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Limites à aplicação da lei estrangeira

APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO

7.4 Limites à aplicação da lei estrangeira

A lei estrangeira a ser aplicada – em tese apenas direito material ou substancial – não o será necessariamente na sua amplitude. Isso ocorre porque cada ordenamento jurídico tem o seu critério de aplicação do direito estrangeiro, preservando a ordem pública. Essa limitação foi chamada por Edgar Amorim de salvaguarda imunológica.10 Entre as limitações mais usadas, brevemente analisadas a seguir, estão a ordem púbica, a soberania nacional, os bons costumes, a fraude à lei, o favor negotii, o prélèvement, as instituições desconhecidas e as instituições abomináveis. 7.4.1 Ordem pública Nenhum país aplica a lei estrangeira quando esta viola a ordem pública interna, mesmo nos casos em que a norma estrangeira fosse a aplicável à relação jurídica.

No direito positivo brasileiro, o artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, preceitua que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. Em realidade, ordem pública é de difícil e controversa definição, variando ao sabor de interesses e ideologias no tempo e no espaço, uma vez que a lei não a define. Amorim considera-a como sendo “a soma dos valores morais e políticos de um povo”.11 Haroldo Valladão observa, com propriedade, que a noção de ordem pública “é fluida, relativíssima, que se amolda a cada sistema jurídico, em cada época, e fica entregue à jurisprudência em cada caso”.12 Para Jacob Dolinger, o princípio de ordem pública reflete a filosofia sociopolítica-jurídica de toda legislação, representando “a moral básica de uma nação e que atende às necessidades econômicas de cada Estado”.13

Muitos autores, como Irineu Strenger14 e João Baptista Machado,15 distinguem ordem pública interna (nacional, doméstica) de ordem pública externa (internacional, global), dicotomia que é rejeitada por outros estudiosos, como Oscar Tenório e Amílcar de Castro.

A doutrina, o mais das vezes, engloba na ordem pública a soberania nacional e os bons costumes. Esses últimos, em oportunas palavras de Clóvis Beviláqua, são “os que estabelecem as regras de

proceder, nas relações domésticas e sociais, em harmonia com os elevados fins da vida humana”16 (grifo acrescido).

Conceituamos soberania como o poder que, no plano interno, está legalmente acima de todos os outros e, na esfera internacional, se encontra em condições de igualdade com os dos demais Estados, não se subordinando a nenhum deles. Em outras palavras, soberania deve ser entendida como o poder que paira sobre todos os demais, o poder supremo, não admitindo outro nem mesmo igual. Inúmeros casos na jurisprudência exemplificam o princípio de ordem pública, limitando a aplicação da lei estrangeira, como o da sentença argelina que condenou mulher ao divórcio e à perda da posse e guarda do filho por não querer acompanhar o marido para fora da França, decisão inadmitida pela Corte de Poitiers; o da lei tunisina que não admite fixação de filiação não decorrente de casamento, resultando que o filho natural não pode nem pleitear alimentos; e o da lei mexicana que veda a cidadãos americanos o controle de negócios e de terras no México.17

Albergado no preceito da ordem pública, o Supremo Tribunal Federal brasileiro negou homologação a diversas sentenças de divórcio alicerçadas no repúdio islâmico. Tribunal de Nova Iorque rejeitou, por contrariar sua ordem pública, lei de Massachusetts que arbitrava em cento e cinquenta mil dólares indenização de nova-iorquino que lá morrera em acidente, por ser essa indenização em quinze

mil dólares em sua própria lei. No que tange a esse último exemplo, convém acentuar que os Estados norte-americanos dispõem de legislações próprias, com o que situação como essa aplica, excepcionalmente, postulados de Direito Internacional Privado.

Recordemos, finalmente, que o princípio de ordem pública é o mais empregado para limitar a

aplicação de lei estrangeira. 7.4.2 Fraude à lei

A fraude à lei é a prática, pelo ser humano, de um ato legal na forma e na aparência, mas que esconde a intenção de burlar a lei aplicável in casu a qual lhe seria desfavorável. A vítima na fraude à lei é a própria coletividade.

