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Pelo efeito extintivo, o autor não teria mais a “actio” referente àquela relação litigiosa; logo, não poderia ajuizar outra ação “de eadem re” (de mesmo objeto): “bis de

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

IV. Pelo efeito extintivo, o autor não teria mais a “actio” referente àquela relação litigiosa; logo, não poderia ajuizar outra ação “de eadem re” (de mesmo objeto): “bis de

eadem re ne sit actio”. Reconhecia-se, pois, a garantia do julgamento único, que é uma das cláusulas inerentes ao devido processo legal formal; e, bem assim, introduzia-se a noção de litispendência, com a respectiva “exceptio” (“exceptio rei in iudicium deducta”, i.e., “exceção de coisa deduzida em juízo”). Na processualística contemporânea, ante a distinção conceitual entre objeções (defesas indiretas cognoscíveis “ex officio”, por inspirarem agudo interesse público) e exceções “stricto sensu” (defesas indiretas que só se conhecem por provocação da parte, ante o preponderante interesse privado)392, diz-se melhor ser a litispendência uma objeção; mas também isso era já intuído pelo gênio romano, uma vez que o efeito extintivo da “litis contestatio” podia ser atuado “exceptionis ope” (i.e., mediante alegação do réu, em via de “exceptio”, com a consequente inserção do tema no “iudicium” e ulterior apreciação pelo juiz popular que, apurando a veracidade da alegação, absolveria o demandado), mas também “ipso iure” (i.e., com o decreto liminar de

391 Para a exposição cuidadosa dessas teorias, cf., por todos, Odoardo Carrelli, La Genesi del Procedimento

Formulare, Milano, Giuffrè, 1946, passim. A tese dominante, ainda hoje, é a de WLASSAK (Moreira Alves, Direito Romano, v. I, p.259).

392 Sobre a distinção entre objeções e exceções, cf., por todos, José Joaquim Calmon de Passos, Comentários

185 “denegatio actionis”, exarado pelo próprio magistrado judicial na fase “iu iure”, desde que houvesse evidência bastante da “litis contestatio” anteriormente pactuada)393.

Diga-se, por oportuno, remontar a este período a origem mais provável da teoria dos “tria eadem”, que está na base da identificação dos casos litispendentes ou prejulgados (i.e., na base das arguições processuais de litispendência e/ou de coisa julgada), compondo uma faceta importante da noção contemporânea de “procedural due process” (= singularidade dos julgamentos ― a debelar, p. ex., a possibilidade de “double jeopardy” ou “bis in idem” processual). Com efeito, embora a noção remota dos “tria eadem” provavelmente informasse a proibição de “rem actam agere” no período das “legis actiones”, a sua delimitação conceitual, com específica referência ao efeito extintivo da “litis contestatio”, descobre-se e consolida-se no período formulário394. Demonstram-no passagens eloquentes do Digesto. JULIANO condicionou à identidade de pessoas (“eadem personae”) e à identidade de relação jurídica (“eadem quaestio”) a possibilidade de oposição da “exceptio rei iudicatae” (D. 44, 2, 3). Aprofundando a ideia, PAULO vinculou a “exceptio rei iudicata vel in iudicium deducta” ― i.e., tanto a exceção de coisa julgada como a de litispendência ― à existência de “idem corpus”, “eadem causa petendi” e “eadem condicio personarum” (D. 44, 2,12 e 44, 2, 14), ponderando dispensar-se até mesmo a identidade pessoal, desde que, fisicamente diversos, os sujeitos estivessem em idêntica posição jurídica (p. ex., o titular do direito e aqueles legitimados a falar por ele em juízo ― como o “cognitor”, o “actor municipum” ou o “defensor” ―, os vários credores ou devedores “in solidum”, os condóminos de um imóvel etc.)395. Debateu-se, outrossim,

393 Na realidade, a “litis contestatio” só produzia efeitos extintivos “ipso iure” ― independentemente da

“exceptio rei in iudicium deducta” ― se (1) se tratasse de “iudicium legitimum” (i.e., tipo de processo

instaurado em Roma, ou no território circundante até uma milha de distância, no qual eram partes cidadãos romanos e atuava um único “iudex”, também cidadão romano); e (2) se o objeto do litígio derivasse de uma

“obligatio iuris ciuilis” (i.e., de uma obrigação reconhecida pelo “ius civile”, e não de um direito real ou de

uma obrigação “iuris honorarii”). Cf. Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.275-276. Ademais, tanto para a distinção entre “ius civile” e “ius honorarium” como para a distinção entre o “iudicium legitimum” e o

“iudicium imperio continens” (tipo de processo no qual não se verificava algum dos requisitos do “iudicium legitimum” e que, por isso, não admitia o efeito extintivo “ipso iure” da “litiscontestatio”), veja-se, ainda, a

lição de GRENNIDGE na nota n. 369 (supra).

