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Tornando à questão do processo, é fácil perceber que, guardadas as dimensões, o mesmo jogo de forças tende a se reproduzir À liberdade de formas, desembaraçando a

plena realização dos direitos materiais (por quaisquer meio de prova, a qualquer tempo e a qualquer custo), opõe-se a padronização dos ritos, que coloca em pé de igualdade a generalidade dos cidadãos, sujeitando todos quantos entendam ter direitos sonegados ― ricos e pobres, sábios e leigos, vencedores e vencidos ― à mesma “via ritualis”. Assim como, no plano político, a liberdade é o pressuposto maior da “busca da felicidade”29, a liberdade/instrumentalidade das formas é, no plano processual, a ideia-força que repontua a primazia dos direitos materiais. Mas uma liberdade absoluta de formas, sobre deflagrar visceral insegurança no tráfico jurídico, conduziria não raro a injustiças, haja vista, entre os concidadãos, as disparidades de condições (diferenças sociais, econômicas e culturais30) e de circunstâncias (pessoas mais ou menos zelosas com seus direitos, momentos mais ou menos oportunos para a demanda, etc.). É nesse preciso diapasão que GUINCHARD e FERRAND31 elegeram a liberdade como o valor dominante na teoria da ação (“o direito de agir em juízo é a expressão de uma liberdade fundamental” 32), porquanto é a igualdade

28 Nesse sentido, veja-se, por todos, Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas: de Maquiavel a

nossos dias, trad. Lydia Christina, 5ª ed., Rio de Janeiro, Agir, 1990, p.266.

29 Veja-se, nos EUA, a Declaration of Independence (ou The unanimous Declaration of the thirteen united

States of America), de 04.07.1776:“We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness” (g.n.).

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Cf., por todos, Mauro Cappelletti, Bryant Garth, Acesso à Justiça, trad. Ellen Gracie Northfleet, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, pp.21-29 (“possibilidades das partes”).

31 Serge Guinchard, Frédérique Ferrand, Procédure civile: Droit interne et droit communautaire, 28e ed.,

Paris, Dalloz, 2006, pp.107-124, 219-220 e 489-490.

32 “La liberté qui dominait dans la théorie de l’action en justice, puisque le droit d’agir en justice est

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(“igualdade perante a Justiça”33) o valor dominante na teoria da jurisdição34,35. Daí, na esfera processual, essa tensão recorrente entre a segurança (dos iguais) e a liberdade (dos discordantes); entre, afinal, a forma e o conteúdo.

largement éclipsée par l’idée d’égalité qui l’encadrait à travers le droit au juge natural et les règles de compétence, retrouve ici toute sa vigueur au niveau de l’instance […]” (idem, p.489).

33 O Conseil constitutionnel decidiu, em 23.07.1975, que “le principe d’égalité devant la justice est inclus

dans le príncipe d’égalité devant la loi proclamée par la Déclaration des droits de l’Homme de 1789”;

adiante, acentuou o papel das regras processuais/procedimentais na realização do princípio geral da igualdade e proclamou, em matéria penal, que “le príncipe de l’égalité fait obstacle à ce que des citoyens se trouvant

dans des conditions semblables et poursouvis pour les mêmes infractions soient jugés par des juridictions composées selon des règles différents” (Rec. p.22, Décision n. 75-56 DC, 23.07.1975). Anos depois, em

controle preventivo de constitucionalidade (artigo 61, 2, da Constitution), o Conseil censurou dois dispositivos da lei “Sécurité et Liberté”, em matéria civil, porque malferiam o princípio da igualdade ao conferir, à vítima de um delito, o direito de “escolher” sujeitar-se ou não ao duplo grau de jurisdição (e, portanto, o direito de “conceder” ou não, ao réu, o direito ao duplo julgamento, engendrando contextos de desigualdade entre réus sob mesmas condições). Com efeito, os artigos 92 e 94 da lei autorizavam, à vítima, deduzir pretensões inéditas ou mesmo constituir-se pela primera vez no tribunal de apelação, sempre com vista à satisfação de seus interesses civis; foram, ambos, declarados contrários à Constituição francesa (Décision n. 80-127 DC, 19-20.01.1981, in Les grandes décisions du Conseil constitutionnel, Louis Favoreu, Loïc Philip (org.), 10e éd., Paris, Dalloz, 1999, pp.440-448 ― especialmente pp.70-73).

