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Também se sabe que o processo civil romano é convencionalmente classificado em três sistemas sucessivos, a saber, o das ações da lei (“legis actiones” ― infra, tópico

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

II. Também se sabe que o processo civil romano é convencionalmente classificado em três sistemas sucessivos, a saber, o das ações da lei (“legis actiones” ― infra, tópico

7.3.2), o formulário (“per formulas” ― infra, tópico 7.3.3) e o extraordinário (“cognitio extraordinaria” ― infra, tópico 7.3.4). O primeiro sistema foi utilizado no período pré- clássico (até 149-126 a.C.), em que também foi proclamada a Lei das XII Tábuas (entre 451-449 a.C.). Logo, em sede processual, dir-se-ia que a Lei das XII Tábuas “pertenceu” ao sistema das “legis actiones”. No entanto, as suas peculiaridades e a sua importância histórica como monumento jurídico recomendam o seu estudo apartado.

No sistema das “legis actiones”, como se verá com vagar, o chamamento do réu a juízo (“ius uocatio”) era incumbência do autor. E, com efeito, a Lei das XII Tábuas previa, na fase de introdução de instância (Tábua I, 1 e 2), que o autor, ao encontrar nas ruas o réu, deveria chamá-lo a juízo, empregado os termos solenes (“verba certa”). Caso o réu se recusasse a atender, o autor poderia tomar testemunhas e conduzir o réu à presença do magistrado judicial, ainda que tivesse de empregar a força. Acrescia-lhe, porém, um ônus, se o réu fosse velho ou enfermo: o autor deveria oferecer-lhe, para a condução, liteira ou cavalo. Transparece outra vez o tratamento indistinto que o processo antigo reservava a a.C., são eleitos os decênviros, que, durante o ano de 451 a.C., elaboram um código em dez tábuas. Mas, como o trabalho estava incompleto, elege-se novo decenvirato (do qual faziam parte alguns membros do primeiro, e ― o que era inovação ― alguns plebeus), que, em 450 a.C., redige mais duas tábuas, perfazendo, assim, o total de 12” (Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.28).

322 Uma vez que “en el derecho [romano] más antiguo no se conocía la propiedad privada sobre el suelo”

(Theodor Mommsen, Derecho penal romano, p.42).

323

Os conceitos de processo/procedimento penal e de processo/procedimento civil são, aqui e em todo este § 7º, utilizados por aproximação, pois “the spheres of civil and criminal jurisdiction of no modern state

correspond exactly to those of Rome, nor indeed were the spheres marked out in precisely the same manner at different periods of Roman history” (Greenidge, The Legal Procedure…, p.06). No mesmo sentido, quanto à

relativa indistinção entre delitos civis e penais (sobretudo na Roma pré-clássica), vide, supra, a nota n. 5.

158 partes e testemunhas, dada a possibilidade de se conduzir a juízo, coercitivamente, o próprio réu; remanescem, ademais, traços do direito primitivo e do desforço privado, uma vez que a condução forçada haveria de ser promovida pelo próprio autor, e não por agentes do Estado (“manu militari”)325. Por outro lado, observa-se, já no V século a.C., a presença da forma como garantia processual: ao que tudo indica, o réu somente estava obrigado a atender a convocação ― sob pena de condução forçada ― se o autor empregasse a “verba certa”. Essa suposição ampara-se no próprio espírito do sistema das “legis actiones”, que ― ver-se-á ― foi extremamente formalista, a ponto de sacrificar interesses materiais quando não se observava certa forma (podendo-se falar, em muitos aspectos, de uma superfetação da forma, transmudando garantia em obséquio). Outras passagens e documentos sugerem que, mesmo nessa fase, o demandado poderia eximir-se de comparecer a juízo, se fornecesse ao demandante um “uindex”, que o substituiria, “litigando em seu lugar”326.

