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A capacidade aglutinante desse último fenômeno tende a variar de um país para outro, conforme o grau de ortodoxia das respectivas comunidades jurídicas

(especialmente entre os magistrados). Uma vez que o objeto deste escorço é tão só evidenciar o problema, sem pretensões de mapeá-lo na jurisprudência comparada, ater-nos- emos ao caso brasileiro; e, nesse universo, destacaremos seis casos paradigmáticos.

CASO nº 1. Antecipação “ex officio” dos efeitos da tutela de mérito

O artigo 273 do Código de Processo Civil brasileiro estatui, em seu caput, o seguinte:

“o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

intuitivement est penser en durée”, até que “[l]'intuition nous donne la chose dont l'intelligence ne saisit que la transposition spatiale, la traduction métaphorique” (Bergson, La Pensée..., p.44). A propósito das

“intervenções intuitivas” no processo judicial, entretanto, convirá reconhecer uma tendência a se plasmarem em modo mais reativo do que propriamente refletido (mesmo porque aviadas, de regra, em tutelas de urgência e evidência); logo, muito distantes do ideal bergsoniano...

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“I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;

“II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu” (g.n.)39.

Como se vê, o legislador federal condicionou expressamente a antecipação dos efeitos da tutela de mérito à formalidade do requerimento do autor. A teor da dicção legal, não poderia o juiz brasileiro, em nenhuma hipótese, conceder antecipação dos efeitos da tutela de mérito, na hipótese do artigo 273 do CPC, sem requerimento expresso do interessado, na própria petição inicial ou, ulteriormente, por petição avulsa. Mesma formalidade não se exige, entretanto, para a imposição liminar de multa diária ao réu nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, desde que “relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final” (artigo 461, §3º, do CPC); em tais casos, a imposição das “astreintes” pode ser feita “de ofício ou a requerimento” (§4º) ― nada obstante também se trate, ontologicamente, de antecipação dos efeitos da tutela de mérito.

À vista disso, nalguns nichos de doutrina40 e jurisprudência41, ganhou força a tese de que a antecipação dos efeitos de tutela, mesmo nos casos de pretensões de condenação por quantia certa ou para entrega de coisa, poderia ser concedida de ofício. No Poder Judiciário

39 O preceito será explorado no tópico 27.2.1 (infra). 40

Cf., por todos, José Roberto dos Santos Bedaque, Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de

urgência (tentativa de sistematização), São Paulo, Malheiros, 1998, pp.351-353. In verbis: “Não se podem excluir [...] situações excepcionais em que o juiz verifique a necessidade de antecipação, diante do risco iminente de perecimento do direito cuja tutela é pleiteada e do qual existam provas suficientes de verossimilhança. [...] Nesses casos extremos, em que, apesar de presentes os requisitos legais, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional não é requerida pela parte, a atuação ex officio do juiz constitui o único meio de se preservar a utilidade do resultado do processo”. Em sentido contrário, com todo o tom ácido da

sua crítica, cf. José Joaquim Calmon de Passos, Comentários ao Código de Processo Civil, 8ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998, p.21 (quanto a direitos disponíveis ou indisponíveis): “Para o que se coloca, no

processo, sob a responsabilidade do magistrado, cumprindo-lhe velar sobre determinados interesses, já existe, no CPC, a solução das medidas provisionais, sobre que tem o juiz o poder de prover de ofício, resguardando esses interesses. Ainda aqui [na antecipação de tutela], cumpre não se confundir nem se balburdiar, por despreparo ou autoritarismo, o que já está tão bem disciplinado em nosso ordenamento processual”. Por esse excerto, pode-se perceber como se cuida, realmente, de uma inflexão particularmente

sensível do devido processo formal.

