• Nenhum resultado encontrado

Nessa altura, as elucubrações propendem para outro viés de polêmica, bem mais recente, que diz com a natureza jurídica da própria ação Há uma forte corrente de

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

V. Nessa altura, as elucubrações propendem para outro viés de polêmica, bem mais recente, que diz com a natureza jurídica da própria ação Há uma forte corrente de

opinião, no direito processual hodierno, que não reconhece no processo qualquer “direito”, por compreender que essa expressão pressupõe obrigações da contraparte (à maneira dos direitos subjetivos materiais), que não existem na dimensão processual. Assim, por todos, DINAMARCO obtempera que

“Direito subjetivo é uma situação jurídica de vantagem

em relação a um bem. Obrigação, como contraposto

negativo do direito subjetivo, é uma situação jurídica de

desvantagem em relação ao mesmo bem. […] O

cumprimento da obrigação e correlativa satisfação do direito importam acréscimo ao patrimônio de quem recebe e diminuição daquele que fica privado do bem. Trata-se de um sacrifício segundo a lei e sua imposição é eticamente legítima, mas não deixa de ser um sacrifício. Mas o Estado-juiz não se despoja de bens, nem se considera patrimonialmente diminuído ou sacrificado, quando realiza atos inerentes ao exercício jurisdicional. É do próprio interesse do Estado, que assume para si o encargo de outorgar tutela a quem tiver razão, que a justiça se faça e os conflitos se eliminem: interest rei

publicæ a pacificação social que pelo processo se

promove. Daí ser impróprio falar em direitos e obrigações no processo, porque os deveres impostos aos seus sujeitos têm por objeto imediato a criação de situações processuais e não a obtenção de um bem da

404 Sobre as razões pelas quais, no sistema formulário, as condenações eram necessariamente em dinheiro

(razões que, diga-se, pouco se conhecem), KASER oferece boas respostas (cf. Kaser, Hackl, Das Römische…, pp.372-374 ― sobre o “Prinzip der Geldverurteilung” ― e nota n. 25 ― inclusive citando ERHARDT e a tese da origem grega). Esse dogma de restrição quanto ao objeto do provimento condenatório (“condemnatio

pecuniaria”) existia mesmo nas ações de reivindicação de coisa, caso o réu se recusasse a devolvê-la “in natura” (Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.260).

405 Tanto que, a certa altura, já não se admite a desistência da ação (i.e., de “instância”) sem o consentimento

190

vida. Os deveres do juiz não visam a favorecer alguém mediante alguma suposta restrição dos interesses do Estado, que ele personifica o processo. Quando o juiz julga o mérito, reconhecendo que o autor tem o “direito” de ação, isso para ele não é sacrifício, mas realização de uma das funções estatais. […] O “direito” de ação não é um autêntico direito subjetivo, mas o poder de criar condições para que o Estado possa decidir e, se for o caso, conceder a tutela jurisdicional ao autor”406.

Não é esse o lugar adequado para aprofundar esse debate, por mais atraente que seja. No entanto, até para os futuros desdobramentos desta Tese, é mister pontuar nossa divergência. Assim, por ora, limitamo-nos a observar que, em contraste, há diversos autores que referem textualmente os “direitos processuais” ou que estudam as garantias processuais como direitos em acepção estrita ― citem-se, e.g., SACHS 407 , CHIOVENDA408, LIEBMAN409, PICARDI410, TEIXEIRA DE SOUSA411, LEBRE DE

406 Dinamarco, Instituições…, v. II, pp.210-211. Em outra obra, porém, o próprio autor incorre na denunciada

“impropriedade”, ao asseverar — com acerto, diga-se — que “[e]xiste um direito ao procedimento, que no

fundo é direito à participação em contraditório” (Dinamarco, A instrumentalidade..., p.387 [g.n.]).

