• Nenhum resultado encontrado

A Ciência do Direito é, a bem dizer, uma ciência da compreensão Significa que, para além do entendimento das expressões linguísticas (que povoam as leis, as decisões

§ 2º AS TESES: ENCAMINHAMENTOS E CONSECTÁRIOS

I. A Ciência do Direito é, a bem dizer, uma ciência da compreensão Significa que, para além do entendimento das expressões linguísticas (que povoam as leis, as decisões

judiciais, os atos administrativos e os contratos), é mister perquirir-lhes o sentido normativo124. Isso pressupõe a mediação do intérprete/aplicador125, cuja percepção ― sensorial (para a linguagem e para os fatos) e cultural (para os valores) ― faz a ponte entre a norma e a decisão126.

Consequentemente, à diferença das “ciências explicativas” (como são a Física e a Biologia), a condição fundamental da Jurisprudência (“Jurisprudenz” ― entenda-se, neste contexto, como Ciência do Direito) é a de que não comporta, a rigor, a poralidade sujeito- objeto (própria das chamadas “ciências naturais” ― e sequer aí absoluta127). O intérprete/aplicador, ao “compreender”, instaura ou restaura vínculos valorativos e psíquicos com o próprio objeto compreendido (binômio fato-norma); nalguma medida, confunde-se com ele, ou passa a pertencer-lhe128.

124 Karl Larenz, Metodologia…, p.282.

125 Acompanhamos, nesse particular, a nomenclatura bivalente eleita por MENEZES CORDEIRO

(“Introdução à edição portuguesa”, in Pensamento…, passim) e outros tantos autores, diante da incindibilidade pragmática dessas operações intelectuais.

126

LARENZ ― idem, ibidem ― limita-se à “percepção sensorial” (dos fonemas ou dos signos escritos). Expandimos a ideia para albergar, outra vez, a teoria tridimensional do Direito (supra, nota n. 75).

127 Daí a fenomenologia husserliana e suas variações. Cf. Edmund Husserl, Investigações Lógicas: Sexta

Investigação (Elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento), trad. Zeljko Loparié, Andréa

Maria Altino de Campos Loparié, in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1975, v. XLI, p.187: “[o]s

conteúdos sentidos (vividos) de cor, de forma, etc., que experimentamos em incessante mudança, ao intuirmos o quadro de Böcklin “Campos Elíseos”, e que, animados pelo caráter de ato da afiguração, articulam-se numa consciência de objeto-quadro, são os componentes genuínos dessa consciência. E aí eles não existem

apenas fenomenal e intencionalmente (como conteúdos que aparecem e são meramente presumidos), mas existem efetivamente. Naturalmente, é preciso não esquecer que existir efetivamente não significa existir

fora da consciência, mas antes não ser apenas presumido” (g.n.). Para HUSSERL, todo objeto

científico ou pré-científico  é necessariamente um dado da consciência. Mas o filófoso judeu-austríaco jamais negou às coisas uma existência material real (que todavia deve ser, na sua famosa expressão, “posta

entre parênteses”); ao cabo das contas, o que a fenomenologia propõe é a análise da consciência para a

clarificação das formas fundamentais da objetividade (porque são correlatos intencionais e inevitáveis da própria consciência). Na abordagem fenomenológica, o objeto deixa de ser algo simplesmente “externo”, fonte de indicações sobre o que realmente é (pela via dos sentidos humanos), e torna-se um complexo de aspectos perceptivos e funcionais que implicam um ao outro, configurando um “tipo” objetivo. Nesse sentido é que sujeito e objeto estão inexoravelmente amalgamados na plano epistemológico.

128 Hans-Georg Gadamer, Verdad y método, trad. Ana Agud Aparicio, Rafael de Agapito, 8ª ed., Salamanca,

70

II. Ademais, mesmo como ciência compreensiva, a Ciência do Direito destaca-se das demais pelo seu peculiar processo de compreensão (ou, dir-se-ia, pelo seu método). No dizer de LARENZ,

“O processo do compreender tem o seu curso […] não apenas em uma direcção, “linearmente”, como uma demonstração matemática ou uma cadeia lógica de conclusões, mas em passos alternados, que têm por

objectivo o esclarecimento recíproco de um mediante o outro (e, por este meio, uma abordagem com o

objectivo de uma ampla segurança). Este modo de pensamento, que é estranho às ciências “exatas” e que é descurado pela maioria dos lógicos, é na Jurisprudência de um grande alcance. Não só se manifesta a propósito da interpretação de textos, de acordo com a conexão de significado […] e da ratio legis ― que é pelo menos em parte indagada com a ajuda do texto ―, mas também no processo de aplicação da norma a uma dada situação fática […]. ENGISCH fala, neste contexto, de um “ir e vir de perspectiva” (entre o elemento de previsão da norma e a situação fáctica). E manifesta-se com especial nitidez, a propósito da concretização de pautas de valoração carecidas de preenchimento em relação a casos “típicos” e a grupos de casos. O pensamento “linear”, ao invés, afirma-se no “silogismo da determinação dos efeitos jurídicos” e na subsunção, sempre que esta seja suficiente”129.

