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A ideia de um processo como instrumento de garantia de direitos subjetivos ganha forma em Atenas após as leis da DRÁCON, de 621 a.C., que pôs fim à solidariedade

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

II. A ideia de um processo como instrumento de garantia de direitos subjetivos ganha forma em Atenas após as leis da DRÁCON, de 621 a.C., que pôs fim à solidariedade

familiar entre os atenienses ― pela qual os membros de um clã poderiam ressarcir-se com ou vingar-se de qualquer um dos membros de outro clã, se desse último proviesse o autor da ofensa ou dano contra aquele primeiro clã ou contra seus membros ― e obrigou os cidadãos a recorrerem aos tribunais para solucionar os conflitos entre clãs. Essa garantia aprofunda-se com SÓLON, que estatui, entre as suas três leis mais democráticas (na percepção de ARISTÓTELES295), aquela que permitiu à generalidade das pessoas comuns levar seus litígios às cortes de justiça.

Essas leis vieram garantir, a todo cidadão ateniense, a sua integridade física e patrimonial, em condições ordinárias, ainda que um membro de seu clã ofendesse ou lesasse membros de outros clãs; quaisquer afetações aos seus interesses ou à propriedade coletiva de seu clã passariam, necessariamente, pelo crivo dos tribunais atenienses. A partir de então, transparece à posteridade, em contornos mais claros, a evolução institucional que conduziu, na imagem de BRACTON, à distinção entre “iurisdictio” e “gubernaculum”296. E talvez ali se tenha descortinado, pela primeira vez na História, a inexorável convergência entre o devido processo formal (na perspectiva do monopólio estatal da coerção) e o devido processo substancial (na perspectiva da preservação da vida, da liberdade e do patrimônio)

295 In verbis: “The most democratic of Solon's enactments were these three: first and greatest, the forbidding

of loans on the person, secondly, the granting of redress to any that chose to sue for it, and thirdly, what is said more than all else to have strengthened the arm of the common people, the right of appeal to the courts of law; for, made master of the vote, the people becomes master of the constitution. [...] These then appear to be the democratic elements in the laws of Solon. His cancellation of debt seems to have been done before he made the laws. After this came his increasing of weights and measures and appreciation of the currency”

(Aristóteles, Athenian Constitution, H. Rackham Ed., in http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=

Perseus:text:1999.01.0046 ― acesso em 17.11.2012).

296 O “gubernaculum” importava em exercício soberano e autocrático de poder político, sem racionalidade

procedimental, sendo o rei ― ou seus delegados ― o autor de todos os atos de governo e poder, “inacessíveis

a limitações e impassíveis de questionamentos (inclusive judicial)”; a “iurisdictio”, por sua vez, implicou

atribuição de competências aos tribunais, que decidiam sob certos padrões passíveis de intelecção racional, ainda quanto à sombra do rei. Cf. Nelson Saldanha, Estado de direito, liberdades e garantias: estudos de

direito público e teoria política, São Paulo, Sugestões Literárias, 1980, pp.54-56. A distinção, atribuída a

148 para a garantia integral da pessoa humana ― ainda que, àquela altura, tais conceitos fossem desconhecidos. Na esfera penal, baniu-se a figura da “vingança privada coletiva” e introduziu-se a noção de “vingança pública”, que adiante evoluiria para a ideia de justiça penal (estatal), cujo capital corolário é o processo penal. O processo, em suma, foi alçado à condição ordinária de garantia legal-formal do cidadão, sobretudo diante das pulsões de autotutela dos demais membros da “polis”.

Ainda sob SÓLON, as leis de 594 e de 593 a.C. suprimem a propriedade coletiva dos clãs e a servidão por dívidas, estabelecem o testamento e a adoção e instauram a igualdade civil formal297. Com isso, o direito ateniense começou a rumar para o horizonte individualista que viria a consagrá-lo, no apogeu, sob CLÍSTENES e PÉRICLES298. Esse traço individualista refletiu-se intensamente no sistema processual.