407 Michael Sachs, Verfassungsrecht II: Grundrechte, 2. Aufl., Berlin/Heidelberg, Springer, 2003, pp.516-517

(sobre a garantia fundamental de “audição judicial”, i.e., de acorrer ao Poder Judiciário e ali ser ouvido ― ou, na expressão do artigo 103, 1, da GG, “rechtliches Gehör”): “Wie es [das rechtliche Gehör] die

Anspruchsformulieren nahe legt, handelt es sich um ein auf das Gerichtsverfahren bezogenes grundrechtsgleiches Leistungsrecht”. Adiante (p.517): “Das rechtliche Gehör nach Artigo. 103 Abs. 1 GG ist ein Jedermannrecht, das ungeachtet der nur für die natürlichen Personen bestehenden Verbindungslinien zur Menschenwürde wesensmäßig auch inländischen juristischen Personen des Privatrechts zustehen kann”

(negrifos no original).

408

Chiovenda, Principios…, t. I, pp.66-67 (referindo a ação, logo à partida, como um “direito potestativo”, embora logo adiante p.69 passe a defini-la como “o poder jurídico de dar vida (‘porre in essere’) à condição para a atuação da vontade da lei”).

409 Liebman, Manual…, p.150. In verbis: “Coisa diferente é a ação, o direito subjetivo sobre o qual está

construído todo o sistema do processo, cuja fisionomia se acha delineada já na primeira parte do art. 24 da Constituição [italiana]: o direito de agir em juízo é realmente atirbuído para a tutela dos próprios direitos e interesses legítimos e isso significa que não pertenceria a quem postulasse tutela para direitos alheios. […] Assim, sabemos agora que no âmbito daqueles todos, referidos na segunda parte do art. 24, se encontram também aqueles que não tanto podem propor uma demanda qualquer, mas são titulares de um verdadeiro

direito que, com referência a uma situação determinada e concreta, visa a obter um pronunciamento sobre essa demanda, para que ela seja julgada procedente ou improcedente, sendo com isso concedida ou negada

a tutela pedida. Esse direito é precisamente a ação, que tem por garantia constitucional o genérico poder de agir, mas que em si mesma nada tem de genérico: ao contrário, guarda relação com uma relação concreta, decorrente de uma aleada lesão a direito ou a interesse legítimo de seu titular e identifica-se (como veremos) por três elementos bem precisos […]” (g.n.). Sobre a origem romana dos “tria eadem”, vide, infra, o tópico

7.3.3, VI.

410 Nicola Picardi, Manuale del processo civile, Milano, Giuffrè, 2006, pp.174 e ss. (sobre o direito à tutela

jurisdicional que se constitui em “diritti processuali” no confronto com o Estado, em face de quem se promove a ação, e também no confronto com a contraparte).

411 Teixeira de Sousa, Estudos…, pp.33 e ss. (o autor fala, e.g., em “direito à jurisdição”, “direito ao processo

191 FREITAS412 e NERY JR.413 ―, o que revela certo aparte doutrinal, ao qual nos alinhamos. E a isso aduzimos, para preservar a coerência desta exposição, que entendemos ser a ação não apenas um poder (= posição jurídica que habilita o cidadão a exigir do Estado um pronunciamento oficial de mérito), mas também um direito (= posição jurídica que habilita a pessoa a exigir de uma contraparte relacional ― “in casu”, do Estado ― um comportamento414 definível “in se” como bem da vida: a própria jurisdição de mérito, que é atividade concretizadora do direito objetivo e pacificadora de conflitos). Com efeito, a função jurisdicional, sobre ser uma manifestação do poder estatal, envolve custos e sacrifícios, amiúde transferidos às partes em alguma escala; não fosse assim, a questão do acesso à justiça ― notadamente na dimensão econômica ― jamais teria inspirado tantas discussões (cf., infra, tópico 2.4). A jurisdição de fundo não é prestada sem alguma resistência (que se releva como barreiras técnicas ― e.g., condições da ação e pressupostos processuais ―, econômicas ― e.g., custas e despesas processuais ― e/ou estruturais ― e.g., lentidão ou inacessibilidade especial). Logo, quando se consegue obtê-la, vencendo as resistências e instando o agente político ao pronunciamento de mérito (ainda que não se reconheça a pretensão material deduzida), obtém-se do Estado um bem indiscutível, cuja prestação lhe carreou certo desgaste.

