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À mercê desse quadro, esboçou-se uma clara reação da doutrina contemporânea ― sobretudo nos países de tradição jurídica romano-germânica ― em prol da relativização

dos ritos e formas. Em termos muito genéricos, com foco naquilo que adiante nos interessará diretamente, pode-se circunscrever esse movimento ao próprio século XX e entrevê-lo consubstanciado em duas conversões hermenêuticas muito características do nosso tempo: a uma, a universalização do princípio da instrumentalidade, aliada à sua reconstrução científica; a duas, a consolidação de percepções alternativas que secundarizam o papel da lei processual, preterindo-a ou reinterpretando-a livremente, quando a sua aplicação sugerir risco à efetiva realização de certos direitos materiais. A esse fenômeno sociojurídico, de caráter marcadamente coletivo e aglutinante36, temos chamado de “intervenção intuitiva”.

O princípio da instrumentalidade se assenta na constatação de que as normas primárias (i.e., as normas de direito material ― imperativas, proibitivas ou permissivas) carecem da possibilidade de se fazer respeitar coativamente; daí, com o fito de lhes suprir tal carência, cunharam-se normas secundárias (= normas-sanções, ainda substantivas), por um lado, e por outro se concebeu um direito geral de ação “in abstracto” que assegurasse, ao sedizente titular de uma situação jurídica, o acesso aos tribunais judiciais e/ou administrativos para reclamar e obter, perante terceiros, a efetividade daquelas normas substantivas (primárias ou secundárias). Mas esse acesso não poderia prescindir de uma ordem objetiva, sob pena de se desfigurar em puro arbítrio. Assim, para regular tanto as

36 Reputamo-lo coletivo (ou microcoletivo) porque, em geral, não se reduz a idiossincrasias individuais, mas

tampouco acomete a generalidade dos atores sociais; antes, aparece sociologicamente vinculado a certos

grupos de ação ou de pressão demarcados histórica e/ou institucionalmente (como a escola de Sttugart, na

Alemanha dos anos setenta do século XX, ou a magistratura do Trabalho brasileira, notadamente a partir dos anos noventa). E reputamo-lo aglutinante, pela sua capacidade de “contágio”: quanto mais uniforme e iterativo, tanto mais se reproduz e consolida, entre os integrantes dos “grupos” (ou mesmo fora deles), o atributo axiológico da “percepção (mais) correta”.

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atuações dos sujeitos públicos e privados (sujeitos parciais) como a dos próprios tribunais (sujeitos imparciais) na atividade estatal desenvolvida para a concretização jurisdicional dos direitos substantivos, criaram-se normas instrumentais (ou adjetivas) que, justamente, servem de instrumento àquela concretização, sem qualquer “ethos” autônomo. A evolução dessa ideia confluiu para a noção hodierna de instrumentalidade processual, que se apreende pelo aspecto negativo ― o que significa negar o processo como valor em si mesmo e repudiar os excessos formal-processualísticos ― e pelo aspecto positivo ― condizente com a preocupação em extrair do processo, como instrumento, o máximo de proveito substancial quanto à plena consecução de seus escopos institucionais (vide, infra, a nota n. 230) 37. No Brasil, o princípio da instrumentalidade encontrou assento parcial nos artigos 244, 249, §§ 1º e 2º, e 250 do CPC, entre outros. Doravante, analisá-lo-emos com mais vagar.

As “intervenções intuitivas”, por sua vez, ganham envergadura e interesse ainda mais recentemente, a partir de uma hiperextensão do princípio da instrumentalidade. A denominação, de inspiração confessadamente bergsoniana, é tributária da ideia de que pode haver um conhecimento objetivo (no sentido de “verdadeiro”) a partir da apreensão imediata da realidade, sentida e compreendida direta e absolutamente pelo sujeito, sem a intermediação das ferramentas lógico-racionais do entendimento, como a análise/síntese, a dedução/indução, a tradução, os juízos ou os silogismos. Ao penetrar diretamente na “vida” (“élan vital”), o agente apropria-se do mundo sem os esquemas modais da inteligência, experimentando imediata e metafisicamente do real, como certeza imanente ao próprio ser do sujeito cognoscente38. Pois bem: nas “intervenções intuitivas” que defletem o devido

37 Cf. José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: Conceito e princípios gerais: à luz do Código

revisto, Coimbra, Coimb ra Editora, 1996, pp.07-09; Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 12ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p.341.

38 Cf. Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris, F. Alcan, 1889, passim; e, do

mesmo autor, La Pensée et le mouvant: essais et conférences, 79e éd., Paris, Les Presses universitaires de France, 1969, pp.18 e ss. (disponível em http://classiques.uqac.ca/classiques/bergson_henri/pensee_mouvant/

bergson_pensee_mouvant.pdf — acesso em 30.12.2012). V. ainda Frédéric Worms, Le vocabulaire de Bergson, Paris, Ellipses, 2000, pp.04 e ss. O conceito mesmo de “intuição”, na obra bergsoniana, parece estar

apreendido intuitivamente, pela sua multiplicidade de sentidos. Algo natural, porém; nas palavras de BERGSON, “la variété des fonctions et aspects de l’intuition, telle que nous la décrivons, n’est rien à côté de

la multiplicité des significations que les mots ‘essence’ et ‘existence’ prennent chez Spinoza, ou les termes de ‘forme’, de ‘puissance’, d’‘acte’, etc., chez Aristote” (apud Worms, Le vocabulaire..., pp.04-05). E não

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processo formal, a ótica judicial é exclusiva ou eminentemente consequencialista: o juiz subverte a forma e/ou o rito visando ao “resultado justo” que o seu pré-entendimento plasmou para o caso concreto, sem maiores compromissos com algum modelo científico ou hermenêutico mais consistente, capaz de justificar racionalmente a inflexão e respaldar novos eventos. Noutras palavras, ao “perceber” um possível resultado insatisfatório do ponto de vista dos valores ou interesses que pretende resguardar, o juiz interpreta a norma- regra processual ― aplicada “ad litteram” em outros contextos ― com pendor modulatório, para que não surta os efeitos supostamente deletérios; amiúde, deixa simplesmente de aplicá-la. Tende-se a evocar, na retórica justificante, uma norma-princípio ou a própria Constituição; mas a pulsão basal, na origem, é a de assegurar um específico resultado, não raro “intuído” tempos antes (na prelibação da petição inicial, p.ex.). A engenharia normativa, de fundo retórico, apenas acompanha tal pulsão. Em suma: decide- se primeiro (pela flexibilização processual); fundamenta-se depois.

VII. A capacidade aglutinante desse último fenômeno tende a variar de um país

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