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Por toda a exposição, é cediço que, entre os povos mesopotâmicos da civilização cuneiforme, virtualmente não houve garantias processuais (nem como conceito, nem

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

V. Por toda a exposição, é cediço que, entre os povos mesopotâmicos da civilização cuneiforme, virtualmente não houve garantias processuais (nem como conceito, nem

como técnica, nem tampouco como prática), senão pontualmente, como técnica, apenas no período hammurabiano. O rudimentar processo sumério-babilônico fora concebido na estrita perspectiva da autoridade, sem sequer noções difusas de “direitos” ou “poderes” processuais exercitáveis pelas partes; os procedimentos eram dotados de oralidade, mas certos atos exigiam registro (como as atas de julgamento, normalmente lavradas em tábuas de argila); os atos processuais não observavam uma sequência predefinida (senão, talvez, consuetudinariamente), como tampouco tinham forma ou conteúdo ditados em texto; assim, cabia à autoridade processante ― geralmente órgãos colegiados ― agir conforme o seu prudente arbítrio, com liberdade para decidir sobre todos os aspectos do litígio, tanto na instrução como na decisão. Somente com o Código de Hammurabi, o processo babilônico conheceu alguma procedimentalização de base textual, restrita a dois artigos (1º e 2º), numa compilação de duzentos e oitenta e dois286. Em todo o período, a preocupação fundamental dos textos foi exprimir, para além das máximas de julgamento, as normas de disciplina processual (algumas das quais culminavam em verdadeiras condenações, com nítida afetação jurídico-material, sucedendo o objeto do processo ou retrocedendo a pena

285 Cf. Kramer, op.cit., pp.83-86. A mulher chamava-se NIN-DADA; os assassinos de seu marido ―

identificados como NANNA-SIG, KU-ENLIL e ENLIL-ENNAM (um escravo) ― foram todos condenados à morte. A narrativa consta de duas placas de argila recolhidas na região de Mesopotâmia, provavelmente lavradas por volta do ano 1850 a.C. (antes do Código de Hammurabi). Como foram encontradas outras placas referindo a mesma história, supõe-se que o caso tenha adquirido certa notoriedade entre os sumérios mais cultos, qual uma “jurisprudência” (cf. Freire Pimentel, op.cit., p.63). Mal comparando, tratar-se-ia do primeiro registro histórico de um tribunal popular, à maneira dos atuais tribunais de júri. Em termos jungianos, isso pode sugerir que a noção mesma de julgamento pelos pares seja milenar, integrando arquetipicamente um presuntivo “inconsciente coletivo” partilhado por diversos povos (cf., e.g., Carl Gustav Jung, Gli archetipi

dell'inconscio coletivo (1934-54), trad. Elena Schanzer, Antonio Vitolo, Torino, Bollati Boringhieri, 1977, passim); a ser assim, tal “noção” seria bem anterior ao “mallum” franco (infra) e à consagração do “trial by jury” nos direitos de raiz anglo-saxônica.

286 Nada obstante, esse laivo de procedimentalização chega a ser festejado por alguns autores, talvez com

algum exagero. Cf., e.g., J. M. Othon Sidou, Processo civil comparado, Rio de Janeiro, Forense, 1997, p.20. Segue-o FREIRE PIMENTEL, afirmando que “o código de Hamurabi indicava uma priorização para o

aspecto procedimental do fenômeno jurídico, o que de resto ocorreu com todas as legislações desse período e até mesmo, mais tarde, com a lei romana das XII Tábuas” (op.cit., p.60). Com a devida vênia, a informação

histórica disponível não autoriza qualquer termo de comparação entre a procedimentalização incipiente dos povos mesopotâmicos e a intrincada procedimentalização que o processo romano conheceu (infra, tópico 7.3).

144 do fato imputado). Não havia hipóteses formais de recusa ou resistência legítima aos poderes do juiz: a dimensão do processo que os mesopotâmicos melhor conheceram, à mercê das evidências arqueológicas amealhadas, foi a dimensão punitiva287.

Esse quadro somente evoluiu ― se bem que ligeiramente ― nos derradeiros séculos da civilização cuneiforme, ainda sob Hammurabi288, quando se positivou, pela primeira vez na história da humanidade, uma garantia processual da parte em face do juiz (artigo 5º), à maneira das garantias processuais modernas (em face do Estado). Até então, havia apenas garantias do processo, i.e., da sua integridade e de seus escopos (em especial quanto aos deveres das testemunhas). Já com o Código de Hammurabi, afirmou-se indelevelmente a primeira garantia escrita do cidadão no processo, em detrimento da própria autoridade processante.

Logo, quem houver de perquirir o mais remoto antecedente histórico do “procedural due process of law” nas sociedades humanas, encontrá-lo-á no Código de Hammurabi, em seu artigo 5º; e não antes289.

287 Apesar disso, e da mínina procedimentalização textual, FREIRE PIMENTEL sustenta que “foram os

sumérios os instituidores da técnica processual, sobretudo porque é possível atribuir ao vocábulo técnica um

sentido geral coincidente com o de arte”; e, para sufragar sua ideia, elencava pouco antes uma série de

indícios interessantes: “as leis eram ensinadas aos jovens; na era de Hamurabi a jurisdição era exercida por

juízes; os juízes decidiam de acordo cm a lei e não podiam alterar suas sentenças [artigo 5º do Código de

Hammurabi]; os atos processuais eram documentados em autos de argila; as decisões judiciais eram

reproduzidas e discutidas. Isso se aparenta como suficiente para concluir pela existência de uma técnica

processual, mas como não há provas acerca de uma teoria jurídica [embora haja notícia de uma “doutrina” incipiente ― as placas de ANA ITTISHU, com comentários às leis, destinados ao ensino de estudantes e ao manuseio de juízes e escribas], e nem parece razoável isto supor, é também possível concluir que os sumérios

babilónicos não chegaram a instituir uma ciência do direito” (op.cit., p.66). Somos obrigados, à mercê dos

argumentos, a anuir com ambos os pontos.

288 Após a morte de HAMMURABI, os mesopotâmicos amargaram sucessivas invasões ― hititas, kassites,

aqueus, medos e persas ―, que interromperam os seus progressos civilizatórios e desagregaram sua sociedade, por absorção e também por feudalização (John Gilissen, Introdução…, p.64).

289

O mesmo não se poderia dizer do “substantive due process of law”, que consubstancia o direito a juízos hermenêutico-concretizadores da proporcionalidade e do conteúdo essencial dos direitos fundamentais (paradigma “taking from A and giving to B” v., supra, o Capítulo 2 desta Parte I), porque o devido

processo substantivo não se confunde com a garantia legal-textual de certas situações processuais jurídico- subjetivas (que se podem reconhecer no Código de Hammurabi, mas em parte e por mera aproximação, dentre as suas fórmulas casuísticas) e tampouco com a simples enunciação de certos direitos “comuns” a todos os homens livres (v., supra, nota n. 273).

145 7.2. SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA GRÉCIA

I. O Direito, na Grécia antiga, assumiu contornos singulares, ligados à tradição, aos

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