Na verdade, a tese de DINAMARCO perde-se em duas esguelhas de engano. A primeira, quanto pretende vincular a noção de bem da vida à de “acréscimo patrimonial”: há outros bens da vida que podem ser obtidos mediante comportamentos onerosos de terceiros e que, todavia, não importam em acréscimo de patrimônio, mesmo na ordem jurídica privada (assim, e.g., o exercício do direito de resposta ou a cessação de atividade

412 Lebre de Freitas, Introdução…, pp.27-28 (tratando do “direito de ação” como corolário do “direito à

jurisdição”, para depois defini-lo como “o direito de recorrer aos tribunais pedindo a tutela dum interesse

protegido pelo direito material”). Adiante, às pp.78-79, afirma peremptoriamente que “[o] direito de acção foi outrora considerado uma emanação do direito subjectivo privado, como tal deste não se distinguindo. [...] O direito de acção é [...] hoje pacificamente entendido como um direito público totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a tutela judiciária, afirmando-se como existente: ainda que ela na realidade não exista, a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à emissão da sentença” (g.n.).

413

Nelson Nery Jr., Princípios do processo civil na Constituição Federal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, p.91. In verbis: “[…] o direito de ação é um direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo

à sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas as

condições da ação” (g.n.).

414 Quanto a essa definição de direito subjetivo, veja-se, por todos, Moreira Alves, Direito Romano, v. I,

192 deletéria). A segunda, quando não admite que existam direitos subjetivos em face de funções estatais. A ser assim, considerando-se que todos os deveres do Estado inserem-se nas constituições modernas (em texto ou em ideia)415, concluir-se-ia que todas as atividades estatais ― mesmo aquelas conseguidas do Estado-administração por ingerência direta do Estado-juiz ―, positivas ou negativas, seriam meros exercícios de função estatal, inábeis à geração de prejuízos e, portanto, alheios à noção de direito. Ter-se-ia aniquilado, num átimo de equívoco, toda a construção da Teoria dos Direitos Fundamentais, cuja maior conquista foi precisamente a identificação de direitos subjetivos públicos exercitáveis em face do próprio Estado, em todas as suas manifestações funcionais (Estado-administração, Estado-legislação e ― porque não ― Estado-jurisdição), quando a sua ação ou a sua inércia impliquem violação ou ameaça a direitos e garantidas fundamentais dos cidadãos (eficácia vertical dos direitos fundamentais). Daí porque ALEXY distinguiu, entre as variegadas classes de direitos fundamentais, a dos direitos à organização e ao procedimento, entre os quais estão os chamados “direitos a procedimentos judiciais e administrativos” (“Rechte auf gerichtliche und behördliche Verfahren”), que são essencialmente “direitos a uma proteção jurídica efetiva” e que, para mais, servem à “proteção de posições jurídicas existentes frente ao Estado e frente a terceiros”416. Eis aí, afinal, o bem da vida que está em jogo quando se exercita o direito de ação (independentemente de quaisquer ganhos patrimoniais): a proteção jurídica efetiva (em ato ou potência), a que o Estado não se pode negar. A ela se liga, ademais, uma série de deveres processuais correlatos, conformados de variegados modos pelas diversas legislações processuais, muitos dos quais adiante referidos (p.ex., o “Vorlagepflicht” do direito processual alemão ─ v., infra, tópico 20.2, n. VII).

Por tais motivos, continuaremos a referir, pontualmente, o direito de ação, seja porque se trata de expressão já consagrada pelo uso forense e juscientífico, seja ainda ― e sobretudo ― porque, em nosso entendimento, a locução não traz qualquer impropriedade terminológica.

