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PESSOAS NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO “A pessoa humana é o ponto de partida e o ponto de chegada do

Direito Internacional Privado. Ponto de partida, porque historicamente as normas de conflito são aplicadas quando os seres humanos ou suas relações jurídicas transpõem as fronteiras nacionais. Ponto de chegada, porque os novos rumos de nossa disciplina são traçados pela proteção dos direitos humanos e a identidade cultural dos Povos” (Sílvio Battello).

11.1 Considerações iniciais

Consideramos oportuno inserir nesta obra capítulo dedicado especificamente ao ser humano no Direito Internacional Privado. Embora alguns temas, como a tutela e a curatela, costumem ser estudados em outros segmentos – no caso, no Direito de Família – vamos abordar agora a personalidade e institutos correlatos, dada a relevância que merecem na atualidade.

A denominação do ser humano na seara jurídica é variada, sendo identificado como pessoa humana, pessoa natural, pessoa física, pessoa individual, pessoa de existência visível, pessoa, indivíduo e homem.1 Algumas dessas designações são mais usadas, de acordo com a preferência de quem se ocupa do tema. Nosso Código Civil (CC/2002) emprega pessoa, pessoa natural e indivíduo (arts. 1º a 9º). Usaremos, o mais das vezes, pessoa, pessoa física ou ser humano.

11.2 Personalidade

Em um primeiro momento, pode-se entender a personalidade como a prerrogativa de adquirir e exercer direitos, portanto ser sujeito desses direitos. Além de direitos, também lhe é inerente a obrigação de cumprir deveres que a ordem jurídica impõe. Nessa tessitura, personalidade e capacidade têm conceitos muito próximos.2

Personalidade não se confunde necessariamente com ser humano, bastando lembrar as denominadas

pessoas jurídicas, que podem ser de direito público, interno e externo, e de direito privado (CC/2002,

arts. 40 a 69). Assim, entes como organizações, sociedades e fundações, cada um observando as disposições exigidas por lei, podem adquirir direitos e cumprir obrigações, merecendo tratamento semelhante ao atribuído à pessoa física. No sentido oposto, quanto à pessoa física, vem à tona a lembrança sempre lamentada da escravidão, nefanda instituição que permeou a história universal, pela qual seres humanos eram degradados à condição de coisa, não gozando, por conseguinte, de personalidade.

Sobre a proximidade conceitual entre capacidade e estado, Osíris Rocha acentua que estado é o conjunto de direitos que uma pessoa tem por possuir determinada posição no grupo social, como estado de casado, de filho, de menoridade e de nacional, enquanto personalidade é o pressuposto para adquirir esse estado.3

No caso brasileiro, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preconiza que a legislação do país em que a pessoa tem seu domicílio determina o começo, bem como o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família (art. 7º).

11.2.1 Começo da personalidade

O início da personalidade é tema importante e atual na esteira do avanço científico e do surgimento de novas formas de concepção humana. Para a teoria natalista, o início da personalidade se dá com o nascimento com vida, ao passo que para a teoria concepcionista, defendida por familiaristas e humanistas em geral, a concepção determina o começo da personalidade. A postura natalista ainda predomina nos ordenamentos jurídicos, exigindo por vezes a chamada viabilidade do recém-nascido, esperando que ele complete, por exemplo, vinte e quatro horas de vida, ou que disponha de figura ou forma humana (como dispunha o Código Civil espanhol, em seu art. 30, até a reforma que atualizou esse dispositivo a partir de 23.07.2011).

No Brasil, que adota a teoria natalista, o Código Civil de 2002 (art. 2º), a exemplo do anterior, determina que esse início ocorra no momento do nascimento com vida, assegurando, desde a concepção, os direitos do nascituro. No Chile, a personalidade também começa ao nascer, ao separar-se

completamente de sua mãe (art. 74 do CC). A teoria concepcionista está presente no Código Civil

argentino, artigo 70, que atribui o começo da personalidade ao momento da concepção, a exemplo do Paraguai (art. 28 do Código Civil do País).

A teoria adotada para o começo da personalidade tem relevância para o Direito Internacional Privado, especialmente no direito sucessório, uma vez que pode gerar substancial alteração no destino de patrimônios. Assim, a perda de gestação por mulher domiciliada em país que adota a teoria concepcionista permite que ela receba bens pertencentes ao pai do nascituro, falecido anteriormente a esse even-to, o que não ocorreria se seu domicílio ocorresse em país que reconhece a teoria natalista.

11.2.2 Término da personalidade

Como visto no item anterior, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece o fim da personalidade por intermédio da lei do domicílio da pessoa. Em tese, isso ocorre com a morte natural do ser humano, única forma em nosso Direito que põe termo à personalidade. O momento exato do falecimento pode apresentar divergências nas legislações, presentes os avanços científicos no campo médico.

Institutos como morte civil (óbito jurídico de pessoa viva), certas condenações penais e morte

religiosa (renúncia voluntária ou forçada a todos os direitos, inclusive sucessórios, pela pessoa que

ingressa em ordem religiosa), ainda presentes em algumas legislações, são contrários à nossa ordem pública. A personalidade também cessava pela escravidão, hoje formalmente extinta em todos os países.

