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O Direito, na Grécia antiga, assumiu contornos singulares, ligados à tradição, aos procedimentos orais e às instituições políticas; mas tampouco chegou a evoluir como

O “due process of law” na História e no Direito

§ 7º SOLUÇÃO PÚBLICA DE CONFLITOS E GARANTIAS PROCESSUAIS NA ANTIGUIDADE

I. O Direito, na Grécia antiga, assumiu contornos singulares, ligados à tradição, aos procedimentos orais e às instituições políticas; mas tampouco chegou a evoluir como

ciência (supra, nota n 287). Não foi pensado como sistema, nem sequer elaborado na perspectiva de uma unidade nacional (que, de fato, jamais existiu); daí ser talvez exagerada a afirmação de JAEGER, que identificou na Grécia o surgimento do primeiro “Estado jurídico”290. Afinal, como ressalta GILISSEN, nem mesmo se poderia falar de um “direito grego”,

“mas de uma multidão de direitos gregos, porque, com excepção do curto período de Alexandre o Grande, não houve nunca unidade política e jurídica na Grécia Antiga. Cada cidade tinha o seu próprio direito, tanto público como privado, tendo caracteres específicos e evolução própria. Nunca houve leis aplicáveis a todos os Gregos; no máximo, alguns costumes comuns. Na realidade, conhece-se mal a evolução do direito da maior parte das cidades; apenas Atenas deixou traços suficientes para permitir conhecer os estádios sucessivos da evolução do seu direito” 291.

Exatamente por isso, os meios de solução pública de conflitos existentes nas civilizações cretense (séculos XX a XV a.C.), micênica (séculos XVI a XII a.C.) e mesmo ao tempo das comunidades clânicas, sobre serem agudamente arcaicos, são praticamente desconhecidos. Tais civilizações viviam em regimes fortemente autocráticos e seus sistemas sociais assentavam-se em vínculos de solidariedade que se estendiam indistintamente a todos os membros do grupo. Somente com a formação das cidades

290 Werner Jaeger, Paidéia: a formacão do homem grego, trad. Arthur M. Parreira, São Paulo, Martins Fontes,

1995, p.134. A rigor, sequer se poderia dizer que as nações gregas da Antiguidade constituíram-se em “Estado”, mesmo sob ALEXANDRE MAGNO (cf., por todos, Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de Teoria

Geral do Estado, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1972, pp.46 e ss.); nem tampouco em “Estado de Direito”, tal

como hoje o concebemos. No entanto, pode-se aduzir, em favor da ilação de JAEGER, que ao menos “el

concepto de Constitución, en el sentido de organización del mundo social, fue ya fijado por los griegos”, na

linha do que intuiu ARISTÓTELES: “la Constitución es el orden establecido en la ciudad, la manera cómo

se distribuyen entre los ciudadanos las magistraturas y cómo se preare el ejercicio de la autoridad. Esta definición que implica la toma de posición de los ciudadanos en la vida política, es la que caracteriza a la democracia, en la que todos los hombres libres toman parte en el ejercicio del poder, gozan de iguales derechos y son igualmente ciudadanos” (Casimiro A. Varela, Fundamentos Constitucionales del Derecho Procesal, Buenos Aires, Ad-Hoc, 1999, p.20). Cf. ainda, no mesmo sentido, J. Moureau, Aristóteles y su escuela, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1972, pp.226-227.

146 (“polis”), após o paulatino agrupamento dos clãs, houve suficiente organização política para que se pudesse engendrar, nos processos públicos de solução de conflitos, alguma racionalidade, formal ou material, para além da pura discricionariedade do rei (βασιλεΰς ― “basileus”) ou tirano.

Como se pode intuir, esse gradiente de racionalidade variou de modo diretamente proporcional ao “standard” de liberdade que vicejou em cada regime político que se ergueu. Por isso mesmo, o mais importante modelo técnico-processual do mundo grego floresceu em Atenas, em virtude do regime democrático que se estabeleceu a partir do século VIII a.C. (especialmente entre 580 e 338 a.C., durante a época clássica, quando os cidadãos legislavam diretamente ― por meio da assembleia ou “ecclesia”292 ― e eram administrados pelo conselho ou “Bulé” ― que reunia quinhentos cidadãos tirados à sorte anualmente e outros tantos magistrados, eleitos ou tirados à sorte293). As notícias do direito ateniense chegaram aos nossos dias pelos escritos de oradores e filósofos, em especial os literários294, permitindo ali um estudo mais cuidadoso, à diferença do que se passou em períodos anteriores e em outras cidades-estados.

Por conseguinte, este tópico debruçar-se-á basicamente sobre a configuração do chamado processo ático, apenas para nele divisar o que então poderia ser interpretado como garantias dos cidadãos atenienses, no plano procedimental e também no substantivo (em decorrência do processo), já que essas dimensões eram indistinguíveis, como se dirá. Mais além, nesse mesmo contexto, far-se-á rápida incursão na sistemática da citação ática, que

292

Do grego έχκλησία. De se ver que, àquela altura, Atenas possuía entre 6.000 e 40.000 cidadãos, o que permitia reuniões públicas em campo aberto (mesmo porque escravos e metecos, que somavam centenas de milhares, não votavam nem participavam da vida política da “polis”). Cf., por todos, Valério Massimo Manfredi, Akropolis: A grande epopéia de Atenas, trad. Mario Fondelli, Porto Alegre, L&PM Editores, 2008,

passim.

293

John Gilissen, Introdução…, p.74. Quanto às acepções da expressão “magistrado” na Grécia e em Roma, inconfundíveis com a sua acepção contemporânea, vejam-se as notas ns. 306 e 317, infra.

294 GILISSEN (idem, p. 75) refere, dentre essas, as principais fontes escritas ― raras, pois “o direito das

cidades gregas não parece ter sido formulado nem sob a forma de textos legislativos, nem sob a de comentários de juristas; o direito derivaria mais duma noção mais ou menos vaga de justiça que estaria difusa na consciência coletiva”. São elas: (a) as epopéias de Homero (para todo o período arcaico, e não

apenas sobre Atenas); (b) os discursos do fim da época clássica ateniense (em especial os de DEMÓSTENES e ISEU); (c) escritos literários e filosóficos, como os de PLATÃO, ARISTÓTELES e PLUTARCO; e (d) inscrições jurídicas diversas. O autor refere, ainda, a “Lei de Gortina” e a “Lei de Dura”, documentos descobertos bem mais recentemente (em 1884 e em 1922, respectivamente), que retratam o direito material ― direitos e deveres ― aplicado em outras cidades gregas, não em Atenas.

147 provavelmente encerrava a principal garantia processual em vigor naquele tempo (informação e contraditório).

II. A ideia de um processo como instrumento de garantia de direitos subjetivos

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