415 Essa foi, a propósito, a objeção que, noutro contexto, E.-W. BÖCKENFÖRDE opôs à teoria dos direitos

fundamentais de ALEXY, e que foi esplendidamente respondida pelo próprio ALEXY em seu Epílogo (cit., pp.17-20 e 22-30).

193 VI. São parcas as informações sobre a instância “apud iudicem” no sistema formulário. Sabe-se que, à maneira das “legis actiones”, processava-se perante juízes populares, funcionando singularmente (“iudex unus”) ou em colegiado (“recuperatores”). Poderia perdurar por tempo indefinido, enquanto estivesse no cargo o magistrado que admitira a “actio”, se se tratasse de “iudicium império continens”; ou por até dezoito meses, se se tratasse de “iudicium legitimum”. Especula-se ainda que, independentemente do “iudicium” ― que provavelmente era entregue pelas partes ao “iudex unus” ou aos “recuperatores” (dir-se-á, doravante, apenas juiz ou “iudex”, como vínhamos fazendo, entendendo-se implícita a extensão lógica aos “recuperatores”) ―, o magistrado judicial ainda mandava ao juiz um “decretum”, por escrito, que lhe mandava julgar o litígio (“iussum iudicandi”). Outros acreditam que essa ordem estivesse implícita no cabeçalho do “iudicium” (“Octavius iudex esto”), ou ainda no comando final “si paret […] condemnato; si non paret, absoluito” 417. De qualquer modo, é certo que, no processo formulário, o magistrado podia interferir diretamente na atividade do “iudex”, inclusive constrangendo-o a cumprir exatamente o “iussum iudicandi”, dando-lhe instruções complementares ao próprio “iudicium” ou mesmo dimanando ordens concretas necessárias para o bom andamento de certos tipos de litígio (e.g., a ordem de sequestro da coisa litigiosa quando houvesse risco de subtração ou destruição, ensaiando quiçá as primeiras noções do poder geral de cautela). Por outro lado, não se admitia que tais intervenções cerceassem a livre convicção do “iudex” (o que antecipava, também embrionariamente, a compreensão da imparcialidade e da independência do juiz como garantias da jurisdição).

No dia designado pelo “iudex”, as partes deviam comparecer perante o mesmo para o julgamento do litígio; se não comparecessem até o meio-dia, respondiam por contumácia, ainda nos termos da Lei das XII Tábuas s (Tábua I, 8: “post meridiem praesenti litem addictio”). Faziam-no pessoalmente ou por representantes (como eram, e.g., o “cognitor”, o “procurator”, o “tutor” ou mesmo o“curator”). Supõe-se que, nesse ocasião, entregassem-lhe o “iudicium” (Gaio, Institutas, IV, 141). As razões eram então livremente expostas por autor e réu, em realização quase perfeita dos princípios instrumentais da

417 Cf. Kaser, Hackl, Das Römische…, pp.370-372; Carrelli, op.cit., pp.122-123; Moreira Alves, Direito

194 primazia da palavra, da imediatidade, da concentração e da identidade física do juiz, que a doutrina italiana reuniria séculos depois, qual complexo de ideias, sob o pálio do princípio da oralidade418.

Seguia-se a fase probatória, quando se produzia a instrução e a ulterior discussão a respeito do resultado das provas. As fontes sugerem que os romanos já haviam desenvolvido, àquela altura, noções rudimentares de capacidade e independência técnico- judiciária ― que inspiraria, nos tempos modernos, o adágio “iura novit curia” ―, pois não se impunha às partes o ônus de provar as fontes de produção do direito, mas apenas as “quaestiones facti” (i.e., os fatos deduzidos pelo autor na “intentio” e/ou pelo réu na “exceptio”)419. Maturava-se, outrossim, a ideia de ônus da prova, remontando a esse período a regra descrita por PAULO (D. 22, 3, 2): “ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat”. Tal ideia viria a ser ulteriormente consagrada em inúmeras codificações, como garantia do cidadão contra a pronúncia do “non liquet”420. Ainda não era assim, porém, no processo formulário. Pode-se afirmá-lo pela célebre narrativa de AULO GÉLIO que, investido na condição de “iudex”, viu-se diante de situação na qual o autor, pessoa de comprovada idoneidade, reclamava quantia decorrente de mútuo, que o réu, sabido aldrabão, alegava já ter quitado. Como o autor não houvera produzido provas quaisquer, o patrono do réu insistia na sua absolvição, com a consequente condenação do autor por calúnia, à falta de prova bastante da subsistência da dívida. AULO GÉLIO aconselhou-se com o filósofo FAVORINO, que propôs condenar o réu tão só pela sua reputação infeliz. Entretanto, não convencido do acerto da tese (que, afinal, escorava-se apenas nos traços

