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DIREITO DO CONSUMIDOR E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO “Em matéria de contratos concluídos pela internet, a questão que

se coloca é a de saber se as empresas que oferecem esses serviços, assim como os provedores, podem ser atraídos para o tribunal de domicílio de cada um dos usuários” (Erik Jayme).

16.1 Considerações iniciais

A proteção do consumidor avança e se consolida atualmente no Direito Comercial, no Direito Civil, no Direito Econômico e no Direito Internacional Privado, além de outros segmentos das ciências jurídicas.

A abertura do mercado interno dos países a produtos e serviços estrangeiros tem gerado a necessidade de proteção dos destinatários desses benefícios. A integração econômica, a regionalização dos negócios, o desenvolvimento dos meios de transportes e de comunicação, por seu turno, alavancam o turismo, hoje massificado, impondo a defesa das pessoas que consomem bens e serviços provenientes de outros Estados ou que adquirem produtos em suas viagens ao exterior.

O consumidor, entendido como todo ser humano ou pessoa jurídica que adquire bem ou contrata serviço para uso ou proveito próprio, como destinatário final, tem merecido atenção das ordens jurídicas dos Estados e, a cada dia mais, da sociedade internacional como um todo.

O mencionado contexto internacional, acentua Cláudia Lima Marques, amplia o desequilíbrio das relações de consumo, tornando vulnerável a posição de sua parte mais fraca, o consumidor, que necessita de “efetiva tutela e positiva intervenção dos Estados e dos Organismos Internacionais legitimados para tal”.1

Essa teia global ocasiona desafios para o Direito Internacional Privado, que deve regular novas modalidades de conflitos, e para as ordens jurídicas dos Estados, às quais compete oferecer segurança nas transações entre consumidores e empresas que operam nessa esfera transnacional.

16.2 Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro

A Constituição Federal de 1988 estabelece que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (art. 5º, XXXII), considerado um dos princípios da ordem econômica (art. 170, V). Ainda, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabeleceu a promulgação pelo Congresso Nacional de um código para essa finalidade (art. 48). Assim, está nessa Carta a origem da codificação tutelar dos consumidores no Brasil.2 O comando constitucional foi cumprido com o advento da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), um dos mais avançados diplomas normativos de proteção dessa parcela da população. Após definir consumidor (toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final) e fornecedor (toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos

ou prestação de serviços), nosso Código de Defesa do Consumidor, em 119 artigos, disciplina a defesa e proteção do consumidor brasileiro com uma clareza e uma profundidade que têm servido de modelo para as legislações de outros países.

16.3 Consumidor no DIPr

Acentua Erik Jayme que a ideia tradicional de desequilíbrio econômico e social entre a grande empresa e o pequeno consumidor, que ainda perdura como base das regras especiais de conflito de leis, não encontra na proteção da parte mais vulnerável correspondência adequada no comércio eletrônico.3

No que tange à qualidade e segurança de produto ou serviço, e o acesso à justiça na busca dessa garantia, consolida-se o entendimento de que o consumidor não pode ser prejudicado pela elementar razão de que esse bem proveio de outro país, foi fornecido por empresa situada no exterior ou foi adquirido em viagem ao estrangeiro. Em tese, ele deve poder contar com proteção mínima aos seus interesses quando optar por um contrato à distância ou por meios eletrônicos: normas sobre seus direitos interessam tanto à competitividade do mercado interno quanto à competitividade internacional, assim como contribuem para a criação de um mercado interno com concorrência leal.4

Ocorre que as regras dos ordenamentos jurídicos dos Estados não mais oferecem a suficiente proteção ao consumidor do mercado transnacional, nem podem ser usadas pelos países como novas barreiras à livre circulação de produtos e serviços oriundos do estrangeiro.

Demandar em outro país ou aplicar o direito estrangeiro já inibe, por vezes, o consumidor que necessita ou se dispõe a buscar na Justiça seus direitos.

Torna-se alentadora nesse contexto a presença de normas protetivas no continente europeu, como a resolução de 1973 relacionada à Carta do Conselho da Europa sobre consumidor. Ela aludia direito desse segmento à proteção e assistência contra danos físicos oriundos de produtos perigosos, aos interesses econômicos do consumidor e assegurava indenização por prejuízos daí gerados e resguardava o direito à informação e educação por essas pessoas.

