• Nenhum resultado encontrado

No processo penal, a Lei das XII Tábuas introduziu regra de competência que, uma vez consagrada em texto, provavelmente inspirava aos réus alguma segurança quanto

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

III. No processo penal, a Lei das XII Tábuas introduziu regra de competência que, uma vez consagrada em texto, provavelmente inspirava aos réus alguma segurança quanto

ao juiz “natural” de sua causa (remetendo, pois, a um dos principais consectários modernos do devido processo legal formal ― vide, infra, o tópico 26.2). Assim é que, em última instância, os processos capitais ― i.e., aqueles que discutiam a aplicação da pena de morte332 ao réu ― eram conhecidos e decididos pelo Comício centurial (a “assembleia maior do povo”), supondo-se que, em primeira instância (i.e., até o “iudicium” ), pudessem ser conhecidos tanto pelos magistrados patrícios como pelos representantes da plebe (há registros históricos de processos penais presididos por tribunos da plebe; veja-se, p. ex., o caso narrado na nota n. 5, supra).

Quanto aos procedimentos penais, se no início eles podiam ser basicamente inquisitoriais (em modo de mera “cognitio”, com esteio na “coercitio” ― supra, nota n. 330) ou mesmo arbitrais (iniciados a pedido do lesado, com fundamento na equidade e na mediação333), tornaram-se depois, no último século da república, predominantemente acusatórios (em modo de “accusatio”). A comparação, em corte epistemológico transversal, do processo penal romano de “cognitio” com o de “accusatio” ― especialmente no âmbito do sumário de instrução conhecido como “anquisitio” ― tem o condão de pôr em alto relevo o papel singular que um procedimento legal-formal preestabelecido tende a desempenhar em proveito dos cidadãos. Vejamos:

332 A pena capital, no curso da História de Roma, teve as mais diversas configurações e hipóteses (como de

resto também ocorrera, até meados do século XIX, com as próprias Ordenações Filipinas, que foram lei vigente no Brasil e em Portugal). Ao tempo do imperador ALEXANDRE SEVERO (222-235 d.C.), o jurisconsulto PAULO condensou, em resumo, o direito penal romano, elencando, àquela altura, as seguintes modalidades de penas (a par das multas e das indenizações pecuniárias, que também existiam no processo penal): (a) pena de morte em forma agravada (crucificação, fogueira, suplício em espetáculos populares); (b) pena de morte “simples”; (c) condenação às minas; (d) trabalhos forçados perpétuos; (e) trabalhos forçados temporários; (f) deportação; (g) confinamento; (h) relegação; (i) separação do conselho municipal; (j) castigos corporais (para os escravos). Cf. Theodor Mommsen, Derecho penal romano, pp.647-651.

163

no processo penal por “cognitio”, a característica maior era a carência de quaisquer formalidades estatuídas legalmente: não havia formas fixas para a instauração de instância, para o seu encerramento ou para a própria instrução; o magistrado podia sobrestar ou abandonar a causa a qualquer momento, reiniciando-a ou reabrindo-a ao seu inteiro talante, pois “a cognição não consentia, por sua própria natureza, que se desse uma absolvição tal, que impedisse abrir de novo o mesmo processo” 334; o interrogatório era o ato central do procedimento, vedando-se ao acusado negar-se a responder perguntas; o direito de intimar e fazer ouvir testemunhas não conhecia limitações; a defesa do acusado cabia “si, quanto et quando” admitisse o magistrado; a ele se vedava tão só que provocasse mutilações corporais (mas podia torturar pessoas não livres, como escravos e mulheres), além de outras poucas limitações impostas pelo costume ou pela lei 335;

no processo penal por “acusatio” (e em especial na “anquisitio”, intervindo magistrado e comícios), pressupunha-se o ato de citação do acusado; atendiam-se a prazos fixos predefinidos; havia frequente ensejo a que o magistrado expusesse os elementos constitutivos do delito aos cidadãos dos comícios reunidos para esse fim (“in contione”)336; previa-se o exercício de autodefesa e de defesa por terceira pessoa, independentemente da

334 Idem, p.224. 335

Idem, pp.224-225. Citem-se, como exemplos das “outras limitações”, as seguintes:“no debían tomarse en

consideración aquellas denuncias cuyo autor rehusaba dar su nombre” (isso porque, na “cognitio”, o

magistrado podia iniciar o procedimento de ofício ou a partir de qualquer notícia privada, que lhe serviria como testemunho antecipado); “a los testimonios de los esclavos dados en otras causas no debía prestárseles

crédito sino cuando los dieran previa la aplicación del tormento o custión penal”; “el testimonio del esclavo contra su próprio señor no debía apreciarse”; e assim por diante. Aliás, mesmo essas regras ― que, diz

MOMMSEN, não eram propriamente positivas, mas indicativas ― “no fueron aplicadas nunca de un modo

indefectible, sin excepción”.