325 O que, de resto, acontecia no processo ático (supra) e se perpetuou em Roma, sobretudo nas “actiones in

rem”, em que “o demandado, após ter sido vencido com a declaração de que o sacramentum era justo [no

caso da “actio sacramenti”], perdia a posse da coisa imediatamente, sem se considerar sua vontade, já que o

vínculo era apenas entre o demandante e o objeto do litígio. A execução era feita imediatamente e estava presente neste ato privado, pelo qual o vencedor do litígio tomava a coisa e a integrava no seu patrimônio”

(Sérgio Muritiba, Ação Executiva Lato Sensu e Ação Mandamental, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p.19 ― g.n.). O mesmo se passava no direito germânico antigo (cujo escorço histórico-crítico terminamos por suprimir desta Tese, ante a aparente inexistência de quaisquer regras ou instrumentos que lembrassem as garantias processuais modernas), onde se considerava “toda falta de cumprimento da obrigação como ofensa

à pessoa do credor”, de modo que “este era autorizado a reagir e a reparar o seu direito lesado, pelo emprego da força, sem necessidade de dirigir-se a qualquer terceiro, autoridade, ou particular, para o exame imparcial de suas afirmações” (cf., por todos, Enrico Tullio Liebman, Processo de Execução, Araras,

Bestbook, 2001, pp.25-26). Entre os romanos, a “técnica” do desforço privado para a satisfação dos interesses judicialmente chancelados só seria definitivamente abolida com a generalização das “actiones iudicati”, que surgiram como mecanismo de efetivação das decisões que condenavam ao pagamento de certa quantia e foram ulteriormente extendidas a todos os casos, de direitos obrigacionais a reais, suprimindo paulatinamente a força executiva das ações reais. Voltaremos a elas nos tópicos 7.3.3 e 7.3.4.

326 Cf., por todos, Max Kaser, Karl Hackl, Das Römische Zivilprozessrecht, 2. Aufl., München, C. H. Beck,

1996, pp.64-66: “Der Geladene selbst darf sich der mittels manum inicere erlaubtermaßen ausgeübten

Gewalt des Ladenden nicht widersetzen. Nur einen Dritten, der als vindex auftritt, wird gestattet, den Geladenen dem Zugriff des Ladenden zu entziehen; mit welcher Wirkung, ist allerdings umstritten. Sicher ist nur, daß er sich durch unberechtigtes Eintreten dem Ladenden haftbar machte. In diesem Zusammenhang hat ein weiter XII-Tafelsatz Bedeutung, wonach für einem Grundbesitzer wieder nur ein Grundbesitzer vindex sein kann” (p.66). Veja-se, também, Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.239-240. Como se vê, os textos

romanos não deixam claro se se tratava, em termos modernos, de algo como uma representação (como houve, no processo formulário, tanto na instância “in iure” como na instância “apud iudice”, levando inclusive a uma das hipóteses de “actiones” com transposição de sujeito), de algo como uma substituição processual (que, embora não o diga a lei brasileira, pode ser ativa ou passiva: na expressão alemã, “aktive oder passive

Prozessstandschaft”) ou, ainda, de algo como uma sucessão subjetiva; mas se supõe que, em tais casos, o

“substituto” pudesse ser responsabilizado pessoalmente em caso de sucumbência, o que os aproximaria da figura da sucessão processual (como parece sugerir o fato ― citado por KASER [supra] ― de que, se o

159 Obtida a nomeação do “iudex” ― deflagrando-se a instância “apud iudicem”327―, determinava a Lei das XII Tábuas (Tábua I, 7 e 8) o obrigatório comparecimento dos litigantes; mas, nesse estádio processual, o não comparecimento teria consequências diversas daquelas previstas na introdução de instância: ausente uma das partes, o “iudex” deveria aguardar até o meio-dia; e, se não chegasse até esse horário, o juiz popular ditaria sentença favorável ao litigante comparecente. Eis aí o registro histórico mais remoto da revelia, com efeitos próximos àqueles conhecidos das legislações processuais hodiernas.

Em matéria executória, a Lei das XII Tábuas é o primeiro monumento jurídico romano conhecido a prever claramente a “manus iniectio” como instrumento processual de execução (Tábua III, 1). Naquele tempo, o procedimento da “manus iniectio” não fugia à tendência do direito arcaico: era formalista, primitivo e rude328. O réu condenado a pagar certa importância na “actio sacramenti”, na “iudicis postulatio” ou na “condictio” ― dito “iudicatus” ― ou aquele que houvesse confessado a razão do autor na fase “ in iure” ― dito “confessus” ― deveria solver sua dívida em trinta dias (os “dies iusti”). Não o fazendo, esse devedor poderia ser conduzido à presença do magistrado judicial, de bom grado ou à força, pelo seu credor, que seguraria uma parte de seu corpo perante a autoridade e pronunciaria a seguinte fórmula solene:

demandado fosse proprietário de bem imóvel, o “uindex” teria de sê-lo também; é, ademais, o que ocorreu mais tarde, no sistema formulário, com a “actio in factum” que se dava ao autor contra o “uindex” ausente; e, também, o que ocorria no procedimento da “manus iniectio”). No entanto, cotejando o “uindex” da “in ius

vocatio” com o da “manus iniectio”, KASER e HACKL viram diferenças bem mais sensíveis, observando

que “die beidem Typen des vindex stehen sich jedoch weniger nahe, als vielfach angenommen wird. Beiden

ist offenbar gemeinsam, daß der vindex einem mittels manum unicere vollzogenen rituellen Zugriff eines anderen auf eine dritte Person mit einem vermutlich gleichfalls ritualisierten Akt entgegentritt, mit dem er diese Person aus dem Zugriff befreit, dafür aber dem Zugreifer eine Haftung übernimmt. In dem Funktionem und den ihnen angepaßten Folgen weichen sie jedoch stark voneinanber ab”. No direito processual brasileiro,

sobre a distinção entre as figuras da representação, da substituição processual e da sucessão (com base, respectivamente, nos artigos 12 e 36, no artigo 6º e no artigo 592 do CPC), cf., por todos, Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, São Paulo, Malheiros, 2001, v. II, pp.114-116, e 2004, v. IV, p.119-124 (em síntese, o representante não é parte; o substituto processual ― na visão de DINAMARCO

― é parte legitimada extraordinariamente, defendendo interesse alheio em nome próprio; e o sucessor é

parte legitimada ordinariamente, mas em caráter secundário ou independente, pois o sujeito passa a figurar

em uma relação jurídica processual ou material preexistente, ocupando as posições jurídicas antes imputadas a outro sujeito).

327 Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.241. 328 Idem, p.252-251.

160 “Quod tu mihi iudicatus (siue damnatus) es sestertium X milia, quando non soluisti ob eam rem ego tibi sertertium X milium iudicati manum inicio”329.

Diante disso, ao réu abriam-se duas possibilidades: ou pagava a dívida (e a “manus iniectio” não prosseguia), ou indicava um “uindex” (terceiro) para, em seu lugar, contestar a legitimidade do pedido do autor (alegando, e.g., a nulidade da sentença ou a quitação da dívida). Não podia defender-se pessoalmente. A indicação do “uindex” liberaria o devedor, mas implicaria a instauração de um novo processo, no qual seria parte o próprio “uindex”; se as suas alegações de defesa fossem recusadas, ele mesmo seria condenado a pagar o dobro da dívida primitiva.

Caso não ocorresse nem uma coisa nem outra, o devedor originário era “adjudicado” ao credor, podendo ser preso a cadeias com peso não inferior a quinze libras, por sessenta dias, vivendo às suas próprias expensas ou às expensas do devedor (tendo direito, nessa hipótese, a no mínimo uma libra de farinha). Nesse período de detenção, se não se conciliassem, o credor era obrigado a levar o devedor a três feiras sucessivas, para apregoar, no “comitium” (perante o magistrado), o valor da dívida, dando-o a conhecer publicamente para que parentes ou amigos lhe solvessem o débito. E, se tampouco ali o abonassem, o devedor podia ser morto ou vendido, como escravo, fora dos limites de Roma. É claro que a plena satisfação dos direitos do credor devia-se sobretudo ao temor à morte e/ou à escravidão; assim, os pregões em feiras também funcionavam como uma espécie de “garantia” para o devedor, já que a provocação pública de terceiros para lhe quitar o débito ― dir-se-ia, hoje, remição (como previam os artigos 787 a 790 do CPC brasileiro, revogados pela Lei n. 11.382/2006) ― era um expediente obrigatório, tendente a lhe abreviar a privação de liberdade e escusar a sua morte ou alienação.

329 “Porque tu me deves por julgamento (ou por condenação) dez mil sestércios, e não me pagaste, lanço a

mão sobre ti [“manus iniectio”] por causa dos dez mil sestércios”. Essa fórmula foi transmitida à posteridade

por GAIO (Institutas, IV, 21); em razão dela (e da expressão “damnatus” nela contida), autores modernos acreditaram haver uma terceira hipótese da utilização da “manus iniectio” (além da execução do “iudicatus” e do “confessus”): a execução do devedor obrigado por “damnatio”, tanto em caso de “nexum” como no legado “per damnationem” (cf. Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.250 e nota n. 383; cf., ainda, Raymond Monier, Manuel Élémentaire de Droit Romain, 6e éd., Paris, Domat-Montchrestien, 1977, p.148).