Caso frequente de fraude à lei é o do cidadão que transfere domicílio para outro país, onde exerce a

sua capacidade civil, assegurando o exercício de um direito que ainda não detinha em seu domicílio

nacional, em razão da lei ali vigente, retornando após. Era o caso, na vigência do Código Civil de 1916, de brasileiro de dezenove anos, relativamente incapaz em seu ordenamento jurídico, que transferia domicílio para o Uruguai, onde a capacidade plena ocorre aos dezoito anos de idade, o que lhe permitia praticar determinados atos da vida civil que no Brasil não lhe seriam possíveis.

Muitas vezes os casos de fraude não são questionados ou, mesmo o sendo, consegue o fraudador vê- la reconhecida como legal.

Ocorrendo a mudança intencional, em tema de estatuto pessoal, da nacionalidade ou do domicílio da pessoa, que busca colocar-se sob a influência de ordem jurídica diversa da que lhe seria originalmente aplicável, com o fim de fugir a um limite dessa lei, estará caracterizada a fraude à lei. Dessa forma, trata-se de mudança ardilosa, esquiva, artificial, evasiva, odiosa, escusa, condenável e maldosa de uma situação jurídica.

Werner Goldschmidt afirma que “a fraude à lei consiste em um duplo abuso de direito: a pessoa fraudadora abusa de um direito para burlar a finalidade de outra norma jurídica”.18 Entre os exemplos de fraude à lei cabe mencionar a conversão ao islamismo para sustar a obrigação de alimentos à ex-esposa e o proprietário que leva bens móveis para país onde o prazo para aquisição por usucapião é menor do que o de seu domicílio. Comprovar a fraude à lei é difícil, pois implica analisar a intenção do pretenso fraudador e isso, para alguns autores, envolve uma intromissão indevida do Judiciário no campo da consciência humana. Por outro lado, é oportuno referir a possibilidade legal de avaliar a intenção das pessoas, como na tipificação penal do crime tentado. 7.4.3 Favor negotii Segundo De Plácido e Silva, trata-se do “princípio de prevalência do negócio em favor daqueles que intervieram de boa-fé, quando uma das partes, sendo estrangeira, não tinha capacidade para fazê-lo, segundo sua lei nacional, desde que a lei local admita sua capacidade, se pertencesse ao país em que se encontra”.19

Assim, o contrato é válido, e o incapaz se obriga pelo cumprimento do ajustado, ainda que em desacordo com seu estatuto pessoal. O favor negotii tem sua aplicação na área do Direito Comercial.

Palavra francesa que significa literalmente “tirar antes”, sendo usada para indicar a primeira parte de uma peça teatral. No campo do DIPr representa um instituto que visa, em certas situações, beneficiar

o nacional em detrimento do estrangeiro. Embora visto como justo por alguns autores, consideramos

inadequado em nosso tempo esse princípio de aplicar a lei mais favorável ao nacional, pois qualquer resquício de xenofobia deve ser prontamente rejeitado.

O artigo 10, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em sua redação atualizada pela Lei n. 9.047, de 18.05.1995, indica um caso de prélèvement, pois limita a aplicação da lei estrangeira, como se vê: “A sucessão de bens de estrangeiro, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus” (grifo acrescido). É o que chamamos lei imperfeita, norma que privilegia uma parte em detrimento de outra, visando beneficiar o cidadão nacional, amparada no próprio texto constitucional (art. 5º, XXXI, da Carta Magna de 1988). Na verdade, a palavra francesa prélèvement e a expressão latina favor negotii significam a mesma coisa, ou seja, favorecer o nacional em detrimento do estrangeiro. Interessa-nos distinguir que o

prélèvement é mais abrangente, pois tem aplicação também no Direito Civil. 7.4.5 Instituições desconhecidas A diversidade de raças, origens, costumes, tradições, idiomas e religiões, entre os povos faz surgir, em certas ocasiões, institutos jurídicos peculiares a determinados ordenamentos jurídicos. Essas instituições dividem-se entre as simplesmente desconhecidas pela lex fori e as incompatíveis com a ordem internacional. As primeiras são ignoradas por força de elementos históricos na formação do direito interno e não representam limites para o DIPr. Por outro lado, as incompatíveis com a ordem internacional (embora compatíveis com a sua ordem jurídica interna) devem ser afastadas e serão estudadas no item seguinte.