418 Diz-se “quase perfeita” ― em relação à oralidade perfeita do procedimento das “legis actiones”, de que

se tem menos informações, mas a cujo propósito não se conhecem fases documentais ―, em virtude do próprio “iudicium” (que, no processo formulário, tem forma sabidamente escrita e era de existência

necessária). Veja-se, por todos: “Exclusivamente oral era, entre os romanos, o procedimento no período das ações da lei. A oralidade perdurou no período clássico, mas já então a fórmula [na verdade, o “iudicium”] se revestia de forma escrita. Na extraordinaria cognitio o procedimento transformou-se em escrito no tocante a vários atos, permanecendo os debates orais” (Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover,

Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993, p.274). Sobre os procedimentos da “cognitio extraordinaria”, veja-se o tópico seguinte. Mesmo a influência dos germânicos invasores reforçaria a ideia da oralidade, já que eram inteiramente orais os procedimentos entre eles; a primazia do princípio da documentação só despontaria no medievo, a partir da reação do direito canônico.

419 Kaser, Hackl, Das Römische…, pp.363-364.

420 No caso brasileiro, a regra ainda mantém toda a sua positividade no artigo 818 da CLT, que dispõe, para o

processo do trabalho, que “a prova incumbe a quem alega” (sem recorrer aos paradigmas de ROSENBERG, como fez o Código de Processo Civil em 1973 ― cf., supra, o tópico 1.1, VII, caso n. 2).

195 morais das partes), AULO GÉLIO pronunciou o “non liquet”, ignorando a regra incipiente de distribuição do ônus da prova421.

Dados sistematizados sobre os meios de prova recolhem-se sobretudo na obra dos retóricos, mais que à dos juristas422. Tais meios eram classificados como “probationes inartificiales” (“atechnai pisteis”423) ou como “probationes artificiales”, conforme a sua assimilação semântica dependesse ou não da argumentação das partes. Entre as provas admissíveis, as fontes indicam alguns meios típicos: “preiudicia” (sentenças anteriormente prolatadas), “fama atque rumores” (conhecimento público ou verdade sabida), “tormenta” (tortura), “iusiurandum” (juramento), “tabulae” (documentos), “testes” (testemunhas)424. Paulatinamente, as provas de tipo documental e testemunhal tornaram-se os mais relevantes meios de prova forense, como o são ainda hoje, ao lado da prova de tipo pericial. Após a colheita das provas, os oradores ― advogados das partes ― faziam suas alegações finais, em verdadeiros discursos que inspirariam a teoria geral da retórica (“exordium”, “narratio”, “partitio”, “confirmatio”, “reprehensio” ou “refutatio” e “conclusio”).

Na sequência, o processo seguia para o julgamento.

Nele, o “iudex” formava livremente a sua convicção (aconselhando-se ou não com assessores e jurisconsultos), abrindo-se-lhe duas opções. Se não lograsse concluir qual das partes tinha razão, abster-se-ia de prolatar sentença, proferindo o juramento “sibi non liquere” (como, supra, no exemplo de AULO GÉLIO), o que autorizava os litigantes a requererem ao magistrado a designação de outro juiz popular. Do contrário, e as mais das vezes, deveria prolatar a sua sentença (“pronunciatio”), dispensada de quaisquer pressupostos de forma, exceto quanto à estrita adstrição aos conteúdos da fórmula (supra) ― e não “à lei”, como se diria hodiernamente. Em sentença, a função do “iudex” era

421 Cf. P. W. Duff, “Non liquet”, in Butterworths South African Law Review, Durban, Butterworths, 1956, v.

3, pp.39-40; Cruz e Tucci, Azevedo, Lições..., pp.126-127.

