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A ideologia liberal incutiu nas convicções do jurista moderno a ideia de que, no plano psicológico, a atividade jurisdicional resume-se a uma atitude cognitiva-objetivante,

§ 5º PRESSUPOSTOS DE INVESTIGAÇÃO

E, por derradeiro, a inclusividade relaciona-se tanto com a abertura do sistema objetivo, como também com a sua mobilidade (no sentido de WILBURG) Trata-se de um

I. A ideologia liberal incutiu nas convicções do jurista moderno a ideia de que, no plano psicológico, a atividade jurisdicional resume-se a uma atitude cognitiva-objetivante,

que reconhece os fatos como são ― ou como podem ser provados ― e os relaciona às normas jurídicas correspondentes, numa operação lógico-cartesiana de identificação de semelhantes conhecida como “subsunção”. Grosso modo, essa operação pouco diferiria daquela realizada por crianças que aprendem a recusar previamente o encaixe de figuras quadriláteras em espaços circulares. Mesmo hoje em dia, encontram-se nichos onde ainda vicejam tais convicções ― inclusive nos quadros judiciários. A isso, OVÍDIO BAPTISTA

212 António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, “Introdução à edição portuguesa”, in Pensamento…,

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designou como “geometrização do Direito”, fenômeno cultural intrínseco ao processo de feitio liberal; e, nessa ensancha, arremata:

“A suposição de que a jurisdição seja apenas

declaratória de direitos [do latim iuris + dictio, i.e.,

“dizer o Direito”] é uma das conseqüências dessa mesma “geometrização” aplicada ao direito. A “matemática jurídica” está tão profundamente arraigada em nosso pensamento que, ao depararmo-nos com uma sentença proferida em causa de que tenhamos sido parte, diremos com a maior tranquilidade, como Locke dissera nesse parágrafo213, que o julgador “errara”, ao julgar contra nós; ou que ele “acertara” ― como erramos e acertamos qualquer problema matemático ―, quando nos der ganho de causa. […] O conceitualismo que sustenta o pensamento dogmático na ciência processual alimenta-se dessas vertentes doutrinárias. É ele a grande barreira

oposta à criação jurisprudencial do Direito,

conseqüentemente à Hermenêutica”214.

Deve-se ter por adquirido, porém, que os mecanismos de intelecção jurídica ― e, nesse universo, o próprio processo legal-formal ― não funcionam assim, nem jamais funcionaram. A decisão judicial é, antes de mais, um ato de vontade comunicativa. E o juiz, como toda pessoa humana, é um “homo socialis”. Não é, simplesmente, “la bouche qui prononce les paroles de la loi” (MONTESQUIEU215). Vive em sociedade e absorve os seus padrões culturais, os seus valores, os seus objetivos e até mesmo os seus preconceitos, que vão necessariamente informar o seu modo de ver o mundo, amiúde refletido nas sentenças que prolata.

213 O autor refere-se aos “Ensaios” de JOHN LOCKE, no qual o racionalista inglês declara-se “inclinado a

pensar que a moral é capaz de demonstração, tanto quanto as matemáticas”, e entrevê evidência euclidiana

em aforismos como “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite liberdade

absoluta” (aforismos “certos” ou “verdadeiros”). Cf. John Locke, Ensaio acerca do entendimento humano,

trad. Anoar Aiex, in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, v. XVIII, pp.139-350 (especialmente livro IV, capítulo III, § 18, e livro III, capítulo XI, § 16: a moral pode ser matematicamente aferida, porque“a

essência real e exata das coisas que as palavras morais significam pode ser perfeitamente conhecida, e assim a congruência e incongruência das próprias coisas serem descobertas certamente, é isto no que consiste o perfeito conhecimento” [p.268]).

214 Ovídio Baptista, Processo e Ideologia, p.84 (g.n.).

215 Montesquieu, De l’esprit des lois, L. XI, Cap. VI. In Les classiques des sciences sociales, Saguenay,

Université du Québec, 2010 (disponível em http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/ de_esprit-

_des_lois/de_esprit_des_lois_tdm.html#Anchor-23543 ― acesso em 30.01.2011). Todas as referências e