Cabe referir, no primeiro caso, o noivado no direito italiano, o bem de família no Brasil, o trust do direito inglês e o desquite no antigo direito brasileiro, lembrando, ainda, institutos como o dote, os

esponsais e a hipoteca de bens móveis, que fazem parte de alguns ordenamentos jurídicos, inexistindo na

maioria das legislações.

Sugere Dolinger que a instituição desconhecida seja contornada por meio de adaptação a outra existente no foro, cujos efeitos sejam correspondentes ou semelhantes à instituição estrangeira desconhecida. Esse autor lembra que o desquite brasileiro era aceito na Europa como separação de corpos – instituto menos radical – e no Japão, que admitia o divórcio, cujos efeitos eram mais amplos. Ainda menciona juízo de Francisco Rezek, então Ministro do Supremo Tribunal Federal: “O só fato de

não conhecermos determinado instituto jurídico não impede a homologação de uma sentença

estrangeira.”20

No mesmo sentido, afirma Beat Rechsteiner que as instituições jurídicas desconhecidas são frequentemente detectadas quando se trata de reconhecer, no direito interno, atos jurídicos ocorridos no estrangeiro, em especial no direito de família e das sucessões, situação em que pode haver necessidade de adaptar esses institutos ao direito do foro.21

Muitos autores, por outro lado, consideram que “admitir uma instituição desconhecida equivale a conferir aos forasteiros mais direito que aos nacionais, e por isso deve a mesma ser repelida”, como assevera Luís Ivani Araújo.22

Salienta-se que não constitui limite à aplicação da lei estrangeira a falta de reconhecimento ou não existência de relações diplomáticas entre o país do foro e o Estado de cujo ordenamento faz parte a lei aplicável ao caso. Nesse sentido, o juiz brasileiro poderia aplicar a lei taiwanesa quando invocada por cidadão de Taiwan, embora esse país não seja reconhecido pelo Brasil. Seria um contrassenso aplicar ao caso a legislação da China continental (já que o Brasil reconhece apenas uma China), pois esse cidadão não está submetido ao ordenamento jurídico chinês.

Concluindo, pode-se afirmar que a instituição desconhecida merece um estudo apurado dos aplicadores do direito, buscando a efetiva intenção do autor por meio da interpretação teleológica, sistemática, sociológica e analógica do postulado, com o que se poderá encontrar motivo para adotá-la no julgamento da lide. 7.4.6 Instituições abomináveis Entre as instituições incompatíveis com o espírito do direito brasileiro, e que devem ser repelidas, as mais citadas são a poligamia, a escravidão e a morte civil. Para a maior parte da doutrina, na qual nos incluímos convictamente, a pena de morte se integra no rol das instituições abomináveis. Ainda convém referir a chamada morte religiosa, em que a pessoa que realizava votos em uma congregação renunciava aos bens mundanos.

Também é repelido pelos tribunais de muitos povos o repúdio, adotado no direito corânico, pelo qual o marido obtém a separação religiosa sem que a esposa seja consultada; a discriminação racial, de que foi lamentável exemplo o “apartheid” que vigorou na África do Sul durante muitos anos; a

separação das pessoas em castas e a condenação de alguém à indigência. Todas essas instituições

repugnam a consciência média dos povos civilizados.

A retorsão – ato pelo qual o Estado prejudicado por medida de outro utiliza em relação a ele atitude idêntica à que foi vítima –, forma egoísta e perversa da reciprocidade, não é admitida no Brasil, sendo lembrada a solicitação do Imperador D. Pedro II, que presidia a comissão que elaborava o Código Civil brasileiro, em 1889, de que “no Código se consignasse o que fosse mais justo, independentemente da reciprocidade”.23 A maioria dos países repele a retorsão.

Quanto à reciprocidade propriamente dita, mesmo legislações contemporâneas a admitem para determinadas questões jurídicas, como na sucessão, emancipação, direitos de família, entre outros, conforme explicita Haroldo Valladão, para quem a reciprocidade e a retorsão são anticristãs, constituindo a forma jurídica do egoísmo.24

RESUMO