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O marco histórico inaugural da substituição do sistema das “legis actiones” pelo sistema formulário deu-se com a promulgação das leis Aebutia (século II a.C.); mas a

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

I. O marco histórico inaugural da substituição do sistema das “legis actiones” pelo sistema formulário deu-se com a promulgação das leis Aebutia (século II a.C.); mas a

177 substituição só se concluiu com a proclamação das duas lege Iuliae Iudiciariae (ano 17 a.C.). Isso releva unicamente para o processo civil, ao qual se aplicou o sistema formulário; entretanto, como se verá, o final da república também reservou modificações importantes para o processo penal. Daí porque, ao final, esse assunto será igualmente tangido, em complemento ao tópico 7.3.1, como também para o cotejo sistemático, embora já não se trate propriamente de “processo formulário”.

Especula-se que a origem sociológica do sistema “per formulas” radique nos procedimentos civis que tramitavam perante os pretores peregrinos, muito diversos daqueles das “legis actiones” (que se destinavam exclusivamente aos conflitos entre cidadãos romanos)370. Nesses procedimentos, as pretensões eram livremente expostas pelos litigantes, em geral estrangeiros que se expressavam em idiomas diferentes do latim; ao pretor peregrino restava compreendê-las e reduzi-las ao vernáculo, redigindo instruções aos “recuperatores” (juízes populares designados em colegiado pelo próprio pretor), que a partir delas julgariam a causa371 (instância “apud iudicem”). Eis a origem remota da fórmula (dita também “concepta verba”, como em Gaio, Institutas, IV, 30) ― sugerindo, para mais, que a internacionalização das jurisdições seja um fator determinante para a evolução dos procedimentos, senão para a sua própria deformalização.

370 Nesse sentido, GREENIDGE relaciona a transição de sistemas com a superioridade dos procedimentos

do“ius honorarium” ou “praetorium” ― que era o direito jurisprudencial, construído nos tribunais, geralmente por meio dos editos de magistrados com funções judiciais ―, em relação aos procedimentos do

“ius civile” ― constituído pelas leis e pelos costumes e, mais tarde, pelos senatus-consulto, pelas respostas

dos jurisconsultos e pelas constituições imperiais ― , a que pertenciam as “legis actiones”. Observa, a propósito, que “the permission accorded by the lex Aebutia was probably due to the feeling that procedure of

the civil law was behind that of honorary jurisdiction. It is probable that the formula had first been used in cases in which the interests of peregrine were concerned, that from the foreign it had crept into the urban

album, to be employed by the praetor urbanus, as the expression of the jurisdiction which rested on his imperium. Hence the formula would long have been the mark of every iudicium based on the imperium (quod imperio continetur), the legis action the mark of every court based directly or indirectly on a lex (iudicium legitimum)” (idem, p.172 ― g.n.). Cf., ainda, Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.256. Quando, porém, o sistema “per formulas” generalizou-se, invadindo a esfera da jurisdição “legítima”, o conceito mesmo de jurisdição legítima teve de alterar-se, como revela GAIO, passando a radicar em três características principais: (a) jurisdição exercida nos limites políticos da cidade de Roma; (b) jurisdição destinada à resolução de litígios entre cidadãos romanos; (c) “iudicium” proferido por “unus iudex” (e não pelo colégio de “recuperatores”), sendo sempre um cidadão romano (Gaio, Institutas, IV, 103-104; Greenidge, The Legal

Procedure…, pp.173-174).

371 Essa tese, hoje predominante, é tributada a HUSCKE (cf. Paul-Frédéric Girard, Manuel Élémentaire de

178 O papel da lex Aebutia na transição dos sistemas não é perfeitamente conhecido. Alguns creem que ela teria apenas acumulado, aos ritos das “legis actiones”, a exigência da fórmula, ditada pelo magistrado judicial para fixar o ponto litigioso; outros entendem ― e essa versão tem acurado interesse na perspectiva da análise econômica do direito ― que aquela lei teria autorizado o emprego da fórmula apenas nos casos de “condictio” (supra, nota n. 359), substituindo-a, porque aos capitalistas romanos não agradava o prazo de trinta dias para a nomeação do “iudex”, que não havia em outros procedimentos (e.g., na “iudicis postulatio” ― nota n. 358) e atrasava a solução do litígio372; para outros, enfim, a lex Aebutia abrira aos litigantes o direito de optar pelo sistema das “legis aciones” ou pelo sistema “per formulas” (GIRARD373); ou, quem sabe, fora essa uma escolha facultada ao pretor, conforme bem lhe parecesse374. Ulteriormente, com as lege Iuliae Iudiciariae, o processo formulário tornou-se obrigatório em todos os casos, à exceção de três casos (processos perante o tribunal dos “centumviri”, processos de “damnum infectum” e processos de jurisdição voluntária375), que ainda desafiavam os procedimentos das “legis actiones”376.

