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O mero arrolamento dos casos notáveis de inflexão do devido processo formal permite intuir, “ab initio”, que não se trata de eventos axiologicamente isolados Há pelo

menos uma conexão permanente entre eles, a permitir uma investigação abrangente de todo o elenco, à conta de fenômeno único.

É que, em todos os casos tangidos, a relativização da regra de processo ou de procedimento69 tem por finalidade preservar e/ou promover uma pretensão de direito

69 Empregaremos, doravante, as expressões “norma de processo” e “norma de procedimento” para marcar, à

maneira da doutrina francesa, a mesma distinção que HÉRON estabelece, no plano dos atos jurídicos, entre

“actes processuels” e “actes de procédure” (na perspectiva das partes parciais): os primeiros correspondem à

manifestação de vontade das partes (dimensão formal-exterior), enquanto os segundos correspondem ao

conteúdo mesmo do ato, i.e., ao efeito jurídico visado pelas partes ao praticá-lo (dimensão teleológica). O gênero, designá-lo-emos simplesmente pela expressão “norma adjetiva”. Nessa ordem de ideias, ação e defesa são, em essência, atos processuais, a que se respectivamente se ligam, como atos de procedimento, a

petição inicial e a contestação. Cf. Jacques Héron, Droit judiciaire privé, 2e éd. (par Th. Le Bars), Paris, Précis Domat, 2002, n. 56; cf., ainda, Guinchard, Ferrand, op.cit., p.191 e ― para a crítica pontual ― pp.135- 136 (“[…] nous semble introduire une abstration quelque peu inutile, dans une discipline qui a besoin de

concret”). Pressupõe-se, portanto, que ação e defesa são entidades existentes em potência (como direitos abstratos ― e.g., o direito constitucional de ação ― e concretos ― e.g., o direito de pedir e haver, em juízo,

indenização por danos ilicitamente sofridos, e o direito de pedir o improvimento dessa pretensão) e em ato (quando efetivamente exercitadas em juízo). Na literatura portuguesa, ao pugnar pela relevância da vontade na determinação de sentido e na higidez técnico-jurídica dos atos processuais postulativos, PAULA COSTA E SILVA (Acto e processo: O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto

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material subjacente à lide, cuja origem se radica, direta ou indiretamente, no rol constitucional de direitos humanos fundamentais da pessoa.

Se não, vejamos.

II. No caso n. 1, o que geralmente subjaz à inflexão processual é a hipossuficiência econômica da pessoa (como, p. ex., o trabalhador, que é, via de regra, o autor no processo do trabalho; quando essa relação se inverte ― como, e.g., nos referidos inquéritos para apuração de falta grave ―, não se cogita de antecipação “ex officio”). Hipossuficiência, porém, aliada à premência de atendimento de uma necessidade humana (apresentação de documento para fruir das prestações da aposentadoria especial70, percepção de salário para prover ao sustento imediato da família, cessação de atividades para evitar danos pessoais iminentes, etc.). Não por outra razão, há processos nos quais a antecipação de tutela não é concedida de ofício (aliás, em maioria estatística71), a despeito da hipossuficiência presumida de seu autor. Resulta, disso, que o substrato ético de tais decisões não é a mera hipossuficiência, nem o suposto “paternalismo” dos juízes laborais, mas um estado de crise

distinção: ao cabo das contas, termina por conferir primazia axiológica aos atos processuais postulativos (i.e., ao conteúdo dos atos de postulação em juízo), ainda quando exsurjam em desacordo com os atos procedimentais correspondentes. Explicitamente, porém, não os distingue. Antes, prefere aproximar ― ou até equivaler (op.cit., pp.211-212) ― os conceitos de ato processual e de ato procedimental, embora reconhecendo que “se o processo ou o acto procedimento são categorias de classificação de todo tipo de

