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Conduzido o réu pelo autor à presença do magistrado judicial competente, tinha início a instância “in iure”, nas quais as partes recitavam as fórmulas solenes e faziam

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

III. Conduzido o réu pelo autor à presença do magistrado judicial competente, tinha início a instância “in iure”, nas quais as partes recitavam as fórmulas solenes e faziam

gestos rituais característicos de cada uma das ações da lei. Por isso, aliás, eram ditas “legis actiones”: porque tinham necessária previsão na lei e não se procediam sem o pronunciamento das palavras solenes legalmente ditadas (“verba certa”).

Àquele tempo, segundo GAIO, eram basicamente cinco as “legis actiones”: a “actio sacramenti” 358, a “iudicius postulatio” 359, a “condictio” 360, a “manus iniectio” 361

357 Idem, p.65. 358

A “actio sacramenti” era uma “actio generalis”, que podia ser utilizada todas as vezes que a lei não estatuísse uma ação especial para o caso. Seu nome devia-se ao fato de que, se o litigante não demonstrasse, na fase “apud iudicem”, o direito afirmado perante o magistrado (instância “iu iure”), pagaria ao Estado uma sanção ― o “sacramentum” ― que variava de 50 a 500 asses, conforme o valor do objeto da lide. Desse rito, dá importante notíca o jurisconsulto GAIO (Institutas, IV, 16), em eloquente demonstração do que era o ritualismo das “legis actiones” (quase como uma encenação teatral): reivinciando um escravo em poder do réu, o autor, na presença do magistrado judicial, trazendo consigo uma varinha (“festuca”, “uindicta”), segurava o escravo e pronunciava a fórmula: “Hunc ego hominem ex iure quiritium meum esse aio secundum

suam causam. Sicut dixi, ecce tibi uindictam imposui” (“Eu digo que este homem é meu, conforme o direito

quitirário, segundo a sua condição. Assim como disse, vê, coloquei sobre ele a varinha”); o réu, se quisesse resistir à pretensão, faria os mesmos gestos e recitaria a mesma fórmula; o magistrado, então, dizia: “Mittite

ambo hominem” (“Largem ambos o homem”), fazendo cessar, simbolicamente, a luta entre as partes

litigantes; na sequência, o autor perguntava ao réu: “Postulo anne dicas qua ex causa uindicaueris” (“Peço que digas a que título vindicaste”); e o réu respondia: “Ius feci sicut uindictam imposui” (“Exerci o direito, colocando a varinha”.); por fim, dizia o autor: “Quando tu iniuria uindicauisti, D aeris sacramento te

provoco” (“Porque vindicaste sem direito, provoco-te a um sacramentum de quinhentos asses”); ao que

respondia o réu: “Et ego te” (“E eu a ti”). Em seguida, ou no prazo de trinta dias (lex Pinaria), nomeava-se o

“iudex” e passava-se à instância “apud iudicem”.

359 A “iudicis postulatio” era uma ação especial utilizada, segundo a Lei das XII Tábuas, para a divisão de

herança (“actio familiae erciscundae”) e para a cobrança de créditos decorrentes da “sponsio” (fiança), como também, a partir da lex Licinia, para a divisão de bens comuns (“actio communi dividundo”), e não

173 e a “pignoris capio” 362 (a única que, aparentemente, não se submetia ao procedimento geral da “ordo iudiciorum privatorum”, pois não se desenvolvia perante o magistrado judicial, i.e., não havia a fase “in iure”). As três primeiras eram declaratórias “lato sensu” (ações de conhecimento), enquanto as duas últimas eram executórias. Para alguns jurisconsultos romanos, a “actio per pignoris capionem” sequer seria uma das “legis actiones”, por lhe faltar a instância “in iure”; aqui, porém, seguimos GAIO, que a incluía entre as “legis actiones” devido à sua previsão legal e às “certa verba” (Institutas, IV, 29). Percebe-se, de todo modo, que não havia a compreensão da ação como direito abstrato (o

estabelecia qualquer sanção para o litigante que não demonstrasse o seu direito “apud iudicem”. Sabe-se, outrossim, que o “iudex”, na “iudicis postulatio”, sempre foi imediatamente nomeado pelo magistrado, sem se atender ao prazo da lex Pinaria.

360 A “condictio” era “actio generalis” de procedimento mais simples e célere que o da “actio sacramenti”.

Foi introduzida pela lex Silia para a cobrança de dívidas certas em dinheiro (“certa pecunia”), mas depois foi estendida para os casos de prestações de coisa certa que não dinheiro (lex Calpunia) e passou a tutelar todos os créditos antes reclamados pela “actio sacramenti in personam” e pela própria “iudicis postulatio”. Primitivamente, “condicere” significava “denuntiare” (denunciar, citar).

