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ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO “A história é a soma dos acontecimentos passados, experiência vivida

que acaba nos dando uma visão completa do pretérito com projeções no presente e no futuro” (Edgar Carlos de Amorim).

2.1 Considerações iniciais

O Direito Internacional Privado (DIPr) pode ser definido, em linhas gerais, como o marco jurídico de um país que indica qual o direito a ser aplicado nas questões que contêm um elemento estrangeiro. A partir dessa definição pode-se entender o motivo de essa disciplina ser chamada, na língua inglesa, de “conflito de leis” (conflict of laws). Em casos que envolvem um elemento estrangeiro, torna-se necessário definir questões como a lei e a jurisdição aplicáveis. Nesse sentido, o Direito Internacional Privado promove um diálogo entre culturas legais diferentes, pois pode estipular a aplicação da lei de um país em outro.

É consenso entre os estudiosos que na Antiguidade não existiram regras de Direito Internacional

Privado, uma vez que o estrangeiro era considerado hostil, não inspirava confiança e não praticava a

mesma religião, o que o transformava em potencial inimigo. As relações eram difíceis, como relata o exemplo bíblico – Gênesis, cap. 43, vers. 32 –, no qual um egípcio não podia comer pão com um estrangeiro.

O estrangeiro, nem em Roma, nem em Atenas, tinha direito algum, não podendo ser proprietário

nem casar, herdar, contratar ou praticar o comércio. Algumas legislações, como a chinesa, permitiam

até o sacrifício e a destruição do estrangeiro.1 Contudo, várias circunstâncias ensejavam relações entre os povos, como as expedições militares, os embates guerreiros e, especialmente, o intercâmbio comercial. Isso impunha o surgimento de algum tipo de justiça para os estrangeiros, já que o interesse econômico assim o exigia.

2.2 Grécia

O meteco, estrangeiro em Atenas, não tinha o status de cidadão, mas pagava uma taxa especial a fim de poder exercer atividades comerciais. Dispunha de uma judicatura especial, a polemarca, protegendo sua família e seus bens. Surgiu, aí, o próxeno, cidadão encarregado de orientar o estrangeiro em suas relações comerciais e zelar por seus interesses. A consequência dessas relações ensejou o surgimento de tratados entre as cidades, chamados asília, que seriam a origem dos tratados de DIPr,2 com o fim de proteger os súditos e resguardá-los contra violências. O meteco chegou a gozar de certos direitos

políticos e civis, sendo então chamado isótele.

2.3 Roma

Em Roma, o estrangeiro, a princípio vendido como escravo e tendo seus bens sequestrados, evoluiu para peregrino, com certos direitos, baseados no jus gentium. Em 242 a.C., surge o pretor peregrino, para solucionar as questões entre romanos e estrangeiros ou entre somente estes, desde que residentes em

Roma. O pretor exercia o antigo poder jurisdicional dos reis, sendo a autoridade suprema na administração da justiça e encarnando, na esfera de suas atribuições, a soberania do povo romano, podendo “também criar, ou transformar o direito (critérios de apreciação), se tal exigissem as necessidades da prática”.3 Também no Egito, no tempo de Amenófis III (1500 a.C.), firmaram-se alguns tratados de comércio com os babilônios e com os hititas. Na Bíblia, outrossim, há passagens simpáticas ao estrangeiro, como “não afligirás o forasteiro nem o oprimirás, pois forasteiro foste na terra do Egito” (Êxodo, cap. 22, vers. 20) e “se o estrangeiro peregrinar na vossa terra não o oprimireis” (Levítico, cap. 19, vers. 33). Inobstante tais legislações e preceitos, não há que se falar em DIPr nesses tempos. Como destaca Jacob Dolinger, os estrangeiros não participavam da vida jurídica, não admitindo os direitos locais cotejo com direitos estrangeiros, o que afastava qualquer possibilidade de conflito: existia apenas um complexo de normas de direito material,4 sendo absoluta a territorialidade das leis.

A invasão dos bárbaros no Império Romano, em 476 de nossa era, vai alterar essa situação. A partir de então passam a conviver, no mesmo contexto, pessoas de diferentes línguas, raças e condições econômicas e sociais.

Nesse ínterim, surge a personalidade das leis, por meio da qual cada ser humano será julgado pelas

leis de sua tribo, seu povo, sua nação. O romano, mais interessado no fator econômico, respeitava a lei e

os costumes nativos já quando de suas conquistas, como o atesta o próprio julgamento de Cristo, conduzido pelos hebreus e seguindo as leis hebraicas.

