos, adiante analisada, a fim de determinar a lei aplicável na falta de escolha.