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II. Diz-se haver, no “decisum”, um ato de vontade, exatamente porque o processo de aplicação do Direito ao caso concreto não se desenvolve “more geometrico”, como supunham os liberais. A dicção da “vontade concreta da lei” ― para utilizar a clássica expressão de CHIOVENDA216 ― depende, em grande medida, da vontade subjetiva do magistrado. Isso é tão verdadeiro que, por vezes, a vontade incontida resulta em julgados tendenciosos (como, e.g., na rumorosa sentença do juiz de Patos de Minas, no Estado brasileiro de Minas Gerais, que, sob argumentos inconfessáveis ― porém confessados ―, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha217), ou mesmo em manifestos abusos (como, p.ex., no episódio da denúncia-crime recebida às vésperas das eleições municipais em São Paulo, após meses de espera, em detrimento de um dos candidatos daquele pleito ― de que, inclusive, deu-nos conta o notável DALMO DE ABREU DALLARI, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em saborosa narrativa218).

216 Cf. Giuseppe Chiovenda, Principios de Derecho Procesal Civil, trad. Jose Casais y Santaló, Madrid,

Reus, 2000, t. I, pp. 367 e ss. e, notadamente, pp.374-375: “Así puede entenderse la diferente función que

tiene el juicio lógico respecto de las dos actividades [administração e jurisdição]. También la administración juzga porque no se obra sino basándose en un juicio, pero juzga sobre la actividad propia, mientras que la

jurisdicción juzga de la actividade ajena y de una voluntad de ley concierniente a otros; sólo en este

sentido puede decirse con Scialoja que en el acto jurisdiccional predomina “el momento del juicio”, lo cual en nada merma la verdad y la importancia de la fundamental observación hecha antes […], o sea que la

sentencia es esencialmente formulación de la voluntad del Estado respecto de lo cual el razonamiento

tiene oficio meramente preparatorio” (g.n.).

217 A Lei brasileira n. 11.340, de 07.08.2006 (a Lei Maria da Penha), “cria mecanismos para coibir a

violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. Seu propósito político-legislativo foi prevenir e

tratar com maior severidade os casos de violência doméstica e familiar contra pessoas do sexo feminino; e, por isso mesmo, recebeu do meio forense e juscientífico a designação “Lei Maria da Penha”, em homenagem à vítima real de um caso concreto de espancamento marital que carreou à esposa sequelas físicas irreversíveis. A lei foi festejada em todos os círculos jurídicos do país, sobretudo por se acreditar que havia de fato uma situação de excessiva vulnerabilidade das mulheres em suas relações conjugais e familiares, especialmente nos lares mais modestos. Nada obstante, no Processo n. 222.942-8/2006 da 1ª Vara Criminal e Juizado da Infância e da Juventude da Comarca de Sete Lagoas/MG, o juiz oficiante declarou-a inconstitucional e recusou-lhe aplicação, mais pela sua visão de mundo ― e por um seu ato de vontade ― do que por razões técnico-jurídicas inteligíveis; argumentou, por exemplo, que “o mundo é e deve continuar sendo masculino

ou de prevalência masculina”, ou que“[a] vingar esse conjunto de regras diabólicas [da Lei n. 11.340/2006], a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado”). V. nota n. 1839.

218 Cf. Dalmo de Abreu Dallari, O Poder dos Juízes, São Paulo, Saraiva, 1996, pp.86-87. In verbis: “Alguns

juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores não conseguem esconder sua preferência eleitoral e, às vezes, deixam entrever essa preferência até mesmo em decisões judiciais. Assim aconteceu em São Paulo no ano de 1991. O Procurador-Geral da Justiça apresentou denúncia contra a prefeita municipal,

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Daí porque entendemos, com KAUFMANN, que o juiz não é um autômato da lei, nem tampouco um “ser destituído de vontade” (como dissera o próprio MONTESQUIEU); ao contrário, atribui-se-lhe hoje, em qualquer escola de pensamento, ao menos uma “tarefa criativa”, que é a de preenchimento de lacunas219 ― e, é claro, o ato de criar pressupõe inexoravelmente a vontade de criar. Para mais, reconhece-se que o problema fundamental da interpretação e da aplicação do Direito radica na escolha do método, mais até do que na identificação das normas aplicáveis ou na interpretação dos fatos; e, àquele respeito, os tribunais tendem a agir de modo arbitrário220, o que denota, outra vez, o móbil elementar recolhido no imo de toda decisão judicial (até mesmo por ser, necessariamente, o móbil elementar de toda escolha humana): a vontade subjetiva. Aliás, conferir gradientes de racionalidade e/ou razoabilidade a essa escolha, há pouco dita “arbitrária” (a expressão é de KAUFMANN), é decerto um dos propósitos desta Tese (supra, §1º, tópico 1.3).