34 À Mercê do excerto transcrito supra (nota n. 32), está claro que, para GUINCHARD e FERRAND, o valor

“igualdade” ofusca o valor “liberdade” na teoria da jurisdição sobretudo porque, nesse âmbito, prevalecem as

garantias (juiz natural, contraditório, paridade de armas, etc.) sobre as liberdades (em sua acepção mais lata,

a alcançar faculdades, poderes, direitos etc.). Mas não apenas por isso; a prevalência do valor “liberdade” deve-se também à uniformidade de tratamento ditada pelos procedimentos: “Égalité aussi dans le choix d’un

type de procédure, dans l’exercise des voies des recours, dans l’exécution du jugement, etc.” (op.cit., p.489).

Aliás, não por outra razão, a processualística francesa, repudiando uma tradução literal da expressão inglesa

“due process of law”, optou por empregar, em regime de sinédoque, a expressão “droit à un procès juste et equitable” (= direito a um processo justo e equânime), que remete escancaradamente ao valor “igualdade” (cf.

Guinchard, Ferrand, op.cit., pp.565-571 ― especialmente o item n. 651-b). Nada obstante, a noção de

“procedural due process” açambarca, ainda, as ideias de publicidade (“publicité”) e de duração razoável

(“délai raisonnable”); ideias que, na doutrina e no NCPC (“nouveau Code de procédure civile”, 1º.01.1976), não estão tratadas como dimensões do “procès équitable” (artigo 6-1): a publicidade remonta ao artigo 22 e a duração razoável sequer tem previsão expressa naquele código. Alcançá-las-á, pois, a dimensão do “justo” .

35 GUINCHARD e FERRAND ainda desenvolvem, num terceiro momento, a “théorie de l’instance” (dir-se-

á, em bom português, “teoria do processo” ou “teoria da relação processual”, já que “l’instance ce n’est pas

seulement cette suite d’actes de procédure; c’est aussi, dans une approche plus théorique, une situation juridique bien particulière qui nâit entre les plaideurs et concerne le juge, situation que l’on a coutume d’appeler “lien d’instance” ou encore “lien juridique d’instance”” ― op.cit., p.495). Assim como, antes,

haviam fundado a teoria da ação na liberdade e a teoria da jurisdição no binômio igualdade-liberdade (com ênfase no primeiro termo), os autores agora fundam a “théorie de l’instance” na tríade axiológica da Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade (ou ― na expressão que remonta à Constituição francesa de 1848 ― solidariedade). A “fraternidade”, em tais domínios, manifesta-se notadamente como assistência jurídico-judiciária (“la technique de l’aide juridictionnelle”); mas, a par disso, também se manifesta como repressão aos abusos processuais e “tout ce que permet au juge d’atténuer

la rigueur des règles de la conduite de l’instance” (op.cit., p.490 [g.n.]) ― o que nos remete, em direto, ao

problema das inflexões do devido processo formal. Já por isso, esse ponto de conexão (solidariedade ↔

inflexões formal-processuais) deverá ser resgatado adiante (Parte III), para uma análise mais minuciosa e

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Compõe-se, ao cabo, uma equação tendencial que relaciona, em termos inversamente proporcionais, a segurança formal (na dimensão da igualdade) e a justiça material (na dimensão da liberdade). Quão maiores os cuidados da legislação ― e de seus operadores ― com os ditames de rito e forma, tanto maiores as condicionantes para a realização do direito material; maiores, pois, as probabilidades de que não seja satisfeito.

VI. À mercê desse quadro, esboçou-se uma clara reação da doutrina contemporânea

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