336 Isso “cuando se tratara de resoluciones inminentes, pero definitivas, que habían de ser tomadas por los

ciudadanos” (Theodor Mommsen, Derecho penal romano, p.116). A propósito, os comícios eram

assembleias de cidadãos que, na república, tinham quadro configurações: (a) os “comitia curiata” (comícios

por cúrias), que já existiam na realeza e apreciavam ad-rogações e testamentos, além de votar a “lex curiata de imperio”; (b) os “comitia centuriata” (comícios por centúrias), nas quais o povo romano dividia-se por

classes ou centúrias, com funções eleitorais (elegiam os magistrados maiores), legislativas e judiciárias (como, ao tempo das Doze Tábuas, apreciar a “provocatio” contra a sentença de pena capital); (c) os

“comitia tributa” (comícios por tribos), formados pelas tribos romanas urbanas e rústicas, também com

funções eleitorais (elegiam os magistrados menores, i.e., os “edis curius” e os “quaestores”), legislativas e judiciárias (e.g., apreciação da “provocatio” contra sentença que impusesse multa de valor superior a 3.020 asses); e (d) os “concilia plebe” (comícios de plebe), que elegiam tribunos e edis da plebe, votavam os

plebiscita (equiparados às leis a partir da lex Hortensia, de 288 a.C.) e apreciavam os recursos contra as

164 vontade ou discrição do magistrado; colhia-se o interrogatório do acusado e produziam-se provas documentais e testemunhais337.

Como se vê, foi brutal a diferença entre um e outro modelo338. Afora esses dois, houve, ainda, outros vários procedimentos-tipo em toda a História de Roma, a saber: o procedimento penal privado, que encerrava um processo contraditório entre duas partes, ofensor e ofendido, em regime de igualdade formal (de que se faz breve menção abaixo e também na nota n. 347); o procedimento de júri sob a presidência de magistrado (pós- republicano, já próprio do principado339); o procedimento penal municipal; o procedimento penal perante os governadores das províncias; o procedimento penal perante os cônsules no Senado (revivendo, nos tempos da AUGUSTO, o procedimento penal de magistrado e comícios, mas com o Senado como “consilium”); o procedimento penal perante o príncipe e seus delegados (ressuscitando o processo penal por “cognitio” nos tempos do principado); o tribunal de funcionários de DIOCLECIANO (no dominato); e os tribunais especiais de classe, como os que serviram, em certos períodos, a senadores, a soldados, a funcionários subalternos e/ou a eclesiásticos (precedendo, no fluxo histórico, as jurisdições especiais da modernidade).

Em termos esquemáticos, o procedimento penal romano no qual intervinham o magistrado e os comícios ― o mais acusatório de todos, que incluía a “anquisitio” e já existia desde os primórdios da república340 ― consistia nas seguintes fases: (a) a “diei dictio”, que se seguia ao procedimento inquisitorial do magistrado (quando havia) e

337 Theodor Mommsen, Derecho penal romano, pp.116 e pp.225-226.

338 A ponto de MOMMSEN afirmar ― até com certo exagero ― que, com o advento do procedimento penal

de magistrado e comícios, a “coercitio” converteu-se em “iudicatio” (o que é indiscutível), “aplicándose las

ideas fundamentales y características del derecho penal en su sentido propio, o sea la idea de la necesidad de una ley penal, sin cuya existencia previa no podía tener lugar el procedimiento que nos ocupa, la idea de un concepto del delito fijado legalmente, la idea de una medida penal determinada por la ley e la idea de un juicio penal regulado por esta misma ley” (o que já é discutível). Idem, p.107.

339 O principado romano estendeu-ser de 27 a.C. (seguindo-se à república) até 285 d.C. (quando começou o

dominato, com DIOCLECIANO).

