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A nova sistemática jurídica supõe um Direito (objetivo) dinamicamente ordenado e tendencialmente unitário (o que não se confunde, advirta-se, com as pretensões

§ 5º PRESSUPOSTOS DE INVESTIGAÇÃO

V. A nova sistemática jurídica supõe um Direito (objetivo) dinamicamente ordenado e tendencialmente unitário (o que não se confunde, advirta-se, com as pretensões

universais e estáticas de coerência, completude e unidade do pensamento jurídico liberal- moderno ─ v. infra o tópico 23.1, n. I). Noutras palavras, a adequação valorativa e a unidade interior consubstanciam premissas teorético-científicas e hermenêuticas de toda a ordem jurídica175.

Por adequação valorativa, entende-se a adstrição deontológica de juízes e legisladores aos padrões axiológicos do conjunto-objeto, i.e.,

primarily active system. […] I, for one, am unable to see how, for example, creative and cultural activities of

all sorts can be regarded as 'response to stimuli', 'gratifications of biological needs', 'reestablishment of

homeostasis', or the like. […] Man is not a passive receiver of stimuli coming from an external world, but in

a very concrete sense creates his universe” (Bertalanffy, General system…, pp.194 e ss. [g.n .]).

173 Nessa ensancha, postulando a estrita dependência entre o caráter científico do Direito e a ideia de sistema,

cf. Julius Binder, Philosophie des Rechts, Berlin, Georg Stilke, 1925, pp.852-853. Também CANARIS parece correlacionar o pensamento sistemático ao “espírito da Ciência”, ao examinar a compatibilidade do modo de pensar aporético com os sistemas abertos e concluir que “por certo nenhum físico ou nenhum químico iria

ignorar um fenómeno contraditório perante os princípios até então existentes, mas a ninguém ocorreria ordenar, por isso, a Física e a Química na tópica” (Canaris, Pensamento…, p.248).

174 As correntes do cetiscimo científico-jurídico sustentam, com efeito, que o Direito não pode ser ciência,

entre outras razões, porque o “justo” modifica-se sensivelmente no tempo e no espaço, ao sabor das variações ideológicas e legislativas, impedindo construções científicas exatas e atemporais; seria, pois, uma simples técnica (v., e.g., Miguel Reale, Filosofia..., pp.164-165). Ademais, seu objeto (do Direito) não é e nem pode ser equiparável ao(s) objeto(s) das ciências naturais: como observou ERLICH, “sistematische Abstraktion, die

bloβ im Lehrvortrage oder in juristischen Büchern, nicht aber im Leben vorkommt” (Eugen Erlich, Die juristische Logik, Aalen, Scientia, 1966 (reimpressão da 2ª ed., de 1925), p.269. Para CANARIS, enfim, o

próprio VIEHWEG estaria a recusar à Ciência do Direito o seu caráter científico, desde quando caracterizou a tópica como a “técnica do pensamento problemático” e a elevou à condição de metodologia primordial do Direito: antiteticamente, em sua obra maior (“Topik und Jurisprudenz”), ele próprio houvera antagonizado“a

priori”, com toda ênfase, os conceitos de “técnica” e de “ciência” (v. Canaris, Pensamento…, p.16 e, na

mesma página, a nota n. 21)...

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“tanto o legislador quanto o juiz estão adstritos a retomar “consequentemente” os valores encontrados, “pensando- os, até o fim”, em todas as conseqüências singulares e afastando-os apenas justificadamente, isto é, por razões materiais ― ou, por outras palavras: estão adstritos a

proceder com adequação”176.

Trata-se, pois, de uma adequação racional com relação a valores, de base ético- axiológica, que deriva imediatamente do mais antigo e reconhecido postulado laico de justiça (na verdade, de “igualdade com justiça”, ou de justa igualdade), a saber, o de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas diferenças177. Logo, não se trata, aqui, de uma adequação racional de base cartesiana, eminentemente lógico- formal, que CANARIS termina por rechaçar quando inclui o “sistema lógico-formal” entre os “conceitos de sistema que não se justificam a partir das ideias de adequação valorativa e da unidade interna da ordem jurídica” (com remissão expressa à malsinada jurisprudência dos conceitos e aos sistemas axiomáticos-dedutivos lógico-formais, como o de ULRICH KLUG178).

176 Idem, p.18.

177 Idem, pp.18-19. Sobre o postulado ético da justa igualdade, vejam-se, e.g., as noções de justiça comutativa

e de justiça distributiva em Aristóteles, ainda no século IV a.C. Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, trad. Edson Bini, 2ª ed., Bauru, Edipro, 2007, passim.