394 Cf., por todos, Giovanni Pugliese, “Giudicato civile (storia)”, in Enciclopedia del diritto, Varese, Giuffre,

1958, n. 18, pp. 727-784.

395 Idem, ibidem. Vejam-se, ainda, Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.282-284; José Rogério Cruz e

Tucci, Luiz Carlos de Azevedo, Lições de História do Processo Civil Romano, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, pp.104-108.

186 se, no marco das ações reais (“actiones in rem”)396, a “opinio petitoris” deduzida na “intentio” era relevante para a identificação da ação, limitando os efeitos preclusivos da “litis contestatio”. Conquanto se negasse, em geral, tal relevância (D. 44, 2, 11, 5), os jurisconsultos clássicos entenderam que aquela limitação seria possível, se a fórmula especificasse minudentemente a “causa petendi” da alegada aquisição (“agere expressa causa”).

Debater hoje em dia a relativização da coisa julgada (infra, §32º) passa pela correta compreensão da garantia da singularidade de julgamentos, inclusive no seu nascedouro. Di- lo-emos adiante. Por ora, entretanto, voltemos aos efeitos mesmos da “litis contestatio”.

Pelo efeito fixador, o “iudex”, ao julgar a lide, deveria considerá-la como existia ao tempo da “litis contestatio”, nos limites do “iudicium”, desprezando modificações ocorridas posteriormente (a ponto de se discutir se, uma vez paga a dívida no interregno compreendido entre a “litis contestatio” e a instância “apud iudicem”, ainda assim o juiz deveria condenar o réu397). Como já se observou (item I), o efeito fixador consagrou, no processo romano, a garantia da correlação entre a demanda ― tal como fixada na “litis contestatio” ― e a sentença (garantia que, hoje, sabe-se ter natureza principiológica).

Alfim, o efeito criativo refere-se à gênese de um direito essencialmente processual com a celebração da “litis contestatio”, a saber, o direito de o autor obter, do “iudex”, a condenação do réu, se verdadeiros os pressupostos contidos no “iudicium”. Os romanistas ponderam que esse “direito novo” era, sim, um direito de crédito (logo, um direito subjetivo material), pois as condenações, no processo formulário, eram somente em dinheiro (Gaio, Institutas, IV, 48); mas entendem também ser um direito novo, porque o seu fundamento já não era mais aquele do direito trazido a juízo (e.g., a “obligatio ex contracto” ou “ex delicto”), mas a própria “litis contestatio” (tanto que, numa ação indenizatória, se já houvesse “litis contestatio” no momento da morte do credor “ex

396 Isso porque, no marco das ações pessoais (“actiones in personam”), tal relevância era pacífica, uma vez

que uma mesma prestação poderia ser devida por força de relações obrigacionais diversas, inconfundíveis e autônomas entre si (“singulas obligationes singulae causae sequuntur”), de modo que se tornou ônus do

autor delimitar a “causa obligationes” (Cruz e Tucci, Azevedo, Lições…, p.106).

187 delicto”, os herdeiros poderiam continuar a ação e se favorecer com a sentença do “iudex”, muito embora, pelo “ius civile”, o direito de crédito em obrigações “ex delito” não se transferisse aos herdeiros do credor398).

Parece-nos, porém, que essa tese ― a sugerir, grosso modo, uma espécie de “novação objetiva” do crédito399 ― não reflete bem o propósito desse efeito criativo, que era autonomizar a pretensão original, blindando-a, a partir da “litis contestatio”, de quaisquer eventos aleatórios que pudessem prejudicá-la (como, nas “obligationes ex delicto”, a própria morte do credor, em prejuízo dos herdeiros, a quem aproveitaria o crédito, por sucessão natural, se o devedor o houvesse satisfeito ao menos até o instante da “litis contestatio”). Esse tipo de blindagem implica, no plano das ideias, a abstração da causa jurídica original, a partir da estabilização do litígio, para que, a partir de então, os riscos gerais da vida não sejam mais suportados pelo sedizente credor (que, pela resistência do indigitado devedor, viu-se urgido a recorrer ao Estado), mas pelo indigitado devedor (i.e., o réu), “si et quando” confirmada a versão do autor. Na processualística contemporânea, esse exercício de abstração conduziu à concepção da ação como direito abstrato (supra, nota n. 364), i.e., como direito eminentemente processual, desataviado do direito material litigioso; mas, nada obstante, o seu exercício tem o condão de blindar a pretensão contra certos eventos que extinguiriam, impediriam, depreciariam ou modificariam o direito material, como a prescrição, as perdas da demora ou a desvalorização da moeda400. Aí está um indício veemente de que a própria abstração do direito de ação, na acepção hodierna, deve ser instrumental: se se autonomiza em relação ao direito material que fundamenta a pretensão, não pode se desprender de modo absoluto,

398 Idem, p.276 e nota n. 443.

399 Dá-se a novação objetiva quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a

dívida anterior (cf., e.g., o artigo 360, I, do Código Civil brasileiro e o artigo 857º do Código Civil português).