Na contemporaneidade, quando convivem o multiculturalismo, a ética capitalista e as teorias da relatividade (nas ciências culturais como nas físicas), a subsunção formal raramente será suficiente. Antes, o processo de compreensão tende a se aprofundar, invadindo níveis paulatinamente mais profundos, ao mesmo tempo em que se autorresgata e recupera informações/valorações anteriores para prosseguir a sua dinâmica. Por isso, preferimos dizê-lo helicoide (ou espiralado); jamais ― ou raramente ― linear130.

129 Metodologia…, pp.287-288 (g.n.).

130 Em sentido semelhante, referindo-se ao “círculo ou espiral do pensamento”, cf., em Portugal, António

Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito civil, Coimbra, Almedina, 2001 (2ª reimpressão), p.36 (g.n.). Já quanto à linearidade, poder-se-ia supô-la em contextos de estrita legalidade, como no Direito Tributário e, notadamente, no Direito Penal. Se se define o homicídio como o ato de “matar alguém” (artigo 121 do CP), ou o furto como a conduta de “subtrair coisa alheia móvel para si ou para outrem” (artigo 155 do CP), haveria que saber, tão só, se alguém ceifou a vida de outro alguém (pessoa humana), ou se lhe subtraiu coisa móvel com ânimo de apoderamento definitivo; o movimento espiralado do processo de compreensão, a implicar retomadas confirmadoras de sentido, seria despiciendo. Na prática, porém, não é mais assim; a rigor, jamais foi. As teorias contemporâneas de imputação demonstram que, entre o fato e o tipo penal, há a necessária mediação de valores (pense-se no célebre exemplo do bosque de Zähringen, formulado por CLAUS ROXIN: a despeito da indiscutível subsunção típico-formal da conduta, não se poderia reputar homicida aquele que convence o tio a passear em bosque conhecido pelas tempestades elétricas, com a intenção de matá-lo, e acaba se beneficiando com o acaso; i.e., o tio acaba mesmo fulminado por um raio). O

71

É certo, enfim, que a compreensão da Ciência do Direito é essencialmente linguística. Refunda-se, pois, o papel visceral da argumentação jurídica como chave para um equacionamento definitivo da questão das inflexões do devido processo formal. E exsurge, noutra ponta, aquela relação vital do intérprete/aplicador com o texto normativo131, que deve ser mediada por uma nova ideia de racionalidade, apta a excluir a dicotomia “verdadeiro-falso”/“certo-errado” (supra, nota n. 123) e substituí-la pelo consenso do razoável, legitimado discursivamente132.

III. Com esse derradeiro aporte, revelador da centralidade da argumentação jurídica ― e, ver-se-á, jusfundamental ― nos sucessivos esforços dialógicos que hão de

sujeito não exerceu, sobre os fatos, qualquer dominabilidade ― e, para afirmá-lo, coube ao intérprete resgatar o conceito de dominabilidade e aplicá-lo ao caso concreto, reintepretando a norma sob nova perspectiva. Eis aí, subreptício ― justo onde se pensava existir linearidade ―, aquele processo compreensivo de traço

helicoide. O mesmo se aplica ao furto, na medida em que nem sempre será evidente a subsunção do objeto

material ao conceito de “coisa”. Prova disso deu-nos o Supremo Tribunal do Reich alemão que, no final do século XIX, teve de decidir se energia elétrica era “coisa” para efeitos penais (e, portanto, se o desvio de energia elétrica configurava ou não o delito de furto). Terminou por entender que, a despeito do

“descaramento” e da “improbidade” dos malfeitores, a energia não “poderia” se subsumir à ideia de “coisa”;

mas o “poder subsumir-se” (ou não) já havia encerrado, em si mesmo, uma série de juízos éticos, técnicos e

político-criminais que o desqualificaria como mero processo de subsunção formal. Sobre a hipótese de

Zähringen e a teoria da imputação objetiva no Direito Penal, veja-se Claus Roxin, Derecho Penal – parte

general, tomo I (Fundamentos. La estructura de la teoría del delito.), trad. Diego-Manuel Luzón Peña,