361 Da “manus iniectio” na época da Lei das XII Tábuas, já cogitamos, supra, no tópico 7.3.1, n. II.

Posteriormente ao período da lei decênvira, segundo MOREIRA ALVES, duas tendências se observaram: (a) aumento significativo dos casos em que a “actio per manus iniectionem” se aplicava; (b) o abrandamento de seus efeitos. Assim é que a “manus iniectio” passou a ser classificada em “manus iniectio iudicati” ― para os dois casos da Lei das XII Tábuas, de réu confesso “in iure” ou condenado ao pagamento pelo “iudex” ― e em “manus iniectio pro iudicato” (i.e., como se houvesse “sido julgado”, ou com ficção de julgamento) ― para as hipóteses legais posteriores à Lei das XII Tábuas, nas quais se prescindia de julgamento ou “confessio

in iure” (assemelhando-se ao que, hoje, seriam as ações executivas de títulos extrajudiciais). Desafiava a “manus iniectio pro iudicato”, p. ex., o crédito do fiador (“sponsor”) que houvesse pago a dívida e não fosse

reembolsado dentro de seis meses pelo devedor principal (lex Publilia); ou, havendo vários fiadores, o direito de qualquer deles perante o credor, se houvesse sido cobrado por mais do que a parte a que estava obrigado (lex Furia de sponsu ― nome, diga-se, bem apropriado à espécie). Adiante, a partir da lex Marcia, introduziu- se a “manus iniectio pura”, que não admitia a ficção de julgamento (“pro iudicato”), mas também prescindia de julgamento ou “confessio in iure” anterior, desde que o autor declarasse os fundamentos do direito pleiteado (e.g., recuperação de juros usurários). Na “manus iniectio pura”, o réu já não precisava necessariamente se fazer substituir por um “uindex” (supra, nota n. 326), podendo defender-se

pessoalmente. Com a lex Vallia, do início do século II a.C., todas as “manus iniectiones” tornaram-se “purae”, à exceção daquelas da lei decênvira (“confessus” e “iudicatus”) e daquela da lex Publilia (supra).

Enfim, “já nos fins da república, quando o réu não pagava o débito nem se defendia, o autor que contra ele

intentara a manus iniectio não podia mais matá-lo ou vendê-lo como escravo, mas apenas conduzi-lo para sua casa, onde o réu, com seu trabalho, pagaria a dívida” (Moreira Alves, Direito Romano, v. I, pp.252-

253). Para alguns autores, a “manus iniectio” foi a mais antiga das “legis actiones”; e, na origem, teria sido o

único meio de proteção judicial do direito subjetivo, passando depois a mera ação executória (Paul-Louis

Huvelin, Cours Élémentaire de Droit Roman, Paris, Sirey, 1927, v. I, pp.135-137).

362 A “pignoris capio” era ação de tipicidade fechada, servindo à execução de créditos muito específicos,

como o do soldado contra o “tribunus aerarii” pelo seu “stipendium” (soldo), o do soldado da cavalaria contra as pessoas obrigadas a contribuir para a compra e a manutenção do cavalo, o do vendedor de animal destinado a sacrifício religioso contra o comprador pelo seu “pretium” e o do publicado contra o contribuinte pelo “uetigal” (imposto). As duas primeiras hipóteses foram introduzidas pelo costume; as demais, pela lei. A

“pignoris capio” dispensava a presença do adversário e, pronunciadas as palavras solenes (que não se

conhecem mais), permitia ao autor tomar em penhor bens do devedor, dos quais não podia utilizar-se, pois a finalidade era tão-só instar o réu ao pagamento.

174 que, de resto, é uma conquista contemporânea, tributada a PLÓSZ e DEGENKOLB, entre 1877 e 1880363); as ações atendiam a um princípio de estrita legalidade ― ou, dir-se-á melhor, de tipicidade (às vezes mais aberta, como no caso da “actio sacramenti” e da “condictio” ― e eram corolário lógico-jurídico do próprio direito material pretendido. Ter direito significava ter “actio”, e vice-versa364.

Perante o magistrado, uma vez recitada a fórmula solene e realizados os gestos rituais próprios de cada ação-tipo, o réu deveria defender-se, também solenemente (vide, supra, a nota n. 357). Se, porém, confessasse as afirmações do autor (“confessio in iure”) ou não se defendesse adequadamente, o procedimento civil encerrava-se imediatamente, sem a fase “apud iudicem”, mas com consequências diversas conforme se tratasse de uma “actio in personam” ou de uma “actio in rem”. Nessa, a coisa era imediatamente adjudicada ao autor pelo magistrado; naquela, caso o réu se negasse a cumprir a obrigação

363

Cf., por ambos, Heinrich Degenkolb, Einlassungszwang..., passim; ainda, do mesmo autor, Das

Anerkenntnissurteil, Leipzig, Alexander Edelmann (Universitätsbuchdrucker), 1902, passim.