Em suma, se o ato da decisão judicial é um ato de criação, sempre preordenado por um processo intelectivo de escolha (do método), não é possível negar-lhe, na essência formadora, o dado volitivo, que certamente se externaliza como vontade objetivante ― a do Estado-juiz (ou da “vontade concreta da lei”) ―, mas que, antes disso, concebe-se, desenvolve-se e descobre-se inevitavelmente como vontade subjetiva da pessoa concreta que sempre habita sob a toga.

em março desse ano, alegando a prática de ato que configuraria ilícito penal. O processo foi distribuído a um desembargador, que durante meses não proferiu o despacho que lhe competia. O que lhe cabia fazer era rejeitar desde logo a denúncia por falta de fundamento legal ou, ao contrário disso, encaminhar o processo ao colegiado competente, propondo a aceitação da denúncia. Mas o desembargador em questão não fez uma coisa nem outra, preferindo guardar o processo em sua gaveta para usá-lo em ocasião oportuna. […] Alguns meses depois, às vésperas das eleições para escolha do sucessor da prefeita, o desembargador proferiu despacho, exorbitando de suas competências e acolhendo a denúncia, o que só poderia ter sido feito pelo colegiado. Além de acolher a denúncia irregularmente, aquele desembargador, que pouco depois seria eleito presidente do Tribunal de Justiça do Estado, imediatamente distribuiu cópia de seu despacho a um dos candidatos à Prefeitura, o qual, como era previsível, utilizou-o amplamente em sua propaganda eleitoral. Isso todo enquando, conforme registro informatizado, os autos do processo se encontravam em mãos do desembargador, só tendo ocorrido a devolução ao cartório depois daquela utilização político-eleitoral. […] Tempos depois, quando aquele desembargador já era presidente do Tribunal de Justiça e o então candidato era o Prefeito de São Paulo, este prestou estranhíssima homenagem, dando o nome de “Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo” a uma passagem subterrânea aberta sob uma avenida, localizada quase dez quilômetros longe do edifício do Tribunal. […] Não se tratava de uma data especial na história do Tribunal nem havia ocorrido qualquer fato novo e significativo que justificasse a homenagem, a não ser a gratidão do Prefeito Municipal pelo favor eleitoral recebido”.

219 Cf. Arthur Kaufmann, Filosofia do Direito, trad. António Ulisses Cortês, Lisboa, Calouste Gulbenkian,

2004, p.83.

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Na realidade, a percepção secular do juiz como “la bouche de la loi” tem sido especialmente atraente para o magistrado que não está confortável com suas próprias convicções morais, políticas ou ideológicas. Em tais casos, a toga serve de anteparo isolador, que permite à pessoa concreta esgueirar-se de qualquer responsabilidade “moral” pela sua decisão: afinal, não se trata da “sua” vontade, mas da vontade objetiva do Estado ou da lei. Essa, porém, é uma premissa perfeitamente falsa. Volvendo àquela dicotomia primacial entre justiça material e segurança jurídica (tópico 1.1), deve-se compreender que as garantias de uma jurisdição justa não estão atreladas à impessoalidade ou à neutralidade político-ideológica do juiz, mas, bem ao contrário, à sua sensibilidade pessoal ― que, ver- se-á adiante, pode ser designada como “sentimento de direito” (KAUFMANN221) ― e à sua capacidade criativa para extrair do sistema a solução que lhe parecer mais justa. Da mesma forma, a segurança jurídica não se obtém com a automatização dos juízos, mas com o reconhecimento dogmático dos limites do sistema (supra, tópico 5.1), a serem esclarecidos e estabilizados de modo racional e discursivo, sem prejuízo da mobilidade e da abertura sistêmicas. A função objetivante da norma jurídica ― que, por definição, é geral e abstrata222 ― participa desse processo de reconhecimento, à mercê da própria separação

221 A expressão original, “Rechtsgefühl”, é também utilizada por diversos outros autores de língua alemã,

como LAMPE (v. Das sogennante Rechtsgefühl: Jahrbuhr für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, Ernst- Joachim Lampe [Hrsg.], Opladen, Westdeutscher, 1985, passim), RÜMELIN (“Über das Rechtsgefühl”, in

Kanzlerreden: Kanzler der Universität Tübingen 1870-1889, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1907, passim), BIHLER (Rechtsgefühl, System und Wertung: Ein Betrag zur Psychologie der Rechtsgewinnung,