Após a invasão dos bárbaros, suas normas jurídicas vão vigorar nos lugares dominados, com o que o caráter territorial das leis cede ao direito de sangue, o jus sanguinis. Acresça-se que os bárbaros, não conseguindo absorver as leis romanas, permitiam que cada um se regesse por suas próprias leis. Apenas em caso de conflito imperava a lei dos vencedores. Assim, vigiam lado a lado no mesmo espaço leis romanas, visigóticas, lombardas e bávaras, entre outras.

O julgador devia perguntar “sub qua lege vivis?” e só então aplicar a lei. É sempre referido o depoimento de Agobardo, presbítero de Lyon, ao rei francês Luís, o Pio: “Podia acontecer de cinco pessoas que se agrupassem em uma reunião estarem sujeitos a cinco ordenamentos distintos”.5

A miscigenação vai fazendo desaparecer esse regime jurídico da personalidade do direito, que se extingue na Espanha, no século VIII, quando surge o Codex Wisigothorum, o qual unifica o conjunto de leis, suprimindo todas as legislações ali existentes, inclusive a romana. A morte de Carlos Magno, no século IX, com a dissolução do Império carolíngio, vai ocasionar o restabelecimento da territorialidade das leis.

2.4 Feudalismo

A pouca força dos sucessores de Carlos Magno resultou no surgimento do feudalismo. Passa-se a ter necessidade de proteção contra invasores e malfeitores, sendo que a própria realeza reforça o poder do senhor feudal, que agia como rei em seu território, construindo muralhas e fortificações, e determinando o modus vivendi de seus súditos. Dentro de seus domínios, o senhor feudal admitia apenas a sua lei. É a territorialidade da lei, o jus soli.

Mas o feudalismo, dominante na Europa, não se firmou no norte da Itália, onde era grande o intercâmbio comercial e industrial entre as cidades de Florença, Veneza, Pisa, Perúgia, Milão, Bolonha e Módena, entre outras. Elas eram verdadeiras repúblicas autônomas, com direito próprio, o statuta,

resumo do antigo direito costumeiro das cidades e dos comerciantes, em oposição à Lex, direito romano, que era o direito comum, geral, aplicável quando omisso o direito particular da cidade.6 O Estatuto de Gênova surgiu em 1145, o de Pisa em 1161, o de Ferrara em 1208, o de Milão em 1216, o de Módena em 1218, o de Verona em 1228 e o de Veneza em 1242.7 Os estatutos continham prescrições

administrativas, penais, civis e comerciais.

Esse intercâmbio entre as cidades começou a defrontar-se com fatos que requeriam soluções

jurídicas, não dirimidas da mesma forma em seus estatutos. Note-se que não havia até esse momento

normas de DIPr para disciplinar tais relações.

2.5 Glosadores e escolas estatutárias

Em 1100, Irnerius instituiu o ensino do Direito Romano na Escola de Bolonha, por ele fundada. Estudando o Digesto, foi escrevendo breves notas marginais ou interlineares explicativas do conteúdo, as

glosas, nas quais confrontava textos, desfazia contradições e buscava um entendimento harmonioso e o

mais completo possível do conjunto. Esse centro de estudos jurídicos passou a ser denominado escola de

glosadores, nele se destacando Accursius, Bulgarus e Iacobus, ao lado de Irnerius. Lembra Edgar

Amorim que o trabalho dos glosadores “nada mais foi do que uma espécie de colheita de tudo aquilo existente no Direito Romano relacionado ao convívio de Roma com os estrangeiros”.8

Segundo diversos autores, o mais antigo vestígio de Direito Internacional Privado é o parecer encontrado por Karl Neumeyer, do qual se destaca esta passagem: “Mas, pergunta-se: se homens de diversas províncias, as quais têm diversos costumes, litigam perante um mesmo juiz, qual desses costumes deve seguir o juiz que recebeu o feito para ser julgado? Respondo: deve seguir o costume que lhe parecer mais preferível e mais útil, porque deve julgar conforme aquilo que a ele, juiz, for visto como melhor. De acordo com Aldricus”.9

Os séculos XIII e XIV vão encontrar a escola dos pós-glosadores, comentaristas ou bartolistas, em Perúgia, Pádua, Pisa e Pávia. Surge então Bartolo (1314-1357), de Saxoferrato, considerado o pai do DIPr. Os pós-glosadores não se limitavam a notas explicativas, pois redigiam, sobre as glosas, comentários próprios, buscando e criando um direito novo, comum, de possível aplicação às situações de seu tempo. Ainda se destacam Cino de Pistoia e Baldo de Ubaldis, mas Bartolo foi o maior de todos, já tendo sido considerado “o maior jurista da Idade Média”, “pai do direito” e “lampião do direito”. Ele foi o fundador da escola estatutária italiana e dividiu os estatutos em reais (lei da situação da coisa) e pessoais (ligados à pessoa).