O processo formulário prosseguiu observando o “ordo iudiciorum privatorum”, com uma fase “iu iure” e outra “apud iudicem”; entre elas, porém, mediava o “iudicium”, que era a concreção da “formula” (infra). Suas principais inovações, em relação ao sistema

372

E, com efeito, no sistema formulário, a nomeação do juiz popular já não exigia o prazo de trinta dias após a primeira audiência com o magistrado (Lex Pinaria), o que acelerou a tramitação dos processos. Daí, como se verá a seguir, a celeridade ser uma das características do processo formulário.

373 Manuel…, v. 2, pp.1057-1058.

374 Greenidge, The Legal Procedure…, pp.170-171. 375

A distinção conceitual entre jurisdição voluntária e jurisdição contenciosa exsurge bem reportada nos textos do século VI da era cristã, após a compilação do Digesto (que, pela notícia histórica, entrou em vigor no dia 30 de dezembro de 533 d.C., juntamente com as Institutas do imperador JUSTINIANO). De fato, as expressões “iurisdictio contentiosa” e “iurisdictio voluntaria” aparecem já em D. 1, 16, 2, pr., definidas e discrepadas. Mas, sendo o Digesto um trabalho de compilação dos “iura” ― i.e., das regras deônticas hauridas em obras dos jurisconsultos clássicos (que se contrapunham às “leges”, formadas pelas

“constitutiones principis”, e deviam reproduzir o direito das fontes formais em vigor nos períodos anteriores)

―, é lícito especular que a noção de jurisdição voluntária seja anterior ao período da “cognito

extraordinaria”, retroagindo pelo menos à época do processo formulário. Sobre o tema, veja-se, por todos,

KNÖRINGER (Dieter Knöringer, Freiwillige Gerichtsbarkeit, 4. Aufl., München, C. H. Beck, 2005, pp.01- 02), ressaltando que “der historisches Bezug auf die Digestenstelle gibt aber nichts dafür her, was unter dem

Begriff der ‚Freiwilligkeit’ dieser Gerichtsbarkeit zu verstehen ist“.

376 Para a completa exploração das hipóteses de transição do sistema das “legis actiones” para o sistema “per

formulas” ― que indiscutivelmente foi gradual, num processo histórico iniciado pela lex Aebutia e

provavelmente terminado pelas lege Iuliae Iudiciariae ―, cf. Greenidge, The Legal Procedure…, pp.169-175; Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.255-257.

179 anterior, foram as seguintes: (a) a maior celeridade e menores formalidades (abrandamento do viés formalista); (b) a perda do caráter exclusivamente oral do procedimento, com a introdução da fórmula (que era documento escrito onde se fixavam os pontos litigiosos); (c) a delegação formal de poderes ao “iudex” (outorgados no próprio “iudicium”, pelo magistrado judicial, que ― à diferença dos juízes populares ― detinha o “imperium”), para condenar ou absolver o réu (“iussus indicandi”); (d) a maior atuação dos magistrados judiciais no mundo da vida e no curso dos processos, com o aumento de seus poderes institucionais (inclusive para a construção pretoriana de novas ações, a tutelar situações mal amparadas pelo direito objetivo); (e) as condenações exclusivamente pecuniárias377.

Engendrava-se aqui, embrionária mas claramente, o princípio da correlação entre a demanda e a sentença como uma garantia processual das partes (o que, na fase anterior, podia ser apenas intuído, à mercê da “litis contestatio”, já que, a rigor, o “iudex” decidia a questão conforme a expunham as partes, sem qualquer base documental). Isso porque, no processo formulário, “o juiz popular […] julga o litígio conforme está delimitado na

fórmula, elaborada na fase in iure” 378. Antes, se havia uma especificação do direito na “in ius uocatio” e uma delimitação dos fatos na “litis contestatio” (supra), não se conhecem os efeitos processuais de tais atos-fatos, mesmo porque orais; agora, porém, surgia um instrumento formal e escrito379, de enunciação obrigatória, hábil a prevenir julgamentos “ultra vel extra petitum” (assemelhando-se ao que são, hoje, os despachos ou decisões saneadoras, como a do artigo 331, §2º, do CPC brasileiro380).