München, Beck, 1979 passim) e OBERMAYER (“Über das Rechtsgefühl”, in Juristenzeitung, Tübingen, Mohr Siebeck, 1986, n. 41, pp.01-04). Na tradução portuguesa, ANTÓNIO ULISSES CORTEZ preferiu a locução “sentimento do direito” ou, subsidiariamente, “sentimento jurídico” (cf. A. KAUFMANN, Filosofia

do Direito, p.95 e nota n. 26). Preferimos, porém, traduzi-la como “sentimento de direito”, prevenindo-se

maniqueísmos (“o” direito inspira um sentido de certeza, sugerindo incorreção para todas as demais soluções; já a não articulação, no que indefine, permite reconhecer legitimidade a variegados “sentimentos de direito”, que tendem a variar entre julgadores diversos). E, para mais, acompanha-se a estrutura comum de outras locuções similares na língua portuguesa (assim, e.g., não se fala em “senso da justiça”, mas em “senso de justiça”; nem tampouco em “juízo da verossimilhança”, mas em “juízo de verossimilhança”).

222 Cf., por todos, José de Oliveira Ascensão, O Direito, 13ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, pp.239-244: “Mas

para o jurista norma é todo o dever ser genérico” (p.239); adiante: “Uma solução generalizadora é necessariamente uma solução normativa” (p.243). Nega, porém, o requisito da abstração, pelo fato de

existirem normas jurídicas que regulam exclusivamente fatos pretéritos, como no Direito das Sucessões (p.509). E, conquanto prefira a expressão “regra”, ASCENSÃO curva-se também à locução “norma

jurídica”, “solidamente assente na ciência jurídica portuguesa” ─ possivelmente por influência germânica

(“die Normen”) ─, mas as toma como sinônimos (p.239). De nossa parte, (a) entendemos que a abstração é também atributo da norma jurídica, já que mesmo nos casos de normas jurídicas retroativas remanesce algum grau de incerteza quanto à concreção futura dos seus efeitos (e isso não decorre da generalidade, porque a incerteza poderá se dar até mesmo na concreção de preceitos contratuais individualizados); e (b) apartamo-

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harmônica dos poderes da República (artigo 2º da CRFB; artigo 111º da CRP); mas está longe de exauri-lo. Nessa soleira, o magistrado pode ― e deve ― expressar-se como ser sociopolítico, sem renunciar às suas convicções pessoais e a todo o rico substrato cultural que configurou sua visão de mundo. Afinal, o seu “sentimento de direito” (“Rechtsgefühl”) ― mais além de quaisquer juízos lógicos de subsunção ― não pode provir de outra fonte, que não a sua própria visão de mundo. Nas palavras de KAUFMANN,

“Este modelo do juiz perfeitamente neutral e imparcial, completamente objectivo e impessoal está pura e simplesmente fora da realidade. Tem de se perguntar se este altamente estilizado juiz não terá, por uma vez que seja, um sentimento do direito. […] Ora, o facto de as pessoas terem normalmente um sentimento do direito é seguramente algo de muito positivo. Mas o juiz não deve ter nenhum, pelo menos, este não deve intervir na determinação da decisão. Já se fala da “despedida” do sentimento do direito. A suceder, ela seria pouco feliz. Na verdade, dificilmente se poderia falar, mesmo num uso generoso da palavra “racional”, de uma “racionalidade do sentimento jurídico”. Mas quem disse então que no processo de determinação do direito não deve influir nada de meta-racional, que ele ocorre apenas de forma reflectida e se presta contas disso? Winfried

Hassemer encontrou para isso uma expressão acertada:

temos que, diz ele, “ponderar racionalmente o

irracional””223.

III. Aliás, esse mesmo dado subjetivo-volitivo, indissociável de qualquer ato- decisão judicial, radica igualmente em todos os atos processuais postulativos (i.e., nos atos processuais destinados a provocar uma decisão do Estado-juiz, “através do exercício de influência psicológica sobre o juiz”224), com desdobramentos jurídicos dos mais relevantes. A percepção dessa realidade conduziu toda a série de desenvolvimentos sugeridos por PAULA COSTA E SILVA para a interpretação dos atos postulatórios em juízo, afastando, nessa parte, a tendência de autonomização do processo relativamente ao direito material (a ponto de ROSENBERG negar, outrora, a possibilidade mesma de um “negócio jurídico

nos daquela sinonímia terminológica para divisar, com ROBERT ALEXY, a distinção entre normas-regras e

normas-princípios (cf., infra, § 24º).

