• Nenhum resultado encontrado

Tampouco se pode afirmar, hoje em dia, que o modo de atuação judicial, notadamente nas atividades decisórias, seja necessariamente o lógico-cartesiano A se

considerar a estrutura de pensamento que em geral subjaz àquelas “intervenções intuitivas”, sequer se poderia dizê-la, sempre, racional. Afinal, em se elegendo resultados concretos para depois lhes buscar a “ratio decidendi”, subverte-se a lógica formal cartesiana (pressima maior v premissa menor → conclusão112) e arrisca-se a deflagrar uma

ainda hoje, nos processos judiciais de desapropriação ― artigo 20 do Decreto-lei n. 3.365/1941). Tornaremos a esse tema adiante (infra, tópico 26.3). No que concerne especificamente ao processo de busca e apreensão de coisa alienada fiduciariamente, cf., de nossa lavra, Tratado de alienação fiduciária em garantia: Das bases

romanas à Lei n. 9.514/97, São Paulo, LTr, 1999, passim (especialmente tópico 6.1).

112 Parte-se, a rigor, da própria premissa menor (e.g., “A é assassino”), determinada por um ato de vontade

não racionalizado (“intuitivo”?), para depois associá-la à premissa maior (e.g., “o assassino deve ser punido com a pena X”) e desfechar-se a conclusão (no caso, “A deve ser punido com a pena X”). Note-se que, nessa perspectiva, o centro de gravidade de toda fundamentação reside na premissa menor (Karl Engisch,

Introdução ao pensamento jurídico, trad. J. Baptista Machado, 8ª ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2001,

p.85), justamente aquela definida “intuitivamente”. Observe-se, outrossim, que ― no exemplo dado (retirado de ENGISCH) ― a premissa menor pressupõe outro silogismo, para efeito de subsunção, no qual a premissa maior é o tipo penal abstrato e a premissa menor é a conduta fática de “A”, culminando com a conclusão “A é assassino”. Pois bem: também aí, tende-se a subverter o modelo lógico-formal cartesiano; mas, agora, por aferição intuitiva da própria conclusão: parte-se dela (“A é assassino”) para depois combinar, em termos justificantes, os fatos (premissa menor) e a norma “in abstracto” (premissa maior). Assim se explica, a nosso sentir, a jurisprudência consolidada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (e acenada nos tribunais superiores), que imputa a condição de homicida doloso (por dolo eventual ― artigo 18, I, 2ª parte, do CP),

independentemente da aferição concreta do elemento psicológico (parte-se, a rigor, de uma “presunção”), a

tantos quantos, sobreviventes, tenham participado de uma competição automobilística não autorizada (os populares “rachas”) que resulte em morte de expectadores, competidores ou transeuntes. Veja-se, e.g., ac. STF, HC 71.800-1, 1a T., rel. Min. CELSO DE MELLO, in DJU 03.05.96; Ac. STJ, HC 3.479-1-SP, 5a T., rel. Min. JESUS COSTA LIMA, in DJU 05.06.95. Para a nossa crítica (no plano do Direito Penal), cf., de nossa lavra, Teoria da imputação objetiva no Direito Penal Ambiental brasileiro, São Paulo, LTr, 2005, pp.140-141 e notas ns. 318 e 319.

64

justiça de casuísmos, ditada por pulsões emocionais e/ou ideológicas, que não consegue se repetir em padrões racionais (mesmo sob circunstâncias objetivamente uniformes).

Nesse diapasão, já observara ISAY113, em 1929, que o jurista ― e em especial o juiz ― fundamenta exteriormente a sua decisão concreta a partir da lei (satisfazendo, assim, o princípio da legalidade e o fetiche positivista); frequentemente, porém, descobre a sua decisão por vias outras: intuitivamente, pelo sentido jurídico primordial, pela razão prática ou mesmo pela sã razão humana114 (dir-se-ia a “boa razão”?). Amiúde, a decisão é, em si mesma, “irracional”, no sentido de que não se formou por métodos jurídicos racionais; a fundamentação na norma abstrata ― que tanto pode ser a norma substantiva quanto a norma adjetiva ― passa a ter importância secundária, ancorada nas suas funções de controle e legitimação. Mais recentemente (1956), também ESSER115 encaminhou-se em direção análoga, reconhecendo, na pré-compreensão que o juiz tem do caso (e raramente não a terá), uma espécie de “juízo constitutivo de pré-decisão”. Para ESSER,

“a prática não arranca dos “métodos” doutrinários da descoberta [Rechtsfindung] do Direito, mas serve-se deles somente para fundamentar lege artis a decisão mais ajustada, de acordo com o seu entendimento do Direito e dos fatos”116.