161 É flagrante, contudo, que ― para os padrões atuais ― o procedimento executório da “manus iniectio” era manifestamente desproporcional, ignorando qualquer outro valor jurídico que não o patrimônio e suas projeções relacionais (créditos e débitos). E, diversamente do que inspirava a violência de outros procedimentos do direito antigo (como, e.g., o sumério-babilônico ― supra), o excesso de rigor no processo romano pré-clássico servia mesmo à satisfação dos interesses do autor, não à punição de quem resistisse à autoridade do julgamento ― até porque “a sentença, no processo das ‘legis actiones’, é irrecorrível, mas se o réu não quiser executá-la, no caso de ter sido condenado, o ‘iudex’ não pode obrigá-lo, com emprego de força, a cumpri-la, pois é ele um simples particular, não dispondo, portanto, do ‘imperium’”330. Nessa perspectiva, o devedor não tinha praticamente qualquer garantia (a não ser, no período de detenção, a garantia elementar de subsistência ― ração mínima de farinha ― e a de ter a sua dívida apregoada no “comitium”). Adiante, sequer as garantias elementares (vida e liberdade) eram concedidas: assim é que, perpetuando-se a inadimplência, o devedor podia ser vendido ou morto; e, no caso de concurso de credores, além de matá-lo, haviam de esquartejar o seu cadáver no além-Tibre (Tábua III, 6)331. Dificilmente se conseguiria imaginar um processo de

330

Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.241-242. Ademais, mesmo na “manus iniectio”, a coerção era nitidamente instrumental: ligava-se ao exercício da “coercitio”, que era o poder-de-agir concreto do magistrado no desempenho de suas atividades oficiais, habilitando-o a fazer cumprir coativamente todas as suas ordens, notadamente em casos de insubordinação e desobediência. Logo, os atos de força não decorriam do desrespeito à autoridade da decisão, mas da necessidade de satisfazer o direito. Nas palavras de MOMMSEN, “el magistrado […] no debía hacer uso de la coercición [a “coercitio”] contra un acto que él

desaprobara, a la manera como el censor censuraba, sino que tan solo había de emplearla con el fin de

hacer posible [...] el necesario despegamiento de su actividad oficial” (= caráter instrumental); e, para

mais,“si, hablando en términos generales, podemos considerar la desobediencia y la coercición como

elementos correlativos, lo propio que sucede con el delito y la pena, sin embargo, en tanto que el concepto de delito estaba perfectamente determinado, por el contrario, no lo estaba el de la desobediencia al magistrado,

ni lo estaba tampoco otro íntimamente relacionado con el mismo, a saber: el de la denegación del respeto debido a la magistratura. Si después de haber sido abolida legalmente, en el campo del derecho privado

[vide nota seguinte], la ejecución personal por causa de deudas pecuniarias, el deudor de la comunidad

continuaba expuesto a dicha ejecución, el fundamento de semejante hecho consistía en que la coercición no

tenía necesariamente que intervenir en la ejecución por parte del magistrado, pero podía fácilmente acudirse a ella” (Theodor Mommsen, Derecho penal romano, pp.26-28 ― g.n.). Observe-se, por outro lado,

que o Direito Romano relativizava sensivelmente o alcance da “coercitio”, tanto em função da pessoa do coagido (cidadão ou não cidadão, varão ou mulher) como em função da autoridade investida (magistrados com “imperium”, tribunos da plebe, sumo pontífice ― em relação aos sacerdotes sob suas ordens ― e autoridades municipais; já os questores e os magistrados inferiores não a exerciam, senão por delegação dos cônsules).

331 “Tertiis nundinis partis secanto. Si plus minusue secuerent, se fraude esto”. Historicamente, essa

possibilidade legal ― que, segundo MOREIRA ALVES, explica-se por ideias religiosas primitivas (Direito

Romano, v. I, pp.251-252, nota n. 390) ― persistiu até a proclamação da célebre lex Poetelia Papiria, em 428

162 execução mais agressivo, a desconhecer quaisquer garantias pró-devedor. Como se verá, todavia, o rigor da “manus iniectio” seria abrandado na legislação que sucedeu a Lei das XII Tábuas (infra, tópico 7.3.2, nota n. 361).

III. No processo penal, a Lei das XII Tábuas introduziu regra de competência que,

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