11.3 Comoriência

As situações em que várias pessoas falecem ao mesmo tempo, sem possibilidade de identificação da precedência do fato, podem gerar lides no campo do DIPr. As tragédias aéreas, nas quais morrem centenas de pessoas, caracterizam a comoriência, que também ocorre em catástrofes naturais com falecimentos concomitantes.

Nesses acidentes, o número de vítimas com domicílio, herdeiros e bens em mais de um país acaba gerando processos que podem ser de difícil solução. A aplicação da lei do foro, solução que acaba prevalecendo quando ineficazes as conexões aventadas – domicílio, nacionalidade ou lugar do acidente, por exemplo – depende do local em que se procede à sucessão e da existência de bens em países diversos, recordando-se que os imóveis sempre são tratados pela legislação de sua situação. Há, como se observa, dificuldade prática de solução da lide por uma única lei.

sua filha, Cohn – refugiadas em Londres, em bombardeio durante a II Guerra Mundial. O viúvo da filha buscou parte da herança da sogra, alegando a presunção de morte da pessoa mais velha (direito inglês), contrário às ponderações do outro filho da senhora Oppenheimer, de que nesses casos os óbitos ocorrem ao mesmo tempo (direito alemão). O magistrado inglês decidiu que houve comoriência, não restando o que ser provado: o problema deixava de ser processual, afastando a lex fori, e no direito material a lei aplicável era a do domicílio das pessoas falecidas, portanto a lei alemã. Perdeu o genro seu pleito, já que a senhora Cohn, morrendo ao mesmo tempo em que a mãe, não chegou a ser herdeira dela.4

O Código Bustamante estabelece que as presunções de sobrevivência ou de morte simultânea devem ser reguladas pela lei pessoal do falecido em relação à sua sucessão, sempre que as provas sejam insuficientes (art. 29). O Código Civil brasileiro vigente (art. 8º) estabelece que, falecendo duas ou mais pessoas na mesma ocasião, sem possibilidade de averiguação se “algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”. As codificações civis da Espanha (art. 33) e do Chile (art. 79) também admitem que tais óbitos ocorreram no mesmo instante.

11.4 Ausência

Caracteriza a ausência o afastamento da pessoa do seu domicílio, sem notícia do local em que se encontra. Trata-se de situação originada por fatores distintos e que vem causar grande insegurança nos familiares e nos amigos. Cabe ao ordenamento jurídico garantir a preservação dos bens dessa pessoa em benefício dela própria, de seus herdeiros e de seus credores. Ao mesmo tempo deve ser formalizada a ausência, o que gera, por vezes, lide de Direito Internacional Privado.

No direito brasileiro, após um ano da arrecadação dos bens do ausente (realizada por curador nomeado pelo juiz), será declarada a ausência e aberta provisoriamente a sucessão (art. 26 do CC/2002). Transitada em julgado essa sentença de abertura, o testamento, se houver, será aberto cento e oitenta dias após a publicação pela imprensa e se procederá ao inventário e à partilha dos bens, como se o ausente fosse falecido (art. 28). Dez anos depois do trânsito em julgado dessa sentença, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas (art. 37 do CC/2002).

A preservação dos bens se dará com base na lei do foro, até pela necessidade de garantir esse patrimônio do ausente. Repita-se que os bens imóveis seguem a lei de sua localização.

11.5 Poder familiar

O chamado pátrio poder, denotativo da ascendência paterna sobre os filhos, vem cedendo lugar, há várias décadas, à maior participação da mãe, consagrando-se agora no direito brasileiro a figura do

poder familiar (arts. 1.630 a 1.638 do CC/2002), pelo qual a gerência das tarefas e encargos sobre a

prole é partilhada por ambos os genitores. Decorre desse benfazejo avanço que os direitos, como os deveres, não mais competem apenas a uma pessoa, sendo que o pai ou a mãe exercerá esse poder com exclusividade apenas na falta ou impedimento do outro (art. 1.631).

O instituto visa proteger o incapaz e não conferir direitos ao detentor desse poder, tal como ocorria no tempo dos romanos, razão pela qual a lei pessoal do filho ou a que lhe é mais favorável deve ser aplicada.5

No que tange ao DIPr, as conexões aventadas – domicílio ou nacionalidade dos pais ou do menor – não oferecem uma solução definitiva. Entendemos que a lei mais favorável ao menor deve ser a escolhida. Nessa tessitura, o Código Bustamante submete à lei pessoal do filho a existência e o alcance geral desse poder a respeito da pessoa e bens da criança, como as causas da extinção e recuperação do

mesmo poder (art. 69).

11.6 Tutela

Antes de estudar a tutela e a curatela no DIPr, cabe lembrar, com Werner Goldschmidt, os três problemas surgidos para a proteção dos incapazes: a lei que nos indica que pessoas podem ser consideradas incapazes; que país tem jurisdição internacional para protegê-las; e a lei que disciplina tal proteção, distinguindo os casos de tutela dos de curatela.6

Lafayette Pereira define tutela como “o poder conferido a alguém, em virtude de lei, para proteger a pessoa e reger os bens dos menores que estão fora do pátrio poder”.7 O tutor substitui os pais falecidos ou destituídos do poder familiar, o que pode ocorrer, por exemplo, em casos de condenação penal ou interdição por perda das faculdades mentais.