Em resumo, conforme síntese apresentada por Luís Ivani de Amorim Araújo,10 a solução dos conflitos, preconizada pelo sistema estatutário italiano que vem sendo adotada até nossos dias, era esta: a) Bens imóveis: regido pela localização da coisa; b) Sucessão: de acordo com o domicilio do falecido, sendo que a formalidade na sucessão era regida pelo lugar da elaboração do ato; c) Contratos e seus efeitos: conforme o lugar da celebração (para as obrigações) e da execução (para negligência e mora); d) Delitos: segundo a lei do lugar do ato.

Além da italiana, tais escolas ou sistemas estatutários compreendem mais três: a francesa, a holandesa e a alemã.

A escola estatutária francesa, no século XVI, foi criada por Bertrand D’Argentré (l519-1590) e distinguiu os estatutos reais (coisas) e os pessoais, mais tarde admitindo os mistos. O estatuto pessoal,

que era exceção, devia acompanhar o ser humano, sendo que a regra era o estatuto real. Assim, a extraterritorialidade seria muito limitada. Já no século XVIII, Boulenois, Bouthier e Froland reestruturam a escola, ampliando a aplicação extraterritorial dos estatutos, o que deixou de ser exceção.

Merece referência Charles Dumoulin (1500-1566), criador da teoria da autonomia da vontade, faculdade de as partes estabelecerem a lei que deve reger a validade de um contrato. Se não indicada a lei, a escolha do local para a realização do contrato indica a vontade dos contratantes. Dumoulin é referido por muitos tratadistas como integrante da escola francesa, mas Haroldo Valladão o coloca na escola italiana, como seu “último e grande continuador, mas também reformador”.11 Cabe lembrar que alguns autores estudam os dois sistemas estatutários como um só: a escola ítalo-francesa.

A escola estatutária holandesa, do século XVII, tem como expoentes Bulgarus, Chistian Rodenburg – seu criador, e Ulrich Huber – o mais famoso, adotando o critério absoluto da territorialidade de todos os estatutos (reais e pessoais). Mais tarde, a escola passou a aceitar, em casos excepcionais, a aplicação de estatutos pessoais, em razão da cortesia internacional (comitas gentium). Ulrich assim sintetizou os parâmetros de sua escola: as leis só vigoram no território do Estado e obrigam todos os seus súditos, sendo estes os que se encontram nos limites do Estado de forma permanente ou não, e os governantes, por cortesia, podem admitir que o direito objetivo de cada povo conserve seus efeitos em toda parte, contanto que não prejudique o Estado estrangeiro nem seus súditos.

Os autores divergem sobre consideração da comitas dos holandeses como cortesia ou necessidade de fato relativa aos interesses particulares. Para Amílcar de Castro, era necessidade de fato, nada tendo a ver com cortesia, enquanto Edgar Amorim entende que a comitas visava a ambos.

Apesar de muitos tratadistas não a referirem como sistema autônomo, a escola alemã, do século XVIII, destaca Nikolas Hert e Henrich von Cocceji. Amílcar de Castro indica que “como doutrina, ou escola, a alemã só pode ser considerada atípica, eclética, não saliente por qualquer traço original, senão pela maior precisão de conceitos”,12 mas reconhece que, ao repetir as demais doutrinas, ela as melhorou. Os estatutos são os reais, pessoais e mistos.

Sintetizando, deve-se lembrar que as escolas estatutárias não eram práticas, não alcançando o êxito almejado.

2.6 Codificação

O século XIX vai assistir ao surgimento de normas de Direito Internacional Privado em códigos civis de vários países, como França (1804), Itália (1865) e Alemanha (1896). Em 1855, com Andrés Bello, primeiro autor de obra autônoma sobre Direito Internacional Privado na América, aparece o Código Civil do Chile, que estabelece, em seu artigo 57, que “a lei não reconhece diferença entre o chileno e o estrangeiro quanto à aquisição e gozo dos direitos civis que regra este código”. Era um princípio novo, ainda não estabelecido em nenhuma codificação civil do mundo, nem mesmo na francesa, que exigia, rigorosamente, reciprocidade diplomática e legislativa para reconhecimento desses direitos.