223 Arthur Kaufmann, Filosofia do Direito, p.95 (g.n.). A expressão de HASSEMER é extraída de Theorie und

Soziologie des Verbrechens, Frankfurt am Main, Athenäum, 1973, p.244.

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processual”, ante a irrelevância da vontade para o processo judicial225)226. Termina por concluir que “o acto processual da parte está submetido ao regime de interpretação do acto jurídico unilateral, negocial e formal, não havendo que construir qualquer regime especial de interpretação para aquele tipo de acto”; logo, “a haver uma irrelevância de uma intenção [= volição], esta depende estritamente da natureza formal do acto e não de uma integração desse acto no processo. Pelo menos no que respeita à interpretação, a vontade inerente à prática e conformação de um acto releva em processo nos exactos termos em que releva um acto que seja praticado fora dele” 227.

Ora, a ser assim ― e se “a vontade do autor do acto releva quando se procede à determinação do sentido da declaração processual postulativa” 228 ―, como não convir que, na resposta à provocação postulatória, o juiz ― conquanto investido em poderes públicos, sob o pálio da toga (assim como, ao cabo das contas, também o advogado postula investido em poderes privados, sob o pálio da beca) ― também exara um ato de vontade? Como se responde, logica e psicologicamente, a uma instância volitiva, senão com outra, no mesmo ou em diverso sentido? Não nos interessa, aqui, perquirir os efeitos jurídicos diretos dessa constatação, conquanto fosse esse um objeto de indubitável interesse científico (quiçá como desdobramento natural das investigações inauguradas por COSTA E SILVA)229. Mas, nos estritos limites desta Tese, interessa-nos tão só fixar aquela premissa

225 Leo Rosenberg, Die Stellvertretung im Prozeß: Auf der Grundlage und unter eingehender vergleichender

Darstellung der Stellvertretungslehre des bürgerlichen Rechts, nebst einer Geschichte der prozessualischen Stellvertretung, Berlin, Franz Vahlen, 1908, p.57.

226 Paula Costa e Silva, Acto e Processo…, p.33. 227

Idem, pp.450-451.

228 Idem, p.648.

229 Assim, p. ex., como tratar uma sentença que defira certa pretensão em seus fundamentos, mas no

dispositivo julgue improcedente o respectivo pedido? Trata-se da chamada “sentença suicida”, a que usualmente a doutrina associa o vício da nulidade; mas, se a incongruência deve-se a um erro material ― tão comum em tempos de copy and paste ―, não poderia ser simplesmente corrigida em sede de embargos de declaração (artigo 535 do CPC), ou quicá “ex officio” (artigo 463, I, do CPC), tal como se podem re-ratificar os negócios jurídicos privados (artigo 172 do NCC), mesmo em casos de erro, dolo ou coação (artigo 171, II, do NCC)? Da mesma forma, afastar o dogma da irrelevância da vontade na interpretação das sentenças poderia ter enorme utilidade na fase de liquidação, em que deferimentos sentenciais ambíguos geralmente engendram severas dificuldades na aferição do “quantum debeatur”, por conta da impossibilidade legal de se rediscutir a lide ou modificar o conteúdo da sentença (artigo 475-G do CPC). Aplicar-se-iam, então, os princípios gerais de interpretação dos negócios jurídicos (artigos 110 a 114 do NCC; artigos 236º a 239º do Código Civil português); ou, em casos extremos, certificar-se-ia nos autos, por ato da autoridade prolatora, a “real intenção” ínsita a determinada passagem da sentença, evitando-se desdobramentos intermináveis em torno de algo que pode ser facilmente esclarecido pelo autor do comando original…

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― a do ato-decisão como indelével ato de vontade ― e torná-la pressuposto de investigação, para que, adiante, não se pretenda objetar os progressos deste estudo com a suposta “neutralidade” do juiz-pessoa. Em sede de ciências sociais (e em especial na Ciência do Direito), se se requestam métodos, é mister perquirir fins. Longe desse padrão, raramente se obtém justiça material, mesmo na perspectiva do sistema processual ― que, por isso mesmo, deve ser examinado em perspectiva dúplice, “a partir de seus ângulos externos (seus escopos), sem prejuízo da introspecção do sistema”230.

IV. De outra parte, admitir o conteúdo subjetivo-volitivo do ato-decisão judicial não

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