113 Hermann Isay, Rechtsnorm und Entscheidung, Berlin, Franz Vahlen, 1929, pp.60 e ss. Sobre as

dificuldades em se divisar com nitidez as relações e distinções entre a norma e a decisão, v. Isay, op.cit., p.32 e ss.

114

Anos depois, J. ESSER recorreria a noções bem semelhantes a essas, como as de “valorações pré- sistemáticas” (ou seria melhor dizer “extrassistemáticas”), “preferências intersubjetivamente reconhecidas”, “consensos valorativos”, “quadros reguladores pré-jurídicos” ou “atitudes extrajurídicas de expectativa e convicção” (cf. Josef Esser, Grundsatz und Norm in der rechterlichen Fortbildung des Privatrechts, Tubingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1956, pp.162 e ss.

115

Josef Esser, Grundsatz…, pp.19-20 e 256; e, do mesmo autor, Vorverständnis und Methodenwahl in der

Rechtsfindung: Rationalitätsgarantien der richterlichen Entscheidungspraxis, Frankfurt am Main, Athenäum,

1970, pp.132-133 e 175-176.

116 J. Esser, Grundsatz…, p.07. Pré-compreensão, ou pré-entendimento, são traduções correntes do alemão

“Vorverständnis”. Acompanhando CANOTILHO (Constituição dirigente e vinculação do legislador,

65

ENGISCH117 reagiu a tudo isso, que chamou de “puro psicologismo”, anotando que a ideia das formulações judiciais intuitivas desconhece os problemas específicos da lógica normativa e confunde, inadvertidamente, a “quaestio facti” das condicionantes psicológicas e sociológicas da decisão com a “quaestio iuris” dos pressupostos formais e materiais do exercício da jurisdição (que não seria um problema psicológico-sociológico, mas um problema lógico-gnoseológico puro). Para a Ciência do Direito, interessaria apenas essa última, porque

“Qualquer que seja a função que possam desempenhar as fontes irracionais da descoberta do juízo ou sentença judicial, o juiz, perante o seu cargo (função) e a sua consciência, tão-só poderá sentir-se justificado quando a sua decisão também possa ser fundada na lei, o que significa, ser dela deduzida. Neste ponto de vista, a descoberta e a fundamentação da decisão não são procedimentos opostos. A tarefa que o juiz tem perante si é esta: descoberta duma decisão (solução) fundamentada através da lei”118.

No mesmo diapasão, o próprio LARENZ ensaiou uma crítica à posição de ESSER e que tais, aduzindo que

“ESSER não foi o primeiro a notar que toda a interpretação requer intervenção espiritual activa e que o seu resultado, o texto entendido em determinado sentido, corporiza algo de novo face ao ponto de partida, o texto “tal como se encontra na lei”. Deve-se perguntar, porém, se ESSER não subvalora em excesso o significado do texto e com ele a participação do legislador na law in

action, ao sublimar repetidamente que o que é na

realidade Direito vigente é determinado em primeira mão pela jurisprudência (ou seja, na terminologia de ESSER: a actividade decisória dos tribunais). A questão está em saber como é que esta se prende com o texto legal. Indaga-o no sentido de achar a solução do caso em conformidade com o estatuído pelo Direito, ou utiliza-o com o fito de guarnecer com uma fundamentação

“satisfatória” uma solução já encontrada por outros meios? No seu escrito Vorverständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung, que influenciou

grandemente a discussão, crê ESSER poder asseverar que, em regra, a actividade jurisprudencial procede de acordo com o segundo modo, e considera, de modo

117 Karl Engisch, Introdução…, pp.84-85 e 106-110 (nota n. 5). Ver também, do mesmo autor, Die Idee der

Konkretisierung in Recht und Rechtswissenschaft unserer Zeit, 2. Aufl., Heidelberg, C. Winter, 1953, pp. 188-

190.