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Na jurisdição cível, BARBOSA MOREIRA observou que o acanhamento dos advogados levou os juízes estaduais, notadamente nos procedimentos sumaríssimos (Juizados Especiais Cíveis) e nas causas de família, a “desprezar a letra da lei e decretar de ofício a antecipação de tutela, em casos nos quais encontra base

sólida a convicção da imprescindibilidade da medida” (José Carlos Barbosa Moreira, “As reformas do Código de Processo Civil: condições de uma avaliação objetiva”, in Revista de Direito Processual Civil II,

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brasileiro, essa “intuição” decisória ― que aparece justificada das mais diversas maneiras (a evocar, geralmente, a hipótese-paradigma do artigo 461, §3º, do CPC) ― espraiou-se muito particularmente pela Justiça do Trabalho, denotando uma relação empírica entre a pulsão de antecipar efeitos meritórios “ex officio” e a hipossuficiência econômica do reclamante (em geral, um ex-empregado). Mesma pulsão não se manifesta nas ações ajuizadas por empregadores (e.g., os inquéritos para apuração de falta grave42), conquanto tramitem perante os mesmos órgãos judiciários. Dir-se-ia, em avaliação rasa, tratar-se de mera propensão ideológica daquele ramo do Poder Judiciário, a engendrar perigosos níveis de parcialidade. Assim já não nos parece. Tanto as teorias da argumentação quanto a doutrina dos direitos fundamentais podem, em larga medida, contribuir para uma explicação racional e objetiva desse fenômeno, coibindo os eventuais excessos. É o que oxalá demonstraremos.

CASO nº 2. Repartição do ônus da prova

Seguindo de perto a doutrina de ROSENBERG, o artigo 333 do Código de Processo Civil brasileiro estabelece que o ônus da prova incumbe ao autor da ação, quanto ao fato constitutivo do seu direito (inciso I); e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extinto do direito do autor (inciso II). No processo do trabalho, a CLT estatui, em seu artigo 818, que a prova das alegações importa à parte que as fizer; e, de resto, remete à legislação processual civil naquilo em que for omissa (artigo 769 da CLT). Note-se que o ordenamento brasileiro não possui uma regra geral de inversão do “onus probandi”, à diferença do português (artigo 344º, 2, do Código Civil português).

Supor-se-ia, dessarte, ser do reclamante o ônus de comprovar as horas extraordinárias por ele narradas, bem como o término do contrato de trabalho; isso porque tanto a jornada quanto a terminação contratual compõem as alegações do reclamante e são fatos constitutivos dos direitos pleiteados (remuneração das extras, pagamento dos haveres resilitórios, movimentação do FGTS, etc.). Mas, consultando-se a Súmula de Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, constata-se haver, num caso e noutro,

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orientação pacífica quanto à inversão do ônus da prova, que passa ao encargo do ex- empregador nas hipóteses das Súmulas n. 33843 e 21244 do C.TST, respectivamente. Os juízos de base tendem a seguir tais súmulas, seja pelo seu conteúdo tuitivo (na esteira do chamado “princípio da proteção”), seja pela força do argumento “ex auctoritate” (trata-se de precedentes da mais alta corte trabalhista nacional). Hipóteses semelhantes são encontradiças em vários outros nichos jurisprudenciais, mormente quando as pretensões têm índole humanitária (cobertura securitária em casos de soropositividade para HIV, discriminação nos serviços públicos, etc.). À margem de norma processual específica (preexistente em raros ensejos, como nos litígios consumeristas e nos contratos de empréstimo e financiamento ― respectivamente, artigos 6º, VIII, do CDC45, e 3º da MP n. 2.172-3, de 23.08.200146), tais decisões parecem desconhecer a legislação em vigor e, nessa medida, violar o devido processo formal47.

43 Súmula n. 338: “Jornada de trabalho. Registro. Ônus da prova. […] I – É ônus do empregador que conta

com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, §2º, da CLT. A não apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode se elidida por prova em contrário. […] III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir”. Como se percebe, são duas as hipóteses de inversão pretoriana do ônus da prova em matéria de

jornada de trabalho: (a) se o empregador não observa o dever legal de registrar documentalmente a jornada de seus empregados (existente para empresas com mais de dez empregados, ut artigo 74, §2º, da CLT); (b) se os registros mantidos são “britânicos”, i.e., se por longos períodos não apresentam qualquer variação, de minutos ou segundos, para mais ou para menos (precisão cronológica que ― diz a boa razão ― foge às imprevisões do elemento humano).

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Súmula n. 212: “Despedimento. Ônus da prova. O ônus de provar o término do contrato de trabalho,

quando negados a prestação de serviços e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado”. Trata-se, a propósito, de

um princípio não escrito, geralmente aceito pela doutrina juslaboral (cf., por todos, Américo Plá Rodriguez,

Princípios de Direito do Trabalho, trad. Wagner Giglio, São Paulo, LTr, 1996, pp.244 e ss.); logo, a súmula

admite explicitamente uma inflexão do devido processo formal à conta de uma norma de direito material (norma-princípio implícita).