Distinguiam-se formalmente a “formula” e o “iudicium”. Aquela era o esquema “in abstracto” existente nos editos dos magistrados judiciais, servindo de modelo para o

377

Cf., por todos, Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.258. Quanto à última característica, vide nota n. 404, infra.

378 Idem, ibidem (g.n.).

379 Na verdade, houve quem discutisse a materialidade do “iudicium”, considerando-o meramente oral

(SCHLOSSMAN, ARANGIO-RUIZ). Hoje em dia, porém, há provas materiais da cartularidade do

“iudicium”: sã duas “tabulae” encontradas em Murécine (Itália) e publicadas em 1972, que constituem dois “iudicia” (fórmulas redigidas para o caso concreto) em “actiones certae creditae pecuniae”. Cf. Moreira

Alves, Direito Romano, v. I, p.261, nota n. 412.

380 “Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as

questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário” (redação da Lei n. 8.952/94).

180 caso concreto (i.e., para a utilização na instância “in iure”, com o preenchimento dos claros e a substituição dos nomes convencionais pelos de autor e réu). O “iudicium”, por sua vez, era o documento concretamente redigido, ao final da fase “in iure”, para fixar o estado e o alcance do litígio, nos exatos termos daquela “formula”381. Nada obstante, os romanistas costumam utilizar a expressão “fórmula” para significar as duas coisas382.

Passemos às fases do processo formulário.

II. Na introdução de instância (“in ius uocatio”), mantiveram-se em geral as características do sistema de “legis actions”; mas, a par disso, houve sensíveis inovações.

381 No exemplo de MOREIRA ALVES (Direito Romano, v. I, p.262), o edito do pretor urbano trazia a

fórmula: “Iudex esto. Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium X milia dare oportere, iudex,

Numerium Negidium Aulo Agerio sertertium X milia condemnato; si non paret, absoluito”. Num litígio

concreto, em que Tício e Caio contendessem por 500 sestércios, sendo Mávio o “iudex” designado, o

“iudicium” ficaria assim: “Mevius iudex esto. Si paret Caium Titio sestertius D milia dare oportere, iudex, Caium Titio sestertium D milia condemanto; si non paret, absoluto”. Tem-se aqui a provável origem histórica

da sentença documental, tal como hoje a conhecemos (com identificação do juiz, das partes, do objeto do litígio, do direito aplicável e do tipo de provimento); e, possivelmente, aí também estejam as raízes da concepção liberal-formal do julgamento como uma operação lógico-cartesiana, com a premissa maior (a lei), a premissa menor (os fatos) e a conclusão (a sentença) ― que, por sua vez, distribui-se igualmente em capítulos logicamente dispostos. A própria distinção entre as partes principais e as partes acessórias de uma fórmula (com posições certas e hierarquizadas), conforme a notícia de GAIO (Institutas, IV, 39 e ss.), evidencia essa concatenação lógico-formal na estrutura do pensamento jurídico romano: uma fórmula completa teria, como “partes formulae” (partes principais), a “intentio”, a “demonstratio” e a

“condemnatio” ou “adiudicatio” (essa, apenas nas ações de divisão de herança, de divisão de coisa comum

ou de demarcação de limites); e, como “adiectiones” (partes acessórias, que se incluíam a pedido de uma das partes, quando ocorressem determinadas circunstâncias), a “praescriptio”, a “exceptio” e a “replicatio”,

“duplicatio” e/ou “treplicatio”. A “praescriptio”, que deveria anteceder a “intentio” e a “demonstrario”,

era prejudicial e podia ser “pro actore” ou “pro reo”. A“intentio” expunha as pretensões do autor, com seus fundamentos de fato e de direito, pondendo ser certa ou incerta (preordenando, no último caso, a

“demonstratio”, para fins de acertamento perante o “iudex”); a “exceptio”, por sua vez, considerava o que,

na linguagem atual, dir-se-ia serem os fatos ou direitos impeditivos e extintivos do direito alheio: era a parte acessória do “iudicium” que tratava do direito próprio ou da circunstância que, alegada pelo réu, teria aptidão para paralisar as pretensões do autor.