178 Idem, pp.28-45 (citando KLUG na emblemática obra “Juristische Logik”, de 1966). No dizer do autor

(agora remetendo a WEBER), “um sistema lógico-formal é igualmente inadequado para exprimir a unidade

interior e a adequação de determinada ordem jurídica positiva. Não obstante, este ideal dominou por longo tempo a Ciência do Direito alemã, tendo os partidários da chamada “jurisprudência dos conceitos” firmado como objectivo a elaboração de um sistema desse tipo. MAX WEBER caracterizou o conceito de sistema em causa, de modo certeiro, na sua Sociologia do Direito, da forma seguinte: “Segundo os nossos actuais hábitos, ela (sic, a sistematização) traduz: a concatenação de todas as proposições jurídicas, obtidas por análise, de tal modo que elas formem, entre si, um sistema de regras logicamente claro, em si logicamente livre de contradições e, sobretudo e principalmente, sem lacunas, o que requer: que todos os factos possam logicamente subsumir-se numa das suas normas, ou caso contrário, a sua ordem abdica da garantia essencial”. Nos bastidores desta concepção encontra-se, manifestamente, o conceito positivista de Ciência,

elaborado tendo como ideais a Matemática e as Ciências da natureza. […] Esta concepção da essência e

dos objectivos da Ciência do Direito pode-se hoje, sem reserva, considerar como ultrapassada.De facto, a tentativa de conceber o sistema de determinada ordem jurídica como lógico-formal ou axiomático-dedutivo está, de antemão, votada ao insucesso. Pois a unidade interna de sentido do Direito, que opera para o

erguer em sistema, não corresponde a uma derivação de tipo lógico, mas antes de tipo valorativo ou

axiológico. Quem poderia seriamente pretender que a regra de tratar o igual por igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença, pode ser acatada com os meios da lógica? Os valores estão, sem dúvida, fora do âmbito da lógica formal e, por consequência, a adequação de vários valores entre si e a sua conexão interna não se deixam exprimir logicamente, mas antes, apenas, axiológica ou teleologicamente” (pp.28-30 ― g.n.). Revela-se, por essa ótica, a vulnerabilidade essencial da concepção

“sistemática” de SAVIGNY (supra, nota n. 168) que, sobre reconhecer que a legislação (i.e., o direito objetivo) só se exprimiria ao nível do todo, pretendia que o intérprete extraísse do próprio sistema, conforme o sentido lógico-formal de suas conexões sistemáticas, a regra aplicável ao caso; daí se falar, até hoje, em

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Já por unidade interior, entende-se, na componente negativa (como outra emanação do postulado de justa igualdade), a tendência generalizadora da ideia de justiça, que preordena a ausência de contradições permanentes no sistema. E, na componente positiva, entrevê-se a ordem imanente que impede a dispersão do Direito em uma multiplicidade de valores singulares e desconexos, reconduzindo-o, ao revés, a critérios gerais relativamente pouco numerosos179.

A sistemática jurídica proporciona, ainda, padrões razoáveis de determinabilidade e de previsibilidade no processo de interpretação/aplicação do Direito, o que lhe confere continuidade e estabilidade (= segurança jurídica)180. Note-se que, nalguns países, a segurança jurídica chega a ter status constitucional181, o que mais reforça a necessidade de uma metodologia jurídica racional capaz de preservá-la. Como observado anteriormente (tópico 1.1), pode-se obter segurança jurídico-judiciária, em boa medida, com a rigorosa

interpretação lógico-sistemática. Somente mais tarde, em um segundo momento de sua obra (a partir do estudo “Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzbund und Rechtswissenschaft”, 1814), admitiria, como fonte originária de todo o Direito, o “espírito do povo” (“Volkgeist”), i.e., a convicção jurídica da sociedade. A partir dessa premissa, sobrepôs o costume, em importância, à própria lei em sentido formal, e alvitrou a possibilidade de se deduzir regras jurídicas segundo a mera “intuição” do instituto jurídico (= intuição global de nexo orgânico). Cf., por todos, Karl Larenz, Metodologia…, pp.12-13.

179

Canaris, Pensamento …, pp.19-21. Deriva dessa condição o curioso fenômeno de relativa anomia que, não raro, a inflação legislativa precipita (como se diria haver hoje, no Brasil, notadamente em alguns setores do tráfico jurídico, como o trabalhista e o fiscal): a multiplicação das leis implica, ao menos tendencialmente, o comprometimento da unidade sistêmica, na medida da paulatina inabilitação das instituições em controlar, segundo os critérios gerais de referência que estão em vigor (normalmente aqueles contidos nas constituições escritas), a produção e a sobrevida dos sucessivos atos legislativos editados. Assomam-se as contradições (negando a componente negativa), perde-se o sentido ético da normatividade (negando a componente positiva) e, no limite, o cidadão termina por escolher a conduta e/ou a interpretação que melhor lhe convém.