340

O procedimento penal de magistrado e comícios foi-se espraiando paulatinamente, para ao final da república aplicar-se aos delitos públicos em geral (notadamente a “perduelio”, que era o ato de hostilidade à pátria romana, em especial a deserção), às ofensas à plebe (e, posteriormente, a todos os delitos praticados contra Roma) e aos diversos delitos menores aos quais as leis estendiam pontualmente esse procedimento, como em certos delitos que implicavam imposição de multas por edis ou pelo sumo pontífice (MOMMSEN,

165 implicava a localização do acusado ou o estabelecimento de um dia para que o mesmo se apresentasse; (b) a “anquisitio” ou instrução sumária (supra), que amiúde se processava perante o magistrado e os cidadãos do comício e oportunizava ao acusado as suas principais garantias no processo; (c) o pronunciamento da sentença (“iudicatio” e “multae irrogatio”), com a absolvição do acusado ou a sua condenação à morte (“iudicium”) ou a uma pena pecuniária, em favor da comunidade (“multam inrogare”) ou de um de seus tempos (‘in sacrum iudicare”); (d) a interposição de apelação perante a comunidade (“provocatio”), na qual o acusado clamava por uma decisão última e definitiva do povo soberano, com efeito suspensivo341; e (e) a decisão final dos comícios (“iudicium populi”)342. A “provocatio” nos procedimentos penais tornou-se obrigatória e, como tal, foi positivada na própria lei decenviral343; outras fases desse procedimento podem ter experimentado modificações ou consolidações tardias, mas sempre sob inspiração da mesma ideologia que informou a Lei das XII Tábuas em messe processual penal: a restrição do arbítrio judicial. Por tudo isso, a despeito de seu rigorismo formal e da seu descomedido ímpeto civil-executório, esse monumento jurídico simboliza, em variegados sentidos, um passo formidável no sistema processual romano, incorporando um viés lógico- racional e garantista àquilo que, antes, não era mais que uma sucessão de atos discricionários do magistrado, no exercício de um tipo de poder estatal essencialmente político-administrativo (a “coercitio”). Mais: na perspectiva do garantismo processual, a

341

Se o magistrado desconsiderasse tal efeito processual e executasse a sentença capital, sua ação era

equiparada a de um particular ― de nada lhe servia, nesse caso, ocupar um cargo oficial ― e, na condição de homicida, seria também ele condenado à morte (idem, pp.117 e 400).

342 Idem, p.115. Nos primeiros tempos da república, o magistrado patrício convocava, para o “iudicium

populi”, as centúrias patrício-plebéias, enquanto o magistrado plebeu convocava as tribos plebéias; mas ―

como se viu ― a Lei das XII Tábuas modificou esse cenário, conferindo tal competência, nos processos de penas capitais, apenas à “maior assembleia do povo”, i.e., os comícios centuriados (afastando, portanto, a atuação isolada das assembleias de plebeus). O procedimento manteve-se assim durante todos os demais anos da república.

343 Idem, ibidem: “Según la tradición, la ley consular valeria fue la que estableció, al comienzo da la

República, […] la provocación obligatoria en el procedimiento penal, establecimiento que luego vinieron a

sancionar de una manera fija y determinada las Doce Tablas; más tarde las leyes porcias, del siglo VI

probablemente, y la ley de C. Graco […], insistieron de nuevo sobre la misma institución, impidiendo, sobre todo la última, el que la provocación fuera eludida, haciendo que el procedimiento penal seguido ante el magistrado envolviera la pérdida del derecho de ciudadano lo mismo que la envolvía el procedimiento por perduelión” (g.n.).

166 construção desse procedimento foi provavelmente a mais significativa contribuição do gênio legiferante romano-republicano à sua posteridade344.

E não é só. Em sede de direito penal privado (i.e., o direito penal aplicável aos delitos praticados contra interesses privados, em contraposição ao direito penal público, aplicável aos delitos praticados contra os interesses da comunidade345), o arbítrio judicial foi praticamente neutralizado na sistemática em vigor ao tempo da Lei das XII Tábuas. Repetindo MOMMSEN,

“O valor da coisa, ou, o que era o mesmo, a reparação do dano causado nos casos de delitos privados, era um conceito objetivamente fixo […]. Quando para a imposição da pena não fosse suficiente o valor da coisa, ou se este valor não fosse aplicável ao delito em questão, a lei mesma regulava o arbítrio, cuja intervenção era agora inevitável, ditando ora a imposição de um múltiplo do valor da coisa, ora outra indenização penal, ora precisamente uma quantidade fixa em dinheiro. O arbítrio judicial que, nessa esfera e para outros efeitos, correspondeu aos jurados, passou a ser exercido a partir da época das Doze Tábuas, e sua primeira aparição deveu-se, sem dúvida alguma, ao fato de que se considerava insustentável a legislação acerca das injúrias346. A circunstância de que a mesma determinava que o magistrado ou o acusador deviam taxar de antemão o valor da reparação pedida demonstra-nos como, ainda aqui, fizeram-se esforços para pôr restrições ao arbítrio judicial; mas o que com isso se conseguiu não foi mais que transportar esse arbítrio para outro lugar. Se se excetua o campo das ações por injúria, deixou-se ao arbítrio de que ora tratamos, em matéria de

344 Não se perde em recordar que o período republicano, na Roma pré-cristã, estendeu-se de 510 a 27 a.C.,

quando o Senado pôs fim à república, investindo OTAVIANO (depois chamado de AUGUSTO) no poder supremo, com o título de “princeps”. Logo, a Lei das XII Tábuas foi proclamada pouco mais de cinquenta

anos depois do fim da realeza, em plena fase republicana.