400

Veja-se, e.g., o teor do artigo 219, caput, do CPC brasileiro (g.n.): “A citação válida torna prevento o

juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa [efeitos processuais]; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição [efeitos substantivos]”. No direito

português, vejam-se, para os principais efeitos substantivos da citação, os artigos 481º, “a” (cessação da boa- fé do possuidor), e 662º, 2, “b” (constituição em mora), ambos do CPC, e os artigos 323º, 1 (interrupção da prescrição), 805º, 1 (constituição em mora), 1292º (interrupção da usucapião, por extensão do artigo 323º) e 2308º, 3 (interrupção da caducidade da ação de nulidade de testamento ou de disposição testamentária), todos do Código Civil. Quanto à correção monetária ― que elide os males da desvalorização monetária ―, a tendência universal é considerá-la, sempre, espécie de pedido implícito ao exercício do direito de ação tendente a um provimento condenatório em pecúnia (assim como os próprios juros de mora ― cf., e.g., o artigo 293, “in fine”, do CPC brasileiro, bem como a Súmula n. 254 do C.STF).

188 porque a função teorética dessa abstração é, essencialmente, blindar a pretensão contra riscos gerais da vida a partir da concreta configuração do litígio (hoje, não mais com a “litis contestatio” ― que não resistiu à publicização do processo ―, mas com a citação401). Tudo isso para dizer que:

(a) o gênio jurídico romano, ao conceber o efeito criativo da “litis contestatio”, fez o primeiro movimento teórico no sentido de construir um direito de ação abstrato, que se autonomiza dos fundamentos jurídico-materiais da pretensão original;

(b) essa abstração tinha, ela própria, uma função de garantia, a saber, imunizar a pretensão litigiosa, uma vez estabilizada, de eventos que pudessem afetá-la sem a culpa ou a participação do autor (logo, tratava-se de uma abstração instrumental ― como ainda hoje deve ser, até por legado sistêmico, notadamente para que não se perca de vista o foco garantista do processo e as implicações recíprocas entre o direito material e o processo402);

(c) melhor que falar em um direito de crédito baseado na “litis contestatio” ― o que não se sustenta, sequer na perspectiva da novação objetiva, porque o réu não vinha de reconhecer o crédito do autor e nem mesmo se comprometia a reconhecê-lo caso o “iudex” confirmasse os pressupostos da “intentio” 403 ―, será falar em um direito processual de

401 “A citação do réu produz efeitos processuais e substantivos. São os seguintes os efeitos processuais: - a

estabilidade dos elementos subjectivos e objectivos da instância […]” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos

sobre o novo processo civil, 2ª ed., Lisboa, Lex, 1997, p.277 ― g.n.). Segue, no escólio, a discriminação dos

demais efeitos jurídico-processuais e dos efeitos jurídico-materiais da citação, nos termos da nota anterior.

402

Nesse sentido, veja-se, por ora, BEDAQUE: “A natureza instrumental do direito processual impõe sejam

seus institutos concebidos em conformidade com as necessidades do direito substancial. Isto é, a eficácia do

sistema processual será medida em função de sua utilidade para o ordenamento jurídico material e para a pacificação social. Não interessa, portanto, uma ciência processual conceitualmente perfeita, mas que não consiga atingir os resultados a que se propõe. Menos tecnicismo e mais justiça, é o que se pretende”.

Adiante: “Tratando-se de ciência instrumental, não é possível concebê-la sem a perfeita identificação dos

problemas existentes na sua área de atuação. O processualismo, isto é, a excessiva autonomia do processo

frente ao direito material, constitui um mal, pois desconsidera o objeto na construção do instrumento”

(Direito e Processo…, pp.17-18 ― g.n.). No entanto, a ideia mesma de implicações recíprocas entre Direito

e Processo na perspectiva de uma abstração “instrumental” ― que, na verdade, é corolário inevitável dos

dois pressupostos estruturantes desta investigação (supra, tópicos 5.1 e 5.2) ― será retomada e reformulada, adiante, em diversas passagens desta Tese.

403 Conquanto irrecorrível a sentença do “iudex” (supra), podia, entretanto, ser impugnada pelo réu ― e não

raro era ― mediante instrumentos como a “reuocatio in duplum” e a “restitutio in integrum”. No sistema formulário, já se via nisso o exercício de um direito (= de uma “actio”), não a violação de uma obrigação ou de um dever. Voltaremos a esse tema.

189 obtenção de um sentença condenatória em pecúnia404, condicionada à aferição dos pressupostos da “intentio” (logo, um direito processual “sub conditione”).

Na construção recente, esse “direito processual de obtenção de uma sentença condenatória” ascende um degrau na escala de abstração, descobrindo-se como um “direito processual de obtenção de sentença”, i.e., como um direito ao provimento jurisdicional, seja ele qual for (que, como tal, passa a ser também uma garantia do próprio réu405).

V. Nessa altura, as elucubrações propendem para outro viés de polêmica, bem mais

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