Miguel Díaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal (2ª ed. alemã), Madrid, Civitas, 1997, pp.345-346; ainda G. G. Feliciano, Teoria …, pp.112-122. Sobre a questão do furto de energia na Alemanha e a consequente necessidade de tipificação legislativa do crime de desvio de energia elétrica (em 1900), veja-se, na doutrina, Karl Engisch, Introdução…, pp.80-81; no campo legislativo, vejam-se o §248 do StGB e, no Brasil, o artigo 155, §3º, do CP. Em sentido contrário, ponderando que noventa por cento dos casos decididos em juízo sejam resolvidos por mera subsunção formal, cf., por todos, Ulrich Meyer-Cording, Kann der Jurist

heute noch Dogmatiker sein?, Tübingen, Mohr, 1973, p.39. Veja-se, porém, que MEYER-CORDING teve em

conta a realidade judiciária dos anos sessenta; se já àquela época a afirmação soava como meramente especulativa, tanto menos hoje em dia poder-se-á tomá-la por veraz.

131 H. Gadamer, op.cit., pp.403 e ss.; Ovídio Baptista, Processo e Ideologia, p.271.

132 V., e.g., Aulis Aarnio, Lo racional como razonable: Un tratado sobre la justificación jurídica, trad.

Ernesto Garzón Valdéz, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp.286-287, e Denkweise der

Rechtswissenschaft: Einführung in die Theorie der rechtswissenschaftlichen Forschung (Forschungen aus Staat und Recht), Wien/New York, Springer, 1979, passim. Essa legitimação, porém, pressupõe garantias metodológicas claras; daí que, na prática judicial como na dogmática, “[e]l juez obtiene información acerca del orden jurídico de la misma manera que el dogmático jurídico y algo que es importante la interpretación adoptada por el juez es, en principio, confiable en el mismo grado y en el mismo sentido que la expuesta por el científico”: na medida de sua sistematização, de sua coerência, de sua controlabilidade, de

sua intersubjetividade, de sua objetividade e da consideração dos respectivos fatores de incerteza, exatidão e

pertinência (Lo racional…, pp.49-50  reportando-se às lições de ILKKA PATOLUOTO). Por isso, decisões judiciais “intuitivas” (supra, tópico 1.1), despregadas de um sentido discursivo coletivamente construído  assimilável, justificável e sobretudo controlável , perdem legitimidade democrática. Daí, a propósito, a razão de ser do presente estudo. Veja-se, ademais, Ovídio Baptista (Processo e ideologia, p.271), que faz longa transcrição da obra de AARNIO, incorporando-a, nessa parte, à sua própria.

72

seguir, parece-nos suficiente, a esta altura, o cipoal de informações já amealhadas, à guisa de introdução, para o efeito de sinalizar, em primeiro esboço, as proposições das teses que se pretendem confirmar.

O objetivo final deste estudo está em construir ― ou, ao menos, em contribuir para a construção (de) ― um modelo racional de decisão, de tipo permeável e inclusivo, que permita explicar, intrassistematicamente, as inflexões mais sintomáticas do devido processo formal hodierno.

Assim resumido, o escopo colimado já administra, “de per se”, algumas pistas fundamentais para as nossas proposições primígenas (que, não obstante, sofrerão melhoramentos e reformulações no curso dos trabalhos, sem prejuízo de sua demonstração final). Completam-nas as informações e todas as tomadas de posição antecipadas, por necessário, neste introito. Dá-se-nos, por fim, o seguinte plexo de partida:

α.

A cláusula do devido processo legal formal ou procedimental (“procedural due process of law”) é dotada de fundamentalidade ontológico-material133 em todos os Estados Democráticos de Direito, ainda quando não a contemplem os textos literais das constituições modernas;

β.

A cláusula do devido processo legal formal ou procedimental possui um núcleo essencial irredutível134, ligado ao exercício útil dos direitos constitucionais de ação e de defesa;

133 Para a ideia de “fundamentalidade material”, cf., por todos, Robert Alexy, Theorie..., pp.473-475.

Tornaremos ao tema (infra).

134 A ideia de “núcleo essencial” irredutível radica na teoria constitucional alemã, “ex vi” do artigo 19, 2, GG:

“In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem Wesensgehalt angetastet werden” (“Em nenhum caso a essência de um direito fundamental poderá ser transpassada”). Veja-se, e.g., Robert Alexy, Theorie...,

pp.267-272 (sobre a denominada “garantia de conteúdo essencial” e seu caráter absoluto ou relativo). O mesmo se dá no constitucionalismo espanhol, ut artigo 53, 1, da Constitución; confira-se, a propósito, Luis Prieto Sanchís, Justicia constitucional y derechos fundamentales, Madrid, Trotta, 2003, pp.230-237. Outras constituições ― como é o caso da brasileira e da portuguesa ― não possuem cláusula semelhante. Pensamos, todavia, que ainda assim todos os direitos humanos fundamentais têm núcleos irredutíveis, sob pena de se descaracterizarem como tais. Há de ser, com efeito, essa irredutibilidade a nota específica da fundamentalidade. Tornaremos ao tema (infra).