45 “São direitos básicos do consumidor: […] a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a

inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”.

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“Nas ações que visem à declaração de nulidade de estipulação com amparo no disposto nesta Medida

Provisória, incumbirá ao credor ou beneficiário do negócio o ônus de provar a regularidade jurídica das correspondentes obrigações, sempre que demonstrada pelo prejudicado, ou pelas circunstâncias do caso, a verossimilhança da alegação”. A doutrina brasileira tem criticado o preceito, haja vista tratar-se, a rigor, de ação de nulidade de ato jurídico (i.e., ação constitutiva negativa ― e não “declaratória” ou de simples

apreciação). Cf., por todos, Rodrigo Xavier Leonardo, Imposição e inversão do ônus da prova, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, pp.305-306.

47 Não raro, ensaia-se aplicar, a toda a casuística anterior (não legislada), a norma do artigo 6º, VIII, do CDC,

por analogia “iuris”. Não nos parece, porém, ser esse o melhor desenlace, haja vista que nem sempre as inversões pretorianas têm por base a hipossuficiência técnica ou econômica do favorecido (como, e.g., nas hipóteses de soropositividade), que é a “ratio essendi” da regra inserta no Código de Defesa do Consumidor.

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CASO nº 3. Liminares em face do poder público

Nos termos da Lei n. 4.348, de 26.06.1964 e da Lei n. 8.437, de 03.06.1992, a Fazenda Pública brasileira goza de especial privilégio contra a concessão de medidas liminares cautelares ou antecipatórias. Com efeito, proíbe-se a concessão de medida liminar em mandados de segurança que visem à reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens funcionais (artigo 5º da Lei n. 4.348/64); tampouco é cabível medida liminar contra atos do poder público, em quaisquer ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança (artigo 1º, caput, da Lei n. 8.437/92, remontando à hipótese do artigo 5º da Lei n. 4.348/64). São ainda vedadas as medidas liminares que esgotem, no todo ou em parte, o objeto da ação movida em face da Fazenda Pública (artigo 1º, §3º, da Lei n. 8.437/92), ou quaisquer que defiram compensação de créditos tributários ou previdenciários (artigo 1º, §5º, da Lei n. 8.437/92). Todas essas limitações se aplicam, outrossim, às formas de tutela antecipada previstas nos artigos 273 e 461 do CPC, ut artigo 1º da Lei n. 9.494/97. Enfim, mesmo nos mandados de segurança coletivos e nas ações civis públicas, eventuais medidas liminares jamais poderão ser deferidas “inaudita altera parte”, porque só poderão ser concedidas após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público (artigo 2º da Lei n. 8.437/92). O motivo de tamanhas restrições está na possibilidade de que a Fazenda, gestora oficial de todo o dinheiro arrecadado junto à coletividade, se veja surpreendida, orçamentaria e financeiramente, por liminares que impliquem entrega de somas pecuniárias48.

Avolumam-se, porém, as decisões que ignoram ou “contornam” a vedação processual de medidas liminares em detrimento do erário, ora argumentando a sua inconstitucionalidade49 (com evidente desacerto, porque, a ser assim, tais normas jamais

Além disso, ao menos no campo da jurisdição civil, não haveria que se falar em “analogia”, que é um método

de integração (i.e., serve à colmatação de lacunas ― artigo 4º da LICC), se o Código de Processo Civil vazou

norma expressa a respeito (artigo 333).

48 Cf., nesse sentido, Luiz Fux, “O novo microssistema legislativo das liminares contra o Poder Público”, in

Processo e Constituição: Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira, Luiz Fux,

Nelson Nery Jr., Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.), São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p.827.

49 Para MARINONI, p.ex., “qualquer medida provisória ou lei que vede a concessão de tutela antecipatória

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poderiam ser aplicadas50), ora contrapondo, à sua eficácia, normas-princípio de conteúdo indeterminado (como ocorre, no Direito do Trabalho, com o já referido princípio da proteção) alocadas em esquemas hermenêuticos pouco transparentes.