Depois da pioneira Convenção de Bruxelas de 1968 – hoje Regulamento n. 44/2000 –, que incluiu um artigo especial sobre a jurisdição de litígios com o consumidor (art. 13) na União Europeia, a Convenção de Roma de 1980 regulou com norma especial os conflitos de leis envolvendo consumidores. O famoso artigo 5º da Convenção de Roma de 1980, sobre a lei aplicável aos contratos internacionais, protege o consumidor passivo (aquele que compra à distância), impondo a comparação entre a proteção concedida pelas normas imperativas do foro e a da lei escolhida pelas partes e determinando a aplicação da mais favorável ao consumidor. Hoje a Convenção de Roma está sendo substituída por um Regulamento interno europeu, mas preserva sua famosa formulação: “A escolha pelas partes da lei aplicável não pode ter como consequência privar o consumidor privado da proteção que lhe garantem as disposições imperativas da lei do país em que tenha a sua residência habitual.”

Vamos tecer considerações sobre a Diretiva n. 97/7/CE, de 20 de maio de 1997, do Parlamento Europeu e do Conselho (da União Europeia), no âmbito da União, tida como a mais importante para os direitos materiais do consumidor europeu no comércio à distância, hoje tão massificado com o comércio eletrônico.5 O artigo 4º desse diploma assegura o direito de informação sobre a identidade e o endereço do fornecedor, as características básicas do produto ou serviço oferecido, seu preço e impostos incidentes, bem como custo de envio e eventuais taxas extraordinárias (como embalagem, empacotamento e postagem). Deve o consumidor ser informado, pelo dispositivo citado, do direito de arrependimento, prazo de validade da oferta ou do preço especial, duração mínima do contrato, forma de renovação desse

contrato, prazo de entrega do bem ou execução do serviço, detalhes da prestação e regularidade dos serviços a serem prestados.

O artigo 6º da Diretiva n. 97/7/CE garante prazo de sete dias úteis para arrependimento sem causa do consumidor, que pode ser ampliado para três meses. Diretiva posterior (Diretiva n. 2.002/65/CE, de 23.09.2002) regula os contratos à distância em matéria financeira, como os de seguro de vida e de serviços bancários, preenchendo lacuna da Diretiva n. 97/7. Nesse caso, o prazo para retratação é de quatorze dias, ampliando-se para trinta dias em determinadas situações.

Outro dispositivo da Diretiva n. 97/7/CE, artigo 9º, proíbe que seja considerado como aceitação tácita o silêncio ou a omissão do consumidor ante produto enviado ou serviço fornecido, por ele não solicitado, quando exigido qualquer pagamento para isso. Convém salientar que essa Diretiva é minimal, ou seja, estabelece regras mínimas em favor do consumidor no espaço comunitário europeu, assim como a posterior Diretiva n. 2.000/31/CE sobre comércio eletrônico.

16.4 Proteção do consumidor nas Américas

A proteção do consumidor ganha espaço nos ordenamentos jurídicos dos Estados americanos. No âmbito dos países integrados no Mercosul, a exemplo do Brasil, todos já dispõem de legislação em favor do consumidor. A Argentina conta com a Lei n. 24.240, de 15 de outubro de 1993 (Lei de Defesa do

Consumidor), com alterações da Lei n. 24.999, de 24.07.1998, e novamente em 2008; no Paraguai há a

Lei n. 1.134, de 27 de outubro de 1998 (Lei de Defesa do Consumidor e do Usuário); e o Uruguai dispõe da Lei n. 17.189, de 20 de setembro de 1999 (Normas Relativas às Relações de Consumo).

As normas consumeristas desses países caminham na mesma direção. A relação entre fornecedor e consumidor, em tese favorável ao primeiro, tem sido a razão do surgimento e consolidação das regras protetivas do consumidor, pois nascem como “ramo jurídico objetivando diminuir a diferença de exercício de autonomia privada de uma das partes com normas compensatórias em prol da outra: é o princípio da vulnerabilidade, no Brasil, e o princípio favor debilis, na Argentina”.6 Acentue-se que o conceito de fornecedor em ambos os Estados está dissociado da noção de empresário ou comerciante dos códigos civis e comerciais.