345 Como se sabe, os romanos não distinguiram claramente entre os delitos civis e penais, como também entre

os conceitos de punição e de ressarcimento do dano (cf. Thomas Marky, Curso Elementar de Direito Romano, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1990, p.133). Tanto é assim que os delitos poderiam ser particulares ou públicos, a depender do interesse afetado.

346 No Direito Romano, o conceito de “iniuria” tanto abrangia as lesões corporais, ditas simplesmente

“iniuriae”, como os danos contra o patrimônio, ditos “damnum iniuriae” (Theodor Mommsen, Derecho penal romano, p.484). A Lei das XII Tábuas, porém, não procedeu expressamente a essa distinção; na

verdade, como observa MOMMSEN, encontram-se ali apenas quatro classes bem determinadas de delitos, tratadas sem maiores classificações: a “perduellio”, o “parricidium”, o “furtum” e a própria “iniuria” (idem, p.332). Outras figuras delituais só foram discriminadas e reguladas bem mais tarde, como o falso (“falsum”)

― à exceção do delito de falso testemunho, porque esse é previsto e a ele se comina a pena capital ―, os

delitos sexuais (“adulterium”, “stuprum”, “lenocinium”) e os atos de corrupção e concussão (“crimen

pecuniarium repetundarum”) ― à exceção da corrupção dos jurados em juízo, igualmente prevista e punida

167

procedimento privado por causa de delito, muito pouca amplitude durante a República” 347.

Entrevê-se, aqui, uma percepção incipiente do princípio da legalidade das penas como garantia material inafastável no âmbito do direito penal (“nulla poena sine lege”)348; mas, ao mesmo tempo, infere-se um certo desassossego social com a extensão dos poderes do juiz no processo penal, em especial na fixação do respectivo “quantum” reparatório, o que culminou por limitar-lhe a discricionariedade judicial, mediante sua estrita vinculação aos conteúdos materiais da lei. Essa evolução tem interesse quando se discute o papel criativo do magistrado no processo, inclusive como instrumento de inflexão do sistema processual-formal (supra, § 2º, III, “ζ”), e quais os seus limites em face de outros valores ou interesses envolvidos (como, p. ex., a segurança jurídica e a própria legalidade penal).

347 Theodor Mommsen, Derecho penal romano, p.643. Para comprender melhor o contexto do excerto, assim

como a importância relativa das Doze Tábuas nesse contexto, calharia bem a leitura de todo o capítulo XII (“Desigualdades legales en la imposición de las penas y arbítrio judicial”). Por “arbítrio judicial”, MOMMSEN (p.641) entendia “la facultad concedida a los jueces para elegir de entre varias formas de

penalidad o de entre distintas prescripciones penales, la que mejor les pareciera”, sendo tal arbítrio “inherente al sistema de la coercición” (logo, ao processo penal por “cognitio”).

348 Aproximando-se das noções de FRANZ VON LISZT (i.e., a ideia do Código Penal como a “Magna

Charta” do delinquente) e das tendências garantistas que informariam o Direito Penal do final do século XX

(especialmente as teorias da prevenção penal positiva e, muito particularmente, a teoria da prevenção geral

positiva limitadora de WINFRIED HASSEMER), observa MOMMSEN (idem, p.37 ― g.n.) que “comienza el derecho penal en aquel mismo momento en que la ley del Estado (comprendiendo dentro de ella a lo costumbre com fuerza legal) pone limitaciones al arbitrio del depositario del poder penal, esto es, del juez sentenciador. La ley designa objetivamente cuáles sean las acciones inmorales contra las que hay que proceder por causa y en beneficio de la comunidad, y por lo tanto, prohíbe a la vez el empleo de tal procedimiento contra todas las demás. La ley organiza de un modo positivo el procedimiento para la persecución de aquellas. Esa misma ley señala de un modo fijo la reparación que corresponde imponer por cada uno de los delitos. El derecho penal público de Roma comienza con la ley valeria, la cual sometió al requisito de la confirmación por la ciudadanía las sentencias capitales pronunciadas por el magistrado contra los ciudadanos romanos; el derecho penal privado del mismo pueblo comenzó, por su parte, con aquella organización en virtud de la cual el pretor fue desposeído de la facultad de resolver definitivamente los asuntos penales, quedándole solo la de resolverlos de un modo condicional y remitiendo al jurado el negocio para que él diese su resolución acerca de la condición señalada. De ahora en adelante no podía