A tutela constitui-se em encargo civil atribuído a alguém por lei, por testamento ou pelo juiz, para que proteja o menor e administre seus bens. Poder-se-á deixar de nomear tutor quem, passível dessa investidura por sua lei pessoal, esteja condenado penalmente ou tenha conduta inaceitável, contrariando a

lex fori. Esclarece Clóvis Beviláqua que os tutores nomeados em um Estado, seguindo a lei pessoal do

incapaz, devem ser reconhecidos em toda parte e podem exercer sua autoridade sobre os bens do tutelado, onde quer que se encontrem esses bens.8

Segundo o caput do artigo 36 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/1990 – com redação da Lei n. 12.010/2009 –, “a tutela será deferida, nos termos da lei civil, a pessoa de até dezoito anos incompletos”. Trata-se da dicção do Código Civil de 2002, que reduziu a maioridade civil para dezoito anos. Apresenta-se a tutela sob três espécies: a) testamentária: atribuída por testamento; b) legítima: determinada por lei aos parentes consanguíneos do menor – ascendentes, preferindo o de grau mais próximo ao mais remoto, e colaterais até o terceiro grau (art. 1.731 do CC/2002); c) dativa: também decidida pela justiça, com nomeação de tutor, na ausência das anteriores.

Caracteriza-se sempre a tutela pela obrigatoriedade, gratuidade, generalidade e indivisibilidade com relação aos bens, não devendo o menor ter mais de um tutor. Deve ainda haver assídua vigilância das autoridades nas atividades do tutor.9 O Código Civil vigente disciplina pormenorizadamente o instituto da tutela nos artigos 1.728 a 1.766.

A norma brasileira de Direito Internacional Privado está contida no artigo 7º, § 7º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual o domicílio do tutor ou do curador se estende aos incapazes sob sua guarda. Assim, os direitos e deveres do tutor são regidos pela lei

domiciliar deste, a qual também regula os direitos do tutelado.

11.7 Curatela

A curatela é um encargo conferido a alguém, o curador, para que cuide, seguindo normas legais, dos interesses de pessoa que se encontra juridicamente impossibilitada de fazê-lo. Ainda, a curatela protege o interesse público da sociedade. Não coincidem as legislações quanto ao grau de incapacidade que sujeita a pessoa à curatela, com o que um ser humano, sob a proteção do instituto em uma ordem jurídica, pode não ser passível desse amparo em outro país.

No Direito brasileiro, onde a curatela tem regulamentação completa no Código Civil (CC/2002), estão sujeitos ao instituto o enfermo e o deficiente mental sem discernimento suficiente para a vida civil;

o que não pode exprimir a sua vontade por causa duradoura; o ébrio habitual e o viciado em tóxicos; e o pródigo (art. 1. 767). Também o nascituro, ser humano gerado enquanto se encontra no ventre materno, cujo pai falece e a mãe não detém o poder familiar, tem amparo curatelar (art. 1.779). A nomeação de curador, a exemplo do instituto da tutela, rege-se pela lei do domicílio da pessoa a ser investida. No caso do nascituro, será a lei pessoal da mãe (local de seu domicílio). Tal como a tutela, nossa norma de Direito Internacional Privado relativa à curatela está inserida na LINDB (art. 7º, § 7º), regendo-se pela lei do país onde o curador tem seu domicílio.

11.8 Ação de alimentos

Essa ação envolve direitos indispensáveis à própria sobrevivência de ser humano incapaz de provê- la, seja por idade – menor ou idoso –, enfermidade ou outro fator. Relações familiares menos harmônicas, como separação de cônjuges e abandono de filhos, são a principal fonte dessas lides. Ainda, as obrigações alimentícias podem originar-se de contrato, legado sucessório, responsabilidade extracontratual, nulidade de casamento e tutela, entre outros. A pessoa que, por parentesco ou vínculo similar, deve fornecê-las por vezes tem domicílio em território sob outro ordenamento jurídico.

Clóvis Beviláqua preconizava solução pela lei pessoal do alimentando ou pela lex fori, quando da sua impossibilidade.10 A proteção do credor alimentício deve ser o princípio básico que direciona as normas de direito aplicável. A causa da obrigação, porém, determina o alcance da solução e a própria delimitação das normas conflituais.11 Assim, obrigação alimentícia que tenha causa exclusiva em um contrato ou em uma norma sucessória será regida pelas disposições aplicáveis a essas relações jurídicas.

Reportamos o leitor ao capítulo oitavo desta obra, o qual se ocupa da homologação de sentenças estrangeiras, em que encontrará mais subsídios sobre o tema, incluindo Convenção da ONU sobre prestação de alimentos no estrangeiro, assinada em Nova Iorque em 1956.

RESUMO