CASO nº 4. Admissão de provas ilícitas e/ou ilegítimas

A Constituição da República Federativa do Brasil é peremptória ao declarar “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (artigo 5º, LVI). Nada obstante, os tribunais superiores brasileiros já admitiram no processo provas de origem essencialmente ilícita, em variegadas ocasiões, quando estiveram em jogo bens, direitos ou interesses jurídicos tão ou mais valiosos que aqueles vulnerados pela produção da prova (como, e.g., o “status libertatis” 51, a segurança pública52 ou o direito à identidade biológica53). Têm-se, outra vez, fissões aparentes na tessitura do devido processo formal, amiúde justificadas por um anódino “princípio da verdade real” (dada a maior incidência no processo penal) ou, mais adequadamente, pelo princípio instrumental da tutela, 9ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p.386). A ilação, como se vê, é posterior à decisão na

ADC n. 04/DF, que caminhou em sentido diametralmente oposto (e com eficácia “erga omnes”). V., infra, o tópico 27.2.1.

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Pense-se, e.g., na realização imediata de um crédito de empresa privada cujo montante comprometa, no âmbito do município, a própria execução de serviços públicos tão fundamentais como a coleta de lixo, o funcionamento das escolas municipais ou a atividade da guarda civil metropolitana. Para hipóteses como essas, que tendem a ser frequentes, a vedação legal é legítima e imperiosa.

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Nesse sentido, cf., por todos, Ada Pellegrini Grinover, Novas Tendências do Direito Processual, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990, pp.60-61. Na jurisprudência, cf. STJ, ROHC n. 7216-SP, Proc. n. 1998/00004035-8, 5a T., rel. Min. EDSON VIDIGAL, v.m., 28.04.1998, in DJ 25.05.1998, p. 125 (gravação clandestina de conversa telefônica).

52 Cf., e.g., STJ, HC n. 3982/RJ, Proc. n. 1995/0053161-5, 6a T., rel. Min. ADHEMAR MACIEL, 05.12.1995,

in DJ 26.02.1996, p. 4084. In verbis: “A própria Constituição Federal brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da “atualização constitucional” (Verfassungsaktualisierung), base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa. A jurisprudência norte-americana mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal não é tranqüila. Sempre é invocável o princípio da “razoabilidade” (reasonableness). O “princípio da exclusão das provas ilicitamente obtidas” (exclusionary rules) também lá pede temperamentos. Ordem denegada”.

53 Cf., e.g., STF, HC n. 76.060-4, 1ª T., rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j. 31.03.1998, in Lex-STF n.

237, pp.304-309. Não se referendou concretamente a constrição física do suposto pai ao fornecimento de amostras biológicas para exame de DNA, mas apenas por se tratar, na espécie, de mera “prova de reforço”.

“A contrario sensu”, o aresto parece sugerir que, se a paternidade genética não puder ser investigada sem a

participação do réu, justificar-se-ia, excepcionalmente, o constrangimento físico ao exame hamatológico. Nesse preciso sentido, em Portugal, cf. Ana Paula Mota da Costa e Silva, “A realização coerciva de testes de

ADN em acções de estabelecimento de filiação”, in Estudos em Homenagem à Professora Isabel de Magalhães Collaço (Separata), Coimbra, Almedina, 2002, v. II, passim (especialmente pp.595-597). Tal

escólio inspirou obra nossa, posterior, que tisnou tema similar (vide nota subsequente). V., infra, os tópicos 15.4 e 31.2.

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proporcionalidade. Essa última é, certamente, uma explicação razoável (como, aliás, já sustentamos noutro estudo54); mas deve ser inserida em um modelo decisório mais amplo, que contemple, tanto quanto possível, índices objetivos de valoração dos bens, direitos e interesses envolvidos em cada caso concreto.

CASO nº 5. Penhora de vencimentos, salários e afins

São absolutamente impenhoráveis, a teor do artigo 649, IV, do Código de Processo Civil brasileiro,

“os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no §3º deste artigo” [Redação da Lei n. 11.382, de 06.12.2006].