180 Idem, p.22. 181

No Brasil, p. ex., deriva do Preâmbulo da Constituição (“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos

em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma societade fraterna, pluralista e sem preconceitos […]”

― g.n.). Na Espanha, decorre explicitamente do artigo 9º, 3, da Constitución (“La Constitución garantiza el

principio de la legalidad, la jerarquía normativa, la publicidad de las normas, la irretroatividad de las disposiciones sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales, la seguridad jurídica, la responsabilidad y la interdicción de la arbitrariedad de los poderes públicos” ― g.n.). Importante salientar,

por outro lado, que o direito constitucional à segurança (sem adjetivações), quando propositiva e estritamente vinculado à garantia de liberdade espácio-corporal (como ocorre, e.g., no artigo 27º, 1, da CRP, e no artigo 17, 1, da CE), diz exclusivamente com esse liberdade, i.e., com a certeza de que a pessoa humana só poderá ter a sua liberdade individual limitada ou restringida nos casos e com as garantias que a Constituição predispõe. Nesse sentido, cf., respectivamente, Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa

anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, t. I, p.301, e José María Asencio Mellado, “La libertad de movimientos como derecho fundamental”, in Derechos procesales fundamentales, Faustino Gutiérrez-Alviz

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vinculação das decisões judiciais aos ritos, às formas e à lógica cartesiana das subsunções literais; mas, por esse caminho, esteriliza-se o Direito, minguando-lhe a função de justiça concreta e o próprio caráter prudencial. O pensamento sistemático, por seu turno, preserva margens apreciáveis de segurança, sem comprometer a coerência axiológica do conjunto ou as possibilidades de realização de justiça concreta.

VI. A não ser assim, exsurgiria, como única alternativa palatável ― e com o que, no último quartel, mais se resistiu ao pensamento sistemático ―, a da tópica material contemporânea. Remontando-a a VIEHWEG (“Topik und Jurisprudenz”, 1953), dir-se-ia que essa alternativa metodológica mantém, dos clássicos (ARISTÓTELES, CÍCERO), a técnica do pensamento problemático orientado à obtenção de “afirmações evidentes” sobre o Direito (método aporético); repudia, porém, o viés puramente formal, que rejeita valores e proposições éticas ou empíricas e se circunscreve às análises lógicas da linguagem, para buscar conteúdos materiais182 (ou, na expressão de VIEHWEG, a sua “complementação substancial”183).

Os tópicos (“topoi”), segundo VIEHWEG, são pontos de vista com validade geral e múltiplo emprego, por meio dos quais se ponderam os prós e os contras de cada opinião esgrimida, aproximando-se, por condução, do que é “verdadeiro” em cada caso. São, por assim dizer, os marcos que parametrizam a discussão problemática, emprestando centralidade ao problema (= caso concreto), de que partem e ao qual sempre regressam, sem se perder em engenhos dedutivos ancorados no “contexto inteligível” (LARENZ184) ou na sua rede de valores e princípios. Cada “topos” suscita deduções de pequeno alcance, que podem chegar a constituir um microssistema, mas não têm pretensões de compatibilidade com os demais microssistemas, tramados em derredor de outros “topoi”, nem tampouco com o macrossistema envolvente (que não é pressuposto como tal185). No

182 Cf. Arthur Kaufmann, A problemática…, pp.132-134. 183 Theodor Viehweg, Tópica…, p.195.

184

Karl Larenz, Metodologia…, p.202.

185 Quanto a isso, pensando especialmente na pandectística alemã do século XIX, VIEHWEG registrou

que,“por lo que respecta a la jurisprudência [leia-se Jurisprudência], es digno de ser tomado en cuenta que

há realizado esfuerzos considerables pêro, en última instancia, infructuosos, para escapar a la situación pragmática y, con ello, a la retórica. En este contexto habría que mencionar la pandectística jurídica, tan apreciada sobre todo en Alemania. Ella aspiraba a construir, a partir de conceptos básicos, cuyos

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fim, os tópicos jurídicos terminam por admitir quaisquer conteúdos, desde conceitos gerais (“declaração de vontade”, “parte essencial”) até princípios e regimes jurídicos materiais (como a tutela da boa-fé e a responsabilidade civil aquiliana), o que valeu, a VIEHWEG, a irrebatível crítica de LARENZ:

“Como se trata manifestamente de coisas diversas, não se consegue depreender com exactidão o que é que VIEHWEG entende por tópico jurídico. Aparentemente, considera como “tópico” toda e qualquer ideia ou ponto de vista que possa desempenhar algum papel nas análises jurídicas, sejam estas de que espécie forem. Perante a possibilidade de empregos tão variados, não é de surpreender que cada um dos autores que usam o termo “tópico”, hoje caído em moda, lhe associe uma representação pessoal, o que tem de ser levado em conta na apreciação das opiniões expendidas”186.

Por outro lado,

“Mesmo quando se argumenta de modo muito próximo a um argumentar “topicamente”, no sentido de que determinados “tópicos” são utilizados na discussão, postos à prova, seja no sentido da sua rejeição ou do seu acolhimento, a obrigação de fundamentação da sentença torna necessário um processo intelectual ordenado, em que cada argumento obtenha o seu lugar respectivo, processo que conduza a uma determinada inferência silogística. Por meio de uma mera recolha de pontos de vista relevantes no plano jurídico, um catálogo de “tópicos”, não se alcança tal resultado. O apelo à tópica seria de reduzida valia se não pudesse oferecer mais que isso”187.

Na verdade, os próprios textos de VIEHWEG permitem identificar, nítida e facilmente, o elevado grau de