422 Kaser, Hackl, Das Römische…, p.365. 423

Na expressão de origem grega (πίστεις άτέχναι).

424 Kaser, Hackl, Das Römische…, p.365; Cruz e Tucci, Azevendo, Lições…, p.125. CÍCERO apontara elenco

ligeiramente diverso: “tabulae”, “testimonia”, “pacta conventa”, “quaestiones”, “leges”, “senatus

consulta”, “res iudicatae”, “decreta” e “responsa” (apud Kaser, Hackl, Das Römische…, p.365, nota n. 29),

com alguma confusão entre o que modernamente se conhece como meios de prova e como fontes formais de

196 basicamente a de verificar a veracidade dos fatos alegados na “intentio” e ― se houvesse ― na “exceptio”, na “replicatio”, na “duplicatio” e/ou na “triplicatio”, condenando ou absolvendo o réu (“iussus indicandi”) com base nesse juízo, nos termos da própria fórmula (“si paret condemnato; si non paret, absoluito” ), sem maiores ponderações sobre o “quantum debeatur” (= abstração quantativa “ex formula”).

Mas não é só. Para além dessa, havia diversas outras concessões ao formalismo do período anterior. Sabe-se, p. ex., que o “iudex” (i) deveria absolver o réu, se a pretensão narrada na “intentio” não fosse exata ― já que não se reconhecia, ao autor, uma faculdade processual de retificação ―, o que poderia significar, em alguns casos (“plus petitio re”, “plus petitio tempore”, “plus petitio loco”, “plus petitio causa”), a perda da pretensão material, pelos amplos efeitos extintivos da “litis contestatio”; (ii) deveria limitar-se à situação de fato ocorrente no momento histórico da “litis contestatio”, desconsiderando quaisquer fatos posteriores a ela, mesmo que anteriores à sentença; (iii) não poderia jamais condenar o próprio autor, pois os poderes oriundos da fórmula atinham-se à condenação ou absolvição do réu425.

As três primeiras limitações cederam já no período formulário, com o advento de novas ferramentas processuais ― como a “actio eo quod certo loco” (para evitar a “plus petitio loco”) ― e, notadamente, com a evolução das “iudicia” de boa-fé (infra, VIII), nos quais o juiz podia livremente avaliar o valor da condenação ou levar em conta fatos ocorridos após a “litis contestatio”. Já a derradeira limitação ― intangibilidade do autor ― pôde ser superada pontualmente, com a possibilidade de se incluir, no interesse do réu, uma cláusula adicional à fórmula, a que se denominava “iudicium contrarium” (provavelmente o antecedente histórico mais bem-formado das atuais reconvenções426). Na verdade, essa intangibilidade pode ser reconhecida, ainda hoje, como aspecto lateral do próprio princípio da correlação entre a demanda e a sentença (supra, n. I); logo, uma garantia processual. Mas tem admitido inflexões, como nas condenações “ex officio” por ato não cooperativo

425 Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.279-280. Essas restrições à “plus petitio” seriam grandemente

superadas no processo “extra ordinem”, a ponto de se admitir a ultrapetição, como se dirá adiante (tópico 7.3.4).

426 Que viriam a ser formalmente admitidas, como “actiones” conexas e contrárias, somente na “cognitio

197 ou litigância de má-fé (e.g., artigo 14, par. único, e artigos 17 e 18 do CPC, respectivamente), ou ainda nas exceções sistêmicas (e.g., artigo 74º do CPT).

Proferida a sentença, seu principal efeito era a produção da “res iudicata” ― dimensionada pelos “tria eadem” (supra, IV) ― e, nas sentenças condenatórias, a criação

Outline

Documentos relacionados