O processo ático desenvolvia-se mediante procedimento oral, incumbindo às partes o ônus da prova dos fatos que alegassem (em percepção ainda rudimentar do princípio dispositivo), embora se admitisse, em situações excepcionais, que o próprio juiz assumisse a iniciativa da produção probatória299. No entanto, posta a decisão, cabia à parte favorecida ― assim como àquela que titularizasse um direito certo ou um direito não contestado ― providenciar, com meios privados, a satisfação dos seus interesses300 (o que significa que, mesmo após as leis de DRÁCON, as execuções procediam-se basicamente por meio de ações diretas). Conquanto existentes, as regras para os expedientes da excussão eram

297 Ideia já bem amadurecida em 353 a.C., quando sobre a lei se lê, do ateniense DEMÓSTENES, que “é

necessário por um lado, que o texto seja transcrito e afixado à vista de todos perante os Epônimos; por outro lado, que a lei proposta se aplique igualmente a todos os cidadãos; enfim, que as leis contrárias sejam derrogadas; sem falar doutras prescrições, cuja exposição, parece-me, não teria interesse para nós neste momento. Em caso de infração a uma só destas regras, qualquer cidadão pode denunciá-la” (Discurso

XXVI, “Contra Timócrates” ― g.n.). Vê-se ainda, no excerto, o reconhecimento precoce de outra garantia fundamental do cidadão nos Estados Democráticos de Direito, que é a publicidade das leis.

298

John Gilissen, Introdução…, p.74.

299 Werner Jaeger, Paidéia…, p.134.

300 Ugo Enrico Paoli, “L’Antico Diritto di Gortina”, in Antologia Giuridica ed Antiquaria, Milano, A. G.

Milano, 1968, v. I, p.45. Com base em excertos da “Lei de Gortina” (supra, nota n. 294), o autor conclui pela semelhança entre os procedimentos executivos de Gortina e de Atenas clássica, pontuando que, em ambos os casos, “l’execuzione […] è lasciata […] all’arbitrio di chi ne è titolare”.

149 mínimas; e, em geral, regiam por exclusão (havia, por exemplo, uma relação geral de bens “impenhoráveis”, que não podiam ser apropriados pela parte vencedora)301.

Sabe-se também que, à semelhança do processo no sistema das “legis actiones” (tópico 7.3.2) e, de resto, em quase todos os modelos antigos de processo, “o direito subjetivo praticamente vive e se faz valer como ação”, não havendo ainda qualquer distinção, teórica ou prática, entre o direito de ação e o direito substantivo pretendido; da mesma forma, jurisdição e competência não se distribuíam ou graduavam, ademais, apenas em função da natureza do direito litigioso, mas também em função da pessoa que o reclamava (se cidadão ou meteco, p.ex.)302. Ao lado das ações privadas, ademais, a possibilidade de o cidadão ateniense interferir com a gestão da justiça pública caminhou com a própria evolução da democracia na pólis, concedendo-se-lhe, a certa altura, a prerrogativa de mover ações públicas extraordinárias (assim, e.g., para indicar ao magistrado um culpado contra o qual se devesse proceder na via administrativa, ou para conduzir o magistrado a um local em que devesse exercitar seu ofício administrativo contra a violação de um direito, ou ainda para denunciar um orador que falasse em praça pública estando incapacitado de exercer as suas funções políticas de cidadão, porque alcançado por uma “atimia”303), como também a de mover ações populares concernentes ao controle dos magistrados (assim, e.g., acusando-o de conduta ilegal no exercício de suas funções)304. Havia, pois, ações públicas integrativas do ofício do magistrado, por um lado, e ações públicas em detrimento da pessoa do magistrado, por outro.

301

Werner Jaeger, Paidéia…, p.134.

302 Ugo Enrico Paoli, “Processo Attico” (verbete), in Nuovo Digesto Italiano, Torino, Utet, 1939, v. X,

pp.614 e ss. V. também Ugo Enrico Paoli, “Processo Attico” (verbete), in Novissimo Digesto Italiano, Torino, Utet, 1966, v. XIII, pp.1093 e ss.

303 O ateniense alcançado por uma “atimia” (do grego “ἀτιµία”) tampouco podia servir como jurado na

“Heliea”, ou sequer intentar ações judiciais perante os tribunais. Nada obstante, seguia transmitindo sua

cidadania aos filhos. Era o modo mais eficaz de eliminar todas as ambições políticas de um cidadão. Cf., por todos, Mogens Herman Hansen, Apagoge, Endeixis and Ephegesis against Kakourgoi, Atimoi and

Pheugontes: A Study in the Athenian Administration of Justice in the Fourth Century B.C., Odense, Odense

University Press, 1976, v. 8 (Odense University Classical Studies), passim.