382 Cf., por todos, Kaser, Hackl, Das Römische…, p.308: “Wir haben die formula des vorklassichen und

klassichen Formularprozessen, die auch iudicium heiß, als eine schriftlich aufgezeichnete Äußerung kennengelernt, die in ihrem vollständigen Bestand die Namen des bestellten Einzelrichters oder den Rekuperatoren und außerdem das “Prozeßprogramm” enthält, also den Inbegriff der zwischen den Parteien bestrittenem rechtserheblichen Fragen, über die Richter durch Urteil entscheiden soll” (g.n.). Aí está, a

propósito, um conceito preciso e detalhado do “iudicium”, referindo inclusive a sua forma escrita ― afastando, pois, as vacilações a esse respeito (supra, nota n. 377) ― e a sua funcionalidade maior (“guião sentencial”, ou “Prozeßprogramm”, a garantir a efetiva correlação demanda/sentença).

181 Segundo KASER, o autor devia procurar extrajudicialmente o réu e lhe comunicar, oralmente ou por escrito ― mas em privado ―, a fórmula da ação que pretendia mover383. A isso se chamou “editio actionis”, havendo alguma controvérsia quanto à sua existência já no sistema formulário. Entretanto, a ser assim, o processo romano terá incorporado, ainda na república, um mecanismo pré-processual ― a bem dizer, um curioso negócio jurídico anteprocessual384 ― que atendia, simultaneamente, a três valores atualíssimos da teoria geral do processo, como são o princípio da cooperação, o dever de informação e a própria mediação dialógica como condição para a solução negocial dos litígios (conciliação). Não se sustenta, aqui, que os romanos conhecessem esses conceitos, nem que os intuíssem como fundamentos para o “edere actionem” (porque, afinal, não há base documental a sufragar tais afirmações); mas, se a “editio actionis” foi preservada por tanto tempo ― como de fato foi ―, pode-se especular, empiricamente, realizava aqueles valores, otimizando a eficácia procedimental.

Era ainda do autor o ônus de providenciar o comparecimento do réu em juízo, que podia ser imediato, tão logo se encontrassem. No entanto, popularizou-se a “stipulatio”, contrato verbal pelo qual o réu se comprometia a comparecer com o autor na presença do magistrado judicial, sob pena de lhe pagar determinada quantia (outra vez o “uadimonium”). O réu também podia fornecer um “uindex”, que assumia igual compromisso e, não comparecendo, podia ser obrigado a pagar certa quantia ao autor (para tanto, o pretor lhe concedia uma ação “in factum”). Recalcitrante o demandado, ainda poderia, em tese, ser conduzido mediante uso da força (Lei das XII Tábuas); mas, na

383 Cf. Kaser, Hackl, Das Römische…, pp.220-226. In verbis: “Wer in Formularprozeß klagen will, muß dem

Gegner schon von oder bei der Ladung die angestrebte actio bezeichnen (edere actionem) und damit das Begehren nennen, das er gerichtlich geltendmachen will. Dieser außergerichtliche Akt kann in beliebigerForm, mündlich oder schriftlich, geschehen” (p.220). Seguem outros detalhes, bem como uma

série de considerações em torno do “uindex” no processo formulário.

384 Conhecem-se, é verdade, os negócios jurídicos processuais, como são as transações judiciais e os acordos

probatórios (que, em processos de interesses disponíveis, podem distribuir consensualmente o ônus da prova);

a própria “litis contestatio”, ao que tudo indica, era um negócio jurídico processual que precipitava a fase

“apud iudicem” (hoje, nos procedimentos bifásicos, essa transposição de fases normalmente se dá mediante

uma decisão interlocutória mista, com prelibação de mérito). Já negócios jurídicos anteprocessuais (i.e., que se sacramentam antes da instauração de instância, mas têm por objeto a própria instauração da instância) ― como seria esse “acordo verbal de comparência” ― são poucos comuns na processualística atual (a não ser, é claro, nos procedimentos de arbitragem, à vista das cláusulas compromissórias, que, porém, não remetem à jurisdição estatal); mas existem: são dessa natureza, p. ex., os pactos de competência e mesmo os pactos de

182 prática, o autor passou a pedir ao magistrado uma ação “in factum”385 em face do réu, para que o mesmo fosse instado a lhe pagar uma multa (Gaio, Institutas, IV, 46) ― o que, possivelmente, repetia-se a cada ato de recalcitrância. Além disso, se o réu se ocultasse, o magistrado, a pedido do autor, poderia imitir esse último na posse dos bens do primeiro, assim permanecendo durante quarenta dias, após o que ― se o réu não aparecesse ― autorizaria a venda mesma daqueles bens, sempre em favor do autor386. É interessante constatar como, ainda nessa época, a comparência do réu perante o pretor não era entendida como um seu mero ônus, mas como um verdadeiro dever, severamente sancionado.

III. Na instância “in iure”, as partes tinham de comparecer pessoalmente ou se

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