Haroldo Valladão exalta nesse legado chileno o espírito inovador, que, tendo o territorialismo como princípio básico, quanto às pessoas, aos atos e aos bens situados no território, e a nacionalidade em casos restritos – para o chileno que no estrangeiro pratica atos que viessem produzir efeitos no Chile, e em suas relações de família com chilenos – se constituiu em combinação equilibrada e sensata de regras de DIPr.13

No que tange ao nosso país, é oportuno destacar que a Carta Magna de 1891 assegurou, no artigo 72, aos estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança

individual e à propriedade, associando-se a esse nascente espírito de aceitação das pessoas oriundas de outros países.

2.7 Doutrinas modernas

Ainda no século XIX vão despontar os grandes precursores da doutrina de Direito Internacional Privado, Story, Savigny e Mancini, cujas contribuições para nossa disciplina influenciarão as legislações, as decisões judiciais, as convenções e os tratados a partir de então. É prudente afirmar que os ensinamentos desses mestres continuam indicando caminhos, em pleno século XXI, para legisladores e estudiosos de DIPr em todo o mundo.

Joseph Story, professor da Universidade de Harvard e membro da Suprema Corte americana, publicou em 1834 seu Conflict of Laws, que, segundo Valladão, se tornou “quase uma bíblia para os julgados e a doutrina não só nos Estados Unidos como na Inglaterra”. Tenório acentua que Story, cuja influência continua a exercer-se, ensinou à Europa uma concepção baseada na equidade dos conflitos de leis, sem os limites da divisão estatutária.14

Story alicerçou-se em princípios das escolas estatutárias, como D’Argentré e Huber, naquilo que considerou importante, mas versou os temas separadamente, nem mesmo aceitando a divisão em estatutos pessoais, reais e mistos. Ele substituiu a gentileza internacional, a cortesia, pelo princípio da

busca da boa justiça, na aplicação do direito estrangeiro. Em resumo, sua doutrina estabelece: a) Capacidade das pessoas: lei do domicílio; b) Capacidade para contratar: lei do local do contrato; c) Bens imóveis: lei da sua situação; d) Casamento: lei do lugar da celebração; e) Divórcio e relações dos cônjuges: lei do domicílio atual.

Friedrich Carl von Savigny, professor de Berlim, escreveu Sistema de Direito Romano Atual (1849). Com ele surge a ideia de um universalismo, de um direito aplicável universal, pois entende que o interesse das pessoas requer e merece igualdade de trato das questões jurídicas, em caso de conflito de leis, preconizando que a solução seja a mesma, onde quer que ocorra o julgamento. Imagina a comunidade de direitos entre os diferentes povos, o que significa buscar para cada relação jurídica surgida o direito mais de acordo com a natureza e essencialidade dessa relação. Isso se faz pela

localização da sede da relação em causa, que é o domicílio das pessoas quanto ao seu estado e

capacidade, e a localização da coisa para qualificá-la ou regê-la. Na verdade, o domicílio é o elemento

de conexão por excelência, acentuando Cláudia Lima Marques que Savigny procurou a harmonia das

decisões, aplicando a lei nacional ou a estrangeira mais conectada com a relação jurídica, quando essa relação envolve mais de um ordenamento jurídico.15

Savigny já alerta para quatro institutos que são inaplicáveis nos foros que não os admitem, tornando-se, portanto, não abarcáveis pelas normas de DIPr: poligamia, morte civil, escravidão e proibição de aquisição de propriedade imobiliária por judeus.

Pasquale Stanislao Mancini, italiano, foi fundador e presidente do Instituto de Direito Internacional. A rigor, não deixou uma obra escrita, mas suas palestras e aulas, especialmente na Universidade de Turim (1851) e de Roma, foram publicadas em 1874, sob supervisão sua, enfocando os fundamentos e os princípios do Direito Internacional Privado. Sua doutrina se embasa na nacionalidade, mas com restrições, tendo grande influência na Europa, onde a nacionalidade, contrariamente ao domicílio de Savigny, é o elemento de conexão comum na legislação dos diversos países.

RESUMO