304

Enrico Paoli, “Processo Attico”, in Nuovo Digesto Italiano, pp.615-617. Convém lembrar que, no direito público antigo, não se distinguia entre “poderes” judiciais e administrativos, ao menos da maneira como hoje fazemos; daí que a expressão “magistrado”, nesse contexto, não designava necessariamente um “juiz” na acepção moderna do termo, mas tão só um agente público graduado. Assim, p.ex., o “archōn polemarchos” ateniense tanto detinha funções militares, na sua origem, como depois — após 487-486 a.C. — deteve funções religiosas, administrativas e jurídicas.

150 As ações ordinárias, públicas ou privadas, iniciavam-se pela citação do adversário para comparecer perante certo magistrado. A depender da natureza do direito e/ou da condição pessoal das partes envolvidas, a competência seria de determinada classe de magistrados. Ao foro dos arcontes eram apresentadas as ações públicas ou privadas relativas às questões e direitos familiares; ao foro dos basileus, as ações públicas por impiedade e as ações privadas decorrentes de crimes de sangue; ao foro dos polemarcos (que pertenciam à categoria dos arcontes), as principais demandas envolvendo metecos (estrangeiros); ao foro dos estrategos e dos curadores dos arsenais, todos os crimes militares; e ao foro dos tesmotetas, por fim, acorria a maior parte das ações, porque eram eles os funcionários especialmente designados para a guarda das leis atenienses: cabia-lhes julgar desde os crimes que ameaçavam diretamente a segurança da pólis (na sua incolumidade perante inimigos externos, nas suas instituições, no seu crédito, na regularidade da sua atividade administrativa etc.) até as ameaças indiretas, que decorressem de ofensas privadas capazes de também comprometer os interesses mais vitais da cidade.

Tanto o pedido do autor como a resposta do réu — com possibilidade de apresentar exceções, se as tivesse — deveriam ser confirmadas por juramentos de parte a parte. Seguia-se a fase instrutória, com a previsão legal de vários meios de prova (de documentos a testemunhas, passando novamente pelos juramentos solenes, muito comuns nos processos antigos e medievais). Após, o magistrado condutor do processo devia introduzir a respectiva causa no tribunal julgador correspondente, com as alegações e as provas todas já colhidas. Isso porque o juízo perante jurados era a regra em Atenas, como atestam as fontes mais fidedignas que a respeito nos chegaram (os repositórios retóricos dos oradores áticos); aliás, de todos os informes “judiciários” que resistiram ao tempo, poucos foram os que não se pronunciaram perante o tribunal dos heliastas305. E era já perante os tribunais que se designavam as audiências, anunciando o número de juízes que as acompanhariam e ao final decidiriam. Geralmente eram colegiados numerosos, a refletir, no plano processual, todo o esplendor democrático da “práxis” grega: as composições oscilavam de um mínimo de duzentos e um juízes (para causas privadas de menor valor) a quinhentos e um juízes (para

305 Cf. Georges Perrot, El Derecho Público de Atenas, trad. Luís de Terán, Madrid, La España Moderna,

151 causas públicas), podendo mesmo chegar ao excepcional número de seis mil juízes, no caso da “Eliea”306.

No que diz com a “Eliea”, a propósito, é particularmente relevante estudar o teor do chamado “juramento eliástico” — condição formal para que o cidadão integrasse os quadros ativos do tribunal popular soberano —, porque revela muito sobre as capacidades criativas dos tribunais atenienses. No início do ano, o ateniense deveria jurar que agiria sempre “segundo a lei”, mas não apenas; quando a lei faltasse, ou mesmo quando estivesse presente, jurava-se também julgar “de acordo com a opinião mais justa”. Para BISCARDI e ROMAN BORGES, isto significava que as decisões judiciais não estavam restritas aos conteúdos legais (= legislativos) e também podiam “criar” o direito, concretizando o conceito ampliado de “νόµος” (= “lei” ou “norma”) na acepção grega clássica. Nesse sentido,

“[n]ão havia entre os gregos o princípio romano do iura

novit curia (o juiz conhece o direito), seja porque não

havia especialidade, sendo todos a um certo modo juristas, seja porque caberia às partes buscar construir uma decisão para o caso concreto. O juiz, ao julgar, portanto, tinha uma ampla discricionariedade, especialmente porque o risco de seu desvio poderia ser corrigido facilmente [...]”307.

III. Por fim, especificamente quanto ao ato processual de citação (a respaldar, no

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