haber en Roma ningún delito sin previa ley criminal, ningún procedimiento penal sin previa ley procesal, ni ninguna pena sin previa ley penal” (ou seja: “nullum crimen nulla poena sine lege”). Esse procedimento

penal que remitia parte da decisão a cidadãos comuns (juízes não profissionais) ― conhecido como procedimento por “quaestiones” (p.38) ― é o antecedente histórico mais consistente da quesitação a que atualmente se submetem os jurados em diversos países, com maior ou menor minudência (no Brasil, com grande minudência, confiram-se os artigos 479, 480 e 484 a 491 do Código de Processo Penal ― anotando-se que, hoje, o procedimento brasileiro do júri é reservado apenas aos processos penais que versam sobre crimes dolosos contra a vida). Acerca da referida tese de HASSEMER (sobre a prevenção positiva limitadora como consectário de um direito penal funcionalmente voltado para a contenção dos arbítrios do Estado), vide Winfried Hassemer, “Fines de la pena en el derecho penal de orientación científico social”, trad. T. Castiñeira, in Derecho Penal y Ciencias Sociales, Santiago Mir (ed.), Barcelona, Universidad Autónoma de Barcelona, 1982, pp.117-157 (especialmente pp.132 e ss.); e, supra, a nota n. 60.

168 Outro dado curioso diz respeito à composição civil obrigatória nos delitos privados (insinuando, quatrocentos anos antes de Cristo, a questão da proporcionalidade jurídico- penal, tão cara à concepção hodierna de devido processo substantivo). É que, nos casos de apropriação indevida de coisa alheia móvel (“furtum”349), a Lei das XII Tábuas mandava que o causador do dano indenizasse a vítima em valor correspondente ao dobro do importe do prejuízo causado. Aquele a quem se oferecia esse pagamento era obrigado a aceitá-lo (daí se tratar de composição civil obrigatória); e, se o réu não quisesse ou não pudesse pagar, tratava-se-lhe como a qualquer outro devedor civil insolvente (supra)350. Já não era assim, porém, quando se tratasse de furto flagrante (i.e., se se apanhasse o ladrão no ato mesmo da subtração): nessas condições, que acresciam a gravidade objetiva do fato, excluía-se a figura da composição obrigatória, de tal modo que, não se compondo voluntariamente ladrão e vítima, o tribunal haveria de condenar o réu não liberto à morte; ou, se homem livre, entregá-lo-ia em propriedade ao cidadão rapinado. Para MOMMSEN, essa solução, que mal se harmonizava com o conceito ético na base do delito privado romano351, deveu-se sobretudo à intenção do legislador de impedir que o lesado tomasse em

349 Naquele tempo, não se fazia a distinção atual entre o furto ― cuja conduta nuclear é a subtração ― e a

apropriação indébita ― cuja conduta nuclear é a mera manutenção do estado de posse ou detenção de coisa

alheia, mas com inversão de ânimo (apropriação). No Brasil, confiram-se as distinções doutrinais entre as condutas objetivas descritas, respectivamente, nos artigos 155 e 168 do Código Penal.

350 MOMMSEN observa que “la gran lenidad usada contra el delincuente en este caso contrasta con el

excesivo rigor del derecho que en Roma se aplicaba a los deudores”. É que, aparentemente, essa não era uma

hipótese hábil a desafiar o manejo da “manus iniectio” (Tábua III, 1), o que complicava a posição do credor.

351 Com efeito, em sede de delitos privados, a preocupação fundamental não era a punição como forma de

reafirmar a vigência da lei, mas sobretudo a reparação da vítima. Di-lo, de modo mais analítico, MOMMSEN: “Como ya se ha dicho, en un principio, cuando se causaba daño o dolor a un particular, él

mismo era quien había de tomar revancha, o, si no era libre, su señor había de vengarle. Y si no conseguía ejercer por sí la autodefensa, entonces había de pedir reparación con el auxilio de sus parientes, o habían de pedirla estos solos. Los límites divisorios entre la ofensa a la comunidad y la ofensa al particular pueden trazarse de muy diferentes modos. Después que el homicio, el incendio y otros muchos hechos que pertenecieron en algún tiempo a la segunda categoría pasaron a formar parte de la primera, ya ho hay que buscar en el campo restante para los delitos privados, al cal pertenecían singularmente casi todos los

Outline

Documentos relacionados