actos jurídicos atendendo à respectiva complexidade quantitativa, então dizer que os actos processuais são meros actos de um procedimento é uma afirmação totalmente inútil, pois que ela não permite distinguir os actos processuais que se encontram submetidos a um regime de direito processual civil de outros actos processuais, porque integrados em actos de procedimento, que se não encontram sujeitos a regimes de direito processual civil” (p.172); adiante, porém, procura justificar-se (pp.172-173). De nossa parte, pensamos que a

distinção, no plano ontológico, entre ato processual e ato de procedimento ― que, no plano deontológico, predispõe a correspondente distinção entre norma processual e norma procedimental ― serve justamente para isolar, dos atos e normas de procedimento que não reclamam a figura do Estado-juiz, aqueles atos e normas que pressupõem o exercício da jurisdição (atual ou potencial), seja no âmbito civil (processo civil), seja no âmbito penal (processo penal), trabalhista (processo do trabalho), fiscal (processo tributário) ou administrativo (no Brasil, o próprio processo civil; em Portugal ― e em todos os países com jurisdição administrativa ―, o processo administrativo). Nos autos, por óbvio, tais atos tendem a se confundir (plano fenomenológico); nem por isso, o binômio perde a sua utilidade discursivo-científica.

70 No Brasil, o chamado “perfil profissiográfico previdenciário”, ou PPP (ut artigo 58, §4º, da Lei n.

8.213/1991, na redação da Lei n. 9.528/1997: “A empresa deverá elaborar e manter atualizado perfil

profissiográfico abrangendo as atividades desenvolvidas pelo trabalhador e fornecer a este, quando da rescisão do contrato de trabalho, cópia autêntica desse documento”).

71 Mesmo entre os juízes que concedem de ofício a antecipação de tutela do artigo 273 do CPC (visto que a

maioria não a concede), essa concessão tende a ser mais ou menos excepcional. Observe-se, entretanto, não haver dados oficiais disponíveis a esse respeito; trata-se, por ora, de uma percepção empírica (se bem que facilmente alcançável por tantos quantos militem na Justiça do Trabalho brasileira).

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que subjaz à lide sociológica e acomete direitos fundamentais de segunda geração (como, e.g., o direito à aposentadoria72, o direito ao “salário mínimo […] capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e às de sua família” 73, o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho e ao meio ambiente do trabalho sadio74, etc.). Ora, uma vez constatada essa relação, pode-se acenar com a possibilidade, em tese, de o juiz conceder antecipações “ex officio” em favor do empresário (no processo laboral) e das partes privadas em geral (no processo civil), desde que se reproduza, nos respectivos processos, a mesma matriz tridimensional (fato-valor-norma75) que as vinha determinando em processos movidos por hipossuficientes; afinal, a titularidade dos direitos fundamentais não deita raízes na hipossuficiência econômica, mas na condição humana (que, por vezes, irradia-se para a própria pessoa jurídica76). Acena-se, então, com a possibilidade de um modelo de decisão (que, todavia, não pode ignorar simplesmente o teor do texto normativo ― “a requerimento da parte” ― e desancar o devido processo formal; daí a sua necessária adjetivação: há de ser um modelo racional, permeável e inclusivo77).

No caso n. 2, outra vez a inflexão parece ter, na sua base, a hipossuficiência técnica ou econômica de uma das partes. Mas o que realmente justifica as inversões, na casuística apontada (Súmulas 212 e 338 do TST), ora será o direito à relação de emprego protegida

72 Artigo 7º, XXIV, da CRFB. 73 Artigo 7º, IV, da CRFB. 74

Artigos 7º, XXII, 200, VIII, e 225, caput, da CRFB.

75 Perfilharemos, aqui e doravante, a teoria tridimensional do Direito, tal como desenvolvida e consagrada,

no Brasil, por MIGUEL REALE (cf. Miguel Reale, Filosofia do Direito, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, pp.497-561).