No Canadá francês, o Código Civil de Quebec, de 1991, porta regras de Direito Internacional Privado em favor do consumidor, no artigo 3.117, inspirado no artigo 5º da Convenção de Roma de 1980; e do lesado, permitindo escolha entre a lei do país em que o fabricante do produto tem sua sede ou residência e a do Estado no qual foi o bem adquirido (art. 3.129).

16.4.1 Projeto de CIDIP de proteção do consumidor

Importante projeto de Convenção Interamericana de Direito Internacional Privado (CIDIP) sobre diversos contratos e transações com consumidores7 foi elaborado por Cláudia Lima Marques e encampado pelo governo brasileiro para inclusão no temário dos próximos eventos da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre a proteção do consumidor, o que vem ocorrendo.

Entre os dispositivos sugeridos, vamos destacar a proteção em situações especiais, no que pertine aos contratos de viagem e turismo (art. 6º), que propõe:

“1. Os contratos de viagem individual acordados em pacote ou com serviços combinados, como grupo turístico, ou conjuntamente com outros serviços de hotelaria e/ou turísticos, serão regulados pela lei do lugar do domicílio do consumidor, se este coincidir com a sede ou filial da agência de viagens que vender o contrato de viagem ou onde for feita a oferta, publicidade ou qualquer ato negocial prévio pelo

comerciante, transportador, agência ou seus representantes autônomos.

2. Nos demais casos, aos contratos de viagem individual contratados em pacotes ou combinados como grupo turístico ou conjuntamente com outros serviços de hotelaria e/ou turísticos será aplicável a lei do lugar onde o consumidor declara a sua aceitação ao contrato.

3. Aos contratos de viagem não regulados por convenções internacionais, concluídos mediante contratos de adesão ou condições gerais contratuais, será aplicável a lei do lugar onde o consumidor declara a sua aceitação ao contrato.”

Ademais, o artigo 7º do projeto CIDIP sugere, no seu inciso primeiro, esta regra:

“As normas imperativas de proteção dos consumidores do país de localização física dos empreendimentos de lazer e de hotelaria que se utilizem do método de venda, de uso ou de habitação em multipropriedade ou time-sharing, localizados nos Estados-partes, aplicam-se cumulativamente a estes contratos, a favor dos consumidores.”

16.5 Consumidor à luz da LINDB

As regras brasileiras de DIPr, inseridas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), são anteriores ao CDC, nada dispondo especificamente sobre o consumidor. Disciplina, isso sim, o artigo 17 dessa Lei que as sentenças ou declarações da vontade provenientes de outro país não terão eficácia no Brasil quando ofenderem nossa ordem pública.

A mesma norma jurídica dificulta, em matéria contratual, uma defesa consistente da autonomia da vontade, privilegiando a lei do local da celebração: “Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem” (art. 9º, caput).

16.5.1 Proposta de adequação da LINDB ao consumidor

Nesse contexto, endossamos, com ênfase, a proposta de Cláudia Lima Marques de inserção de novos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro8, consignados a seguir.

“Art. 9º bis [Proteção contratual dos consumidores]. Os contratos e transações envolvendo

consumidores, especialmente os contratados à distância, por meios eletrônicos, de telecomunicações ou por telefone, estando o consumidor em seu país de domicílio, serão regidos pela lei deste país ou pela lei mais favorável ao consumidor, escolhida pelas partes entre a lei do lugar da celebração do contrato, a lei do lugar da execução do contrato, a da prestação característica ou a lei do domicílio ou sede do fornecedor de produtos ou serviços. § 1º Aos contratos celebrados pelo consumidor estando fora de seu país de domicílio será aplicada a lei escolhida pelas partes, dentre a lei do lugar de celebração do contrato, a lei do lugar da execução e a lei do domicílio do consumidor. § 2º Em todos os casos, aplicar-se-ão necessariamente as normas do país do foro que tenham caráter imperativo, na proteção do consumidor.