73

γ.

Ressalvado o seu núcleo essencial irredutível (“β”), a cláusula do devido processo legal formal ou procedimental subordina-se a restrições de tipo expresso e implícito, desafiando, em todo caso, juízos de ponderação próprios de colisões de princípios; as últimas ― restrições não autorizadas expressamente pelo texto constitucional135 ― têm especial relevo, seja por manifestarem uma dimensão subjacente à própria garantia do devido processo (instrumentalidade), seja por interferirem com as legítimas expectativas do cidadão (princípio da não surpresa);

δ.

O princípio da instrumentalidade consubstancia o epicentro nomológico de confluência do devido processo legal formal ou procedimental (“procedural due process”) e do devido processo legal substantivo (“substantive due process”);

ε.

Devido processo legal formal e devido processo legal substantivo são conceitos auto-implicados e indissociáveis, de cujo equilíbrio dependem os respectivos sentidos éticos e a própria existência útil;

ζ.

Fora do marco essencial irredutível, as restrições admissíveis à cláusula do devido processo legal formal ― assim entendida a garantia jusfundamental a um procedimento prévio, público e legal-formal e a um processo justo, equânime, efetivo e de duração razoável ― configuram aquilo que designamos, até agora e doravante, como inflexões do sistema jurídico adjetivo;

η.

As inflexões do devido processo formal têm legitimidade constitucional e desafiam explicação racional (no plano do razoável-consensual) à luz de um modelo de

135 Sobre essa modalidade de restrição aos direitos e garantias fundamentais, cf., por todos, António Jorge

Pina dos Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela

74

decisão que priorize as normas-princípios e tanto seja permeável às pré-compreensões como às pós-prospecções136;

θ.

A permeabilidade do modelo às pré-compreensões e/ou às pós-prospecções do intérprete-aplicador se completa com a sua aptidão para conferir-lhes caráter intrassistemático, o que implica ser um modelo inclusivo;

ι.

A inclusividade, por sua vez, subentende um processo linguístico-compreensivo de recepção de valores (= pré-compreensões) e de objetivos (= pós-prospecções) extrassistemáticos, cuja funcionalidade primordial concerne à transmudação dos elementos recepcionados em proposições jurídicas sistematicamente assimiláveis (nomeadamente como princípios jurídicos ― constitucionais ou infraconstitucionais)137;

κ.

Uma vez que as inflexões do devido processo formal são, por natureza, restrições a uma garantia jusfundamental, pressupõem invariavelmente a implicação, imediata ou não138, de direitos humanos fundamentais em contextos de colisão ou periclitância, sob pena de não serem verdadeiras inflexões, mas deflexões do devido processo (= violação ilegítima de garantia constitucional);

λ.

Sob focagem relacional, são as normas de procedimento que se subordinam aos objetivos do processo, não o contrário;

136 Chamaremos de pós-prospecções o “ponderar as consequências”, como atitude reflexiva inerente ao

conceito de sinépica (“Synepeik”), de WOLFGANG FIKENTSCHER (Methoden des Rechts…, v. 5, pp.30- 32). “Prospecção”, aqui, aparece como sondagem, pesquisa (das consequências sociojurídicas da decisão). Tornaremos ao tema (infra).

137 Essa assimilação pode ser mais ou menos complexa, a depender do ordenamento constitucional de cada

país. No caso alemão, por exemplo, a referência constitucional à “lei moral” (artigo 2º, 1, da GG) facilita as restrições com supedâneo em entidades nomológicas primitivamente não jurídicas. Confira-se, a respeito, Robert Alexy, Theorie..., pp.258-263. Tornaremos ao tema (infra).

138 A implicação não será imediata, e.g., nos casos de incorporação de elementos extrassistemáticos (e.g.,

objetivos de política criminal recepcionados intrassistematicamente como dimensões do direito fundamental à segurança pública) ou quando jogarem direitos infraconstitucionais com ancoragem em direitos, garantias ou liberdades fundamentais (e.g., direitos de propriedade industrial).

75

µ.

As garantias constitucionais do processo, embora imanentes aos direitos abstratos de ação e de defesa, não estão plenamente emancipadas dos direitos substantivos decodificados como pretensões resistidas139. Isso se torna especialmente verdadeiro quando se trata de pretensões à preservação e/ou à realização de direitos, liberdades ou garantias jusfundamentais.

Outline

Documentos relacionados