76 A nosso sentir, nenhum tribunal enfrentou esse tema com a mesma solidez e precisão que o

Bundesverfassungsgericht alemão (notadamente entre as décadas de quarenta e sessenta), à luz do que dispõe

o artigo 19, 3, da GG (no sentido de que “[d]ie Grundrechte gelten auch für inländische juristische Personen,

soweit sie ihrem Wesen nach auf diese anwendbar sind”). Sobre a aplicabilidade, às pessoas jurídicas de

direito privado, dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza, cf. BVerfGE 3, 383 [390] (ref. artigo 3º, 1, da GG); BVerfGE 4, 7 [12 e 17] (ref. artigo 14 da GG). Já quanto às pessoas jurídicas de direito público, decidiu-se que os direitos fundamentais não lhe são aplicáveis, quando realizam funções públicas; cf., por todos, BVerfGE 21, 362 (Reclamação Constitucional do Instituto Estadual de Seguro de Westfalia, um das titulares do Sozialversicherungsträger alemão; a reclamação não foi admitida, por ausentes os pressupostos do artigo 19, 3, da GG). Cf., ainda, BVerfGE 15, 256 [262]: o Estado não pode ser, ao mesmo tempo (numa mesma função), destinatário e titular de direitos fundamentais. No Brasil, em sentido semelhante ao artigo 19, 3, da GG, dispõe o artigo 52 do NCC: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que

couber, a proteção dos direitos de personalidade”. Há que buscar, pois, parâmetros hermenêuticos similares

àqueles hauridos do artigo 19, 3, da GG (“[...] soweit sie ihrem Wesen nach auf diese anwendbar sind”) para operacionalizar, no caso brasileiro, a aplicação do preceito quanto às pessoas jurídicas (inclusive as de direito público, se o caso). Cf., infra, a nota n. 961; e, mais adiante, o tópico 16.2

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contra despedida arbitrária ou sem justa causa78 (o que implica um potencial dever jurídico de motivar a dispensa ― e, por essa via, o ônus de provar os motivos79), ora será o próprio devido processo formal, densificado como direito à prova (exequível). É que, no caso da Súmula 338 do TST, o que verdadeiramente está em causa não é nem a hipossuficiência econômica, nem tampouco o princípio da proteção (ínsito, e.g., à norma do artigo 7º, I, CRFB); antes, ganha relevo a dificuldade da parte autora ― o reclamante (ex-empregado) ― em fazer prova de fato que deveria ter sido documentado oportunamente pelo empregador: os horários diários de trabalho (que, nas empresas com mais de dez empregados, deveriam constar de registros manuais, mecânicos ou eletrônicos, ut artigo 74, §2º, da CLT). Afinal, o mais das vezes, a prova testemunhal que se consegue produzir acerca dos horários, em substituição àquela documental (manual, mecânica ou eletrônica), é lacônica, estimativa e imprecisa; examinada com rigor, prejudicaria o autor (pelos períodos não cobertos) ou deporia contra a isenção da testemunha (que, não raro, acaba por indicar horários gerais e invariáveis cobrindo períodos contínuos de vários anos…). Na prática, os juízes terminam por admitir os horários do exórdio ou estender a todo o contrato uma estimativa favorável (como sugere, mais recentemente, a própria O.J. n. 233/SDI-1/TST80); eis, afinal, a razão de ser ― razão prática ― daquela inversão de ônus. Logo, é forçoso concluir que, em hipóteses similares (comprometimento intencional ou negligente do direito à prova exequível), poder-se-á projetar o mesmo efeito (a inversão do “onus probandi”) em favor de outras partes (inclusive o empregador; ou, no cível, a contraparte de um contrato), desde que presentes as mesmas condicionantes.

78 Artigo 7º, I, da CRFB (que, por essa via, encontra um átimo de concreção, a despeito da inércia legislativa

em editar a lei complementar que o preceito requer).

79 Na prática, com a inversão alvitrada pela Súmula 212/TST, dá-se tão só concreção ao ônus de provar os

motivos da dispensa, quando houver; tais motivos podem ser motivos disciplinares ― caso em que há

dispensa com justa causa ―, ou motivos técnicos, econômicos e/ou financeiros ― caso em que há dispensa sem justa causa, porém motivada; logo, não será arbitrária, o que pode importar em algumas modalidades de estabilidade (veja-se, e.g., o caso do “cipeiro” e a norma do artigo 165 da CLT). Já o “potencial” dever de motivar a dispensa prossegue latente, condicionado à regulamentação na esfera sindical (acordos e convenções coletivas de trabalho), enquanto não vem a lume a lei complementar do artigo 7º, I, CRFB. O que significa perpetuar, a despeito da norma constitucional, a prática das “denúncias vazias” de contratos individuais de trabalho.

80 “HORAS EXTRAS. COMPROVAÇÃO DE PARTE DO PERÍODO ALEGADO (nova redação) - DJ

20.04.2005. A decisão que defere horas extras com base em prova oral ou documental não ficará limitada ao

tempo por ela abrangido, desde que o julgador fique convencido de que o procedimento questionado superou aquele período”.

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No caso n. 3, estão em jogo, por um lado, a capacidade econômico-financeira do Estado (e, por consequência, a continuidade dos serviços públicos ― artigo 175, caput, da CRFB), e, por outro, interesses privados que podem ou não enfeixar direitos humanos fundamentais. Aqui reside, em nossa opinião, o ponto nevrálgico da questão. Não se justificaria, p. ex., afastar a norma do artigo 1º da Lei n. 9.494/97 com o propósito de liquidar mais rapidamente créditos pendentes de grandes empreiteiras junto à Fazenda Pública (ainda que presentes, “in concreto”, todos os pressupostos do artigo 273 do CPC); se, porém, a inércia do Estado põe em risco a vida ou a saúde do cidadão (assim, e.g., se a União tarda em repassar créditos orçamentários ou entregar equipamentos imprescindíveis para a realização de uma cirurgia em paciente terminal), ou a própria subsistência do trabalhador e de sua família (assim, v.g., se o Município procede à dispensa coletiva de todo o seu quadro de empregados celetistas e não quita sequer os salários em haver81), parece haver sentido em, episodicamente, recusar aplicação à norma processual proibitiva, em benefício de um bem, direito ou interesse maior e/ou mais urgente. Caberá sopesar, em juízos de ponderação (= proporcionalidade), todos os valores jurídicos casuisticamente envolvidos; o que, todavia, não pode ser puramente arbitrário ou ideológico. Outra vez, percebe-se a necessidade de um modelo racional de decisão, que imprima alguma objetividade a juízos de ponderação em contextos de colisão de princípios82.

81 Observe-se que, nos termos da Súmula n. 363/TST, “a contratação de servidor público, após a CF/1988,

sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e §2º, somente lhe conferindo o direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos de FGTS”;

logo, mesmo nas contratações irregulares, entende-se serem ao menos devidos os salários do período (desde que tenha havido trabalho) e o respectivo FGTS. Pessoalmente, divergimos da inteligência da súmula, presumindo a boa-fé dos obreiros e pugnando pelo pagamento integral de todos os créditos trabalhistas naturalmente derivados do contrato de emprego, sem prejuízo do direito ― e do dever ― do erário em se ver ressarcido junto ao administrador público ímprobo que, inadvertidamente ou não, contratou irregularmente a mão-de-obra (artigos 5º e 11, II e V, da Lei n. 8.429, de 02.06.1992). Para nossa posição, cf. Tópicos

Avançados de Direito Material do Trabalho, São Paulo, EDJ, 2006, v. I, pp.30 e ss.

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Sobre colisão de princípios, cf., infra, o § 24º. Não queremos dizer, com isso, que não se conheçam, na doutrina universal, modelos racionais de decisão para juízos de ponderação em geral. Conhecem-se, e vários; cite-se, em especial, o modelo de pesos de ROBERT ALEXY, de racionalidade indiscutível (dir-se-ia quase

matemática), cunhado para se aplicar precisamente às colisões de direitos fundamentais (cf., do autor, Theorie der Grundrechte, 3. Aufl., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1996, pp.134-157; e Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales, trad. Carlos Berbal Pulido, Madrid, Colegio de Registradores de la Propiedad y

Mercantiles de España [Centro de Estudios], 2004, pp. 48-81 e notas n. 68 e 69 ― neste último, respondendo às objeções de HABERMAS e de BÖCKENFÖRDE). A deficiência que sugerimos existir ― e para cuja correção pretendemos contribuir ― liga-se muito particularmente aos juízos de ponderação que

contrapõem direitos materiais (em geral, normas-princípio de direitos fundamentais) e garantias processuais, uma vez que ALEXY não chega a considerá-los concretamente e tampouco sugere, à conta de

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No caso n. 4, os exemplos trasladados da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça brasileiro contrapõem, à garantia processual de repúdio às provas inadmissíveis (i.e., provas ilícitas e provas ilegítimas83), ora a liberdade espácio-corporal, ora a segurança pública, ora, ainda, o direito à identidade biológica. Novamente, subjaz à inflexão da norma processual um juízo de proporcionalidade que leva em conta liberdades e direitos de consagração constitucional; ao menos um deles ― o primeiro ― tem a nota indiscutível da fundamentalidade. Quanto aos demais, há que debater, a uma, a sua natureza constitucional; a duas, a sua hierarquia “in tese”; a três, o modelo de ponderação a se adotar. Decerto tisnará o devido processo formal uma tese que admita, no processo, provas ilícitas ou ilegítimas, toda vez que a parte apresentante puder vincular retoricamente, à sua pretensão, qualquer direito alçado ao panteão constitucional (tanto mais em sistemas políticos como o brasileiro e o português, que se esmeraram em constitucionalizar direitos e interesses).

No caso n. 5, mais uma vez, vem à baila a hipossuficiência econômica como aparente razão de decidir. Antes, parece-nos relevar o caráter alimentar dos créditos exequendos, para se discutir, no plano juslaboral, o que tem estrita natureza alimentar e o que não a tem. Terá caráter alimentar tudo aquilo que servir diretamente à subsistência pessoal e familiar, sem o que há risco de afetação “nuclear” da dignidade da pessoa humana (escassez de alimentos ou vestuário, cortes de luz e água ou despejo, endividamento para subsistência, etc.). Significa dizer que, ao relativizar a vedação processual do artigo 649, IV, do CPC, o juiz deveria ao menos considerar essa questão (o que hodiernamente não é feito). Assemelha-se-nos injustificável, p. ex., infletir a norma de impenhorabilidade absoluta de salários e bloqueá-los, ainda que parcialmente, com o propósito ― único e exclusivo ― de quitar direitos de imagem de artista ou atleta profissional. Por outro lado, se a inflexão só se justifica em função do caráter estritamente alimentar do crédito contraposto (ligado à ideia de inviolabilidade da dignidade humana), não poderá, em tese, favorecer pessoas jurídicas; mas poderá, em contextos semelhantes, favorecer pessoas

ponderação, “inflexões” de qualquer ordem no devido processo formal. Vê-se, porém, que elas existem ― e merecem reflexão.

83 Para a distinção, cf., por todos, Pietro Nuvolone, “Le prove vietate nel processo penale nei paesi di diritto

latino”, in Rivista di Diritto Processuale, Padova, CEDAM, 1966, v. 21 (2ª série), pp.448-450. Tornaremos

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naturais que jamais tenham se subordinado ao réu ou sequer sejam economicamente hipossuficientes.

Por fim, no caso n. 6, ainda que parecesse se tratar de mera disputa política em torno da redistribuição do poder jurisdicional (o que não deixa de ser, nalgum nível, verdadeiro), a tese da competência penal-trabalhista sempre se calcou em uma explícita argumentação jusfundamental: a da revalorização das normas de direito social (o que envolve, em boa medida, direitos fundamentais de segunda geração). Se houve, “in casu”, hipótese

justificável de inflexão da norma do artigo 109, VI, 1ª parte, da CRFB, foi travestida de “interpretação” (cabendo estabelecer, oportunamente, as conexões entre as duas técnicas); e pretendeu dirimir, na sua base, um conflito de jurisdição que opunha uma razão de ordem histórico-formal (o teor literal da Constituição e a rejeição parlamentar das emendas que outorgavam competência penal à Justiça do Trabalho) a uma razão de ordem teleológico- substancial (a necessidade de reduzir o déficit de efetividade das normas trabalhistas e a maior aptidão dos juízes laborais para julgar questões penal-trabalhistas). Poder-se-ia, em tais extremos, “flexibilizar” o texto constitucional e ignorar a “mens legislatoris”?

É curioso, ademais, o caso do “modelo de Stuttgart”, que examinaremos com mais vagar adiante (tópico 23.2, infra). Referendando iniciativas oficiais e intervenções procedimentais incomuns que, no limite, podiam combalir o sentido de imparcialidade judicial, as suas inflexões brotavam de um escopo de “socialização” do processo tendente a deflagrar inevitáveis tensões entre manifestações deontológicas de uma mesma garantia fundamental (a saber, a do devido processo legal ― “faires Verfahren” , subjacente à ordem constitucional alemã84). Com efeito, a cláusula geral de garantia da tutela jurídica processual efetiva e equitativa (“Gewährleistung eines effektiven und fairen

84 Cf. Karl Heinz Schwab, Peter Gottwald, “Verfassung und Zivilprozeβ”, in Effektiver Rechtsschutz und

Verfassungsmässige Ordnung: Die Generalberichte zum VII. Internationalen Kongreβ für Prozeβrecht, Würzburg 1983, Walther J. Habscheid (Hrsg.), Bielefeld, Gieseking, 1983, pp.01-89 (especialmente pp.64-

67). In verbis: “Die Wurzel des Rechts auf ein faires Verfahren wird in der Bundesrepublik Deutschland aus

der Verknüpfung eines materiellen Grundrechts mit dem Rechts- und Sozialstaatsprinzip gesehen” (p.65). Cf.,

ainda, Max Vollkommer, “Der Anspruch der Parteien auf ein faires Verfahren im Zivilprozeß”, in

Gedächtnisschrift für Rudolf Bruns, Rudolf Bruns, Johannes Baltzer et al. (hrsg), Berlin, Franz Vahlen, 1980,

pp.195-219; e, mais incidentalmente  em ambiente bem específico , Bartosz Sujecki, Das elektronische

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Rechtsschutzverfahrens” 85) supõe, por um lado, a estrita observância do procedimento legal para, assim, fazê-lo sempre equânime; mas determina, por outro lado, o exercício de poderes assistenciais e a prática de atos atípicos para fazê-lo sempre efetivo, como diremos na Parte III. Eis, no detalhe, uma situação ponderável para a qual teorias como a de ALEXY não dedicaram suficiente reflexão (vide, supra, a nota n. 82).

III. Dir-se-á que, em todos esses casos, o conteúdo das decisões infletoras admite explicação de feitio diverso. Poder-se-ia, e.g., fundamentar todas as inflexões identificadas na Justiça do Trabalho brasileira com o próprio princípio da proteção (de direito material) 86

, confessando o viés ideológico do processo do trabalho e a propensão do Judiciário trabalhista em favorecer a classe trabalhadora em todas as circunstâncias possíveis. Em o fazendo, porém, abdica-se da mais remota possibilidade de se construir um modelo racional de decisão que aspire à universalidade (i.e., à aplicabilidade em todas as searas do processo jurisdicional). Abdica-se, outrossim, da própria ideia de uma teoria geral do processo87: o processo laboral, por ser um processo de classe, não compartilharia dos valores liberais da processualística moderna e serviria, apenas, à (re)apropriação operária da mais-valia usurpada pela empresa capitalista. Ficaria ao largo, pois, a função de segurança do

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