§ 3º Tendo sido a contratação precedida de qualquer atividade negocial, de marketing, do

fornecedor ou de seus representantes, em especial de envio de publicidade, correspondências, e-mails, prêmios, convites, manutenção de filial ou representantes e demais atividades voltadas para o fornecimento de produtos e serviços e atração de clientela no país de domicílio do consumidor, aplicar- se-ão, necessariamente, as normas imperativas deste país, na proteção do consumidor, cumulativamente àquelas do foro e à lei aplicável ao contrato ou relação de consumo.”

16.6 Caso Panasonic

Ação civil ajuizada na capital paulista buscando reparação por produto adquirido no estrangeiro, que apresentou defeito, sinaliza a importância que o consumidor passa a merecer no campo do Direito Internacional Privado em nosso país. É o chamado caso Panasonic.

Trata-se de filmadora dessa marca comprada em Miami, EUA, tendo sido extintos o processo de primeira instância e o recurso interposto no Tribunal de Justiça de São Paulo, por ilegitimidade da parte, alegada pela Panasonic do Brasil Ltda., por ter o produto sido adquirido na Panasonic Company, empresa norte-americana formalmente distinta da brasileira. Como se percebe, foi aceita uma visão jurídica positivista.

O caso chegou, em Recurso Especial, ao Superior Tribunal de Justiça, solicitado a apreciar se pessoa jurídica brasileira, subsidiária de transnacional, poderia ser obrigada a reparar produto fabricado e comercializado no estrangeiro. Deveria a Corte dirimir a controvérsia sobre aplicabilidade e eficácia do Código de Defesa do Consumidor na prestação de garantia em situações como essa. Adotando matriz hermenêutica, a Quarta Turma do STJ, por maioria, admitiu a responsabilidade da empresa brasileira, como se deduz do acórdão, cuja ementa é apresentada no item a seguir. Posterior ação rescisória da empresa brasileira foi também rejeitada, em 2005, pela Segunda Seção do STJ, com o que a decisão da Turma foi mantida.

Prevaleceu o entendimento de que o nosso Código de Defesa do Consumidor se aplica de forma imediata a relações de consumo ocorridas em outros países, obrigando empresa brasileira da mesma marca a reparar danos provenientes de defeito de fabricação do produto. A solução do STJ ao caso

Panasonic indica uma postura em favor do consumidor, embora ainda não se constitua em jurisprudência

consolidada.

16.6.1 Ementa do caso

Direito do consumidor – Filmadora adquirida no exterior – Defeito da mercadoria – Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (“Panasonic”) – Economia globalizada – Propaganda – Proteção ao consumidor – Peculiaridades da espécie – Situações a ponderar nos casos concretos – Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente fundamentado – Recurso conhecido e provido no mérito por maioria. I – Se a economia globalizada não mais tem

fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se inclusive o fator risco, inerente à competitividade no comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País. II – O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado´ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a responsabilidade da marca. III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos. IV – Impõem-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes. V – Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos (REsp. n. 63.981/SP – 4ª T. – j. em 11.04.2000 – rel. p/acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – STJ – RSTJ n. 137, p. 387, jan. 2001).

16.7 Considerações finais

O desejável e necessário viés humanista de todo o arcabouço jurídico, interno ou do conjunto dos Estados, amplia e cobra do Direito Internacional Privado soluções pertinentes e adequadas em favor do consumidor. A sucessão de condutas e práticas geradas pelo extraordinário avanço científico e tecnológico, que logo chega a todos os recantos do planeta, tem encontrado respostas no mundo do Direito, no que tange ao consumidor, embora essas regras ainda se mostrem tênues e nem sempre acessíveis.

No contexto comunitário europeu existem regras obrigatórias, como a Diretiva n. 97/7/CE, que permitem, a par da eficácia já comprovada, vislumbrar proteção à parte mais fraca do sujeito da relação jurídica em tempos de globalização. No continente americano, a sugestão de CIDIP sobre contratos e transações com consumidores sinaliza importante passo de nossa disciplina na busca de soluções em favor do ser humano.

RESUMO