364 MOREIRA ALVES distingue, entre as cinco “legis actiones” de GAIO, aquelas que seriam concretas ―

como a “iudicis postulatio” ― das que seriam abstratas ― como a “actio sacramenti” e a “condictio” ―, baseando-se em que, naquelas, o autor devia indicar o fundamento (“causa”) do direito pleiteado, à diferença dessas últimas. Ao fazê-lo, evidentemente, o romanista brasileiro não emprega o binômio adjetivo “concreto”

vs. “abstrato” da maneira como fez a processualística contemporânea, sobretudo na emblemática disputa

entre abstratistas e concretistas, de que saiu vitoriosa a ideia do direito de ação como um direito abstrato de

agir, o que significa “ser desligado do direito subjetivo material, prescindindo-se da existência deste quando se trata de conceituar a ação ― ou seja, abstraindo-se dele. A ação, nessa teoria, existiria ainda quando o direito inexistisse e independentemente de qualquer condicionamento (condições da ação)” (Dinamarco, Instituições…, v. II, p.319). Mais tarde, a teoria abstrata foi retificada por LIEBMAN (1948), para enfatizar o

papel das condições da ação (Enrico Tullio Liebman, Manual de Direito Processual Civil, trad. Cândido Rangel Dinamarco, 2ª ed., Rio da Janeiro, Forense, 1985, v. I, pp.148-162). Ora, conceitos como esse não se reconhecem, sequer por aproximação, na processualística romana; assim, ainda que se possa dizer da “actio

sacramenti” ser uma ação “abstrata” ― porque os fundamentos do direito pleiteado não precisavam ser desde

logo indicados ―, ela não pode ser abstrata na acepção de DEGENKOLB, PLÓSZ e LIEBMAN, porque, em tal acepção, sequer faz sentido distinguir entre ações concretas e abstratas: o direito de ação ou será abstrato em todo caso, ou jamais o será. Nesse sentido, o próprio LIEBMAN: “Aos juristas romanos era desconhecido

o conceito de direito subjetivo, tal como foi elaborado em tempos muito mais recentes, pois eles conheciam apenas a actio, que era o meio jurídico para cada um pedir a satisfação de suas pretensões. Para dizer que a Tício tocava um direito, diziam que lhe tocava a actio. Toda a evolução do direito clássico fez-se através da ampliação e enriquecimento das figuras das ações. […] O sistema jurídico dos romanos era concedibo e se desenvolveu em função do processo e dos meios que este oferecia para a tutela dos interesses dos vários sujeitos. […] Hoje vemos as coisas de maneira diferente, porque na sociedade moderna a situação se mostra invertida: as relações entre pessoas apresentam-se na forma de direitos e obrigações de uns perante outros e o processo é apenas o conjunto de meios destinados à proteção dos direitos” (Manual…, p.148). Daí porque,

prevenindo confusões, preferimos denominar tanto a “actio sacrementi” quanto a “condictio” como ações de

tipicidade aberta, na medida em que variegadas pretensões jurídicas poderiam ser formalizadas por meio

175 (apesar da confissão ou da defesa imprópria), restava ao autor obrigá-lo a fazer ou pagar, lançando mão da “actio per manus iniectionem” (supra).

Do contrário, defendendo-se adequadamente o réu, os litigantes deviam solicitar ao magistrado a nomeação do juiz popular (“iudex”), o que geralmente era feito após trinta dias (lex Pinaria), quando as partes voltavam à presença do magistrado judicial, tomavam os assistentes da audiência como testemunhas da instauração do contraditório, bem como do estado e dos limites da lide365, e, assim, celebravam o ato solene denominado “litis contestatio”366, que definia as bases do litígio, com presumível função de garantia (quiçá prevenindo excessos teratológicos de julgamento ― o que, porém, configurou-se bem somente no período formulário, em virtude da própria “formula” reduzida a termo escrito).

A propósito, o réu tinha de se comprometer a voltar à audiência pública no prazo fixado pelo magistrado para a nomeação do “iudex”. Para assegurar esse comparecimento, podia fornecer fiadores (“vades”). Houve também o “vadimonium”, meio muito utilizado nos primeiros tempos, com o mesmo escopo. O “vadimonium” era um valor em dinheiro que o réu desembolsava e acautelava na devida forma, prevenindo inclusive outras ações diretas do autor (a exemplo daquela possível na “in ius uocatio”); se acaso não retornasse no dia aprazado, tal valor era perdido em favor da contraparte367. Assemelhava-se, pois, às atuais fianças do processo penal, e também foi empregado no processo penal romano368.

IV. Com a nomeação do “iudex” e a celebração da “litiscontestatio”, os litigantes

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