O parágrafo 2º do artigo 649 da CPC estatui que a impenhorabilidade do inciso IV não é oponível aos créditos de prestação alimentícia. E o seu parágrafo 3º ― acrescentado pela Lei n. 11.382/2006 ― dispunha, por via de exceção, sobre a penhorabilidade de quarenta por cento (40%) da importância recebida mensalmente, a título de vencimentos, subsídios, soldos, salários, etc., além da marca de vinte salários mínimos (após efetuados os descontos de imposto de renda retíveis na fonte, da contribuição previdenciária oficial e de outros descontos compulsórios). Tal parágrafo, porém, foi vetado pelo Presidente da República, e o veto não foi derrubado pelo Congresso Nacional brasileiro.

Pareceria induvidoso, portanto, que o sistema legal brasileiro não admite, em sede de execução, qualquer penhora de vencimentos, subsídios, soldos, salários ou equivalentes, à exceção daquelas lastreadas em prestação alimentícia devida a parentes, cônjuges ou companheiros (artigos 1694 a 1710 do NCC). Afinal, o único estribo legal para outro tipo

54 Cf., de nossa lavra, Direito à prova e dignidade humana: Cooperação e proporcionalidade nas provas

condicionadas à disposição física da pessoa humana, São Paulo, LTr, 2007, passim (com prefácio de PAULA

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de penhora sobre salários e afins ― o malsinado parágrafo 3º ― nem mesmo entrou em vigor.

Nada obstante, ainda aqui se pode compilar jurisprudência que pugna por solução diversa, “relativizando” uma restrição processual literal. Tal corrente equipara, às prestações alimentícias típicas (devidas a parentes, cônjuges e companheiros), as prestações salariais contratuais (devidas a empregados e ex-empregados), ao argumento de que ambas têm caráter alimentar (conquanto estrito no primeiro caso e lato no último). Admite, por conseguinte, penhoras parciais de salários, vencimentos, soldos, subsídios, proventos de aposentadoria e afins, desde que se prestem a assegurar a satisfação de salários devidos ao exequente. Não há, com isso, subversão do devido processo de execução? Não se liquida o direito do executado ao devido processo formal (i.e., a ser executado nos estritos limites da lei)? Cumprir-nos-á descobrir55.

CASO nº 6. Competência penal da Justiça do Trabalho brasileira

Ao ensejo da EC n. 45, de 08.12.2004, alterou-se o disposto no artigo 114 da CRFB, ampliando-se significativamente a competência da Justiça do Trabalho brasileira. Apesar disso, uma parte da magistratura do trabalho e do ministério público do trabalho frustrou- se, por lhe terem sido negadas, respectivamente, a competência e a legitimidade para o processo e o julgamento dos crimes e contravenções contra a organização do trabalho e contra a administração da Justiça do Trabalho, à mercê da rejeição de todas as propostas de emenda constitucional que a encaminhavam. Com efeito, o artigo 114 da CRFB nada disse quanto à competência penal condenatória da Justiça do Trabalho (conferiu-lhe tão só a competência para uma ação penal liberatória, a saber, o habeas corpus ― artigo 114, IV); o artigo 109, VI, por outro lado, prosseguiu conferindo à Justiça Federal comum a competência para processar e julgar “os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira”.

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Nos meses seguintes, desenvolveram-se teses forenses de “competência penal implícita” arrimada nos incisos I e IV do artigo 114 da CRFB56, subministrando interpretações construtivas que identificaram, no silêncio relativo do texto constitucional, hipóteses residuais de competência penal condenatória acometidas à Justiça do Trabalho57. De um lado, argumentou-se com a interpretação sistemática da Constituição Federal e a tese da “adequação legítima” (baseada na conveniência da unidade de convicção em matérias trabalhistas)58. De outro, esgrimiu-se com o novo perfil da Justiça do Trabalho (doravante uma “justiça comum do trabalho” 59) e com o acentuado déficit de efetividade das normas juslaborais, para cujo refluxo contribuiria pedagogicamente a efetiva aplicação de sanções penais “stricto sensu” (na esteira dos seus efeitos de prevenção geral ― positiva e negativa ― e de prevenção especial60); e, de fato, as ferramentas do Direito Penal

56 Essas teses foram especialmente implementadas no Estado de Santa Catarina, junto à Vara do Trabalho de

Indaial, onde as opiniões convergentes do procurador e do juiz do trabalho oficiantes permitiram a realização

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