66

aberto e claro, tal procedimento como legítimo. […] ESSER distingue entre o achamento da decisão, com o que se chegaria a uma decisão materialmente adequada do caso concreto e a fundamentação da decisão, realizada as mais das vezes ulteriormente, que serve à demonstração da compatibilidade da decisão encontrada por outras vias com o Direito legislado, e onde o juiz utiliza o “método” que aqui se demonstrar adequado a esse fim. […] Mas ESSER não chega a indicar uma

via de comprovação da correcção de decisões achadas, nestes termos, independentemente da lei;

insiste-se no juízo de valor pessoal do juiz decisor ”119.

Nessa polêmica, havemos de nos posicionar, desde logo, ao lado de ISAY e ESSER (entre outros120). Ainda que pedagogicamente se possa distinguir entre o “momentum” lógico-gnoseológico do juízo jurídico-formal e o “momentum” psicológico-antropológico da pré-compreensão, é certo que, fenomenicamente, esses momentos ora serão simultâneos, ora discreparão no tempo, mas com preeminência axiológico-cronológica do segundo. Em via de regra, é a descoberta da solução para o caso concreto que funciona como pressuposto para a fundamentação do julgado, antecipando-o no mundo-do-ser; raramente se dá o contrário. Por isso, enganam-se os que pensam que a fundamentação da sentença (exigida, p.ex., pelo artigo 93, IX, da CRFB) é o quanto basta para torná-la justa. Nem sempre a fundamentação sentencial veicula integralmente a ideia de justiça que motivou o julgador. Ademais, os conteúdos de justiça das decisões judiciais tanto dependem de sua “valoração equitativa”, no sentido da ancoragem normativa a respaldá-las, quanto de sua “valoração material”, que se liga aos valores, às ideologias e aos objetivos que predeterminam o sentido de julgar121.

119 Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, trad. José Lamego, 3ª ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian,

1997, pp.194-196 (g.n.). Para LARENZ, é na inexistência de um modelo racional de controle das tais “decisões intuitivas” que reside, precisamente, as debilidades da concepção de ESSER (idem, p.196, nota n. 88). Eis, entre outras, a inspiração doutrinal que nos conduziu ao presente estudo.

120 Também J. Frank (citado por ESSER) e Gustav Radbruch, Konrad Zweigert, Einführung in die

Rechtswissenschaft, 9. Aufl., Stuttgart, Koehler, 1952, pp.160 e ss..

121

Recorremos, aqui, à distinção que FIKENTSCHER implementou entre “justiça equitativa” e “justiça

material”; binômio que, no âmbito do processo, pode ser reconduzido à contraposição semântica entre o valor-segurança (= igualdade) e o valor-justiça (= liberdade). Cf., para a primeira referência, Wolfgang

Fikentscher, Methoden des Rechts in vergleichender Darstellung, Tübingen, J. C. B. Mohr, 1976, v. 4, pp.190 e ss.; e, quanto ao mais, veja-se o tópico 1.1, supra (na remissão a ALEXIS DE TOCQUEVILLE, S. GUINCHARD e F. FERRAND).

67

Haverá, decerto, hipóteses em que o juiz simplesmente recorre ao esquema lógico- cartesiano de decisão e deriva da lei “in abstracto” a solução do caso concreto, sem outras valorações, prévias ou concomitantes; mas ousaríamos dizer serem hipóteses marginais, ante o pendor humano à geração quase espontânea de pré-compreensões. Outrossim, a probabilidade de formação de juízos marcados por uma indiferença primordial subjetiva (= ausência de pré-compreensão) decai na proporção da gravidade e/ou do interesse individual e coletivo que o caso suscitar. Por tudo isso, as decisões de fundo intuitivo ou pragmático ― que açambarcam, nos limites deste estudo, as decisões infletoras de normas adjetivas ― não podem ser meramente ignoradas, como tampouco podem ser reputadas teratológicas “ab ovo”. Afinal, parecem remitir à “regra”, não à exceção. Donde se poder afirmar, sem titubeios, que a questão psicológico-sociológica interfere ― e muito ― no problema lógico-gnoseológico da descoberta do direito aplicável (“Rechtsfindung”)122.

VII. Alfim, quanto à pseudo-relação entre a flexibilização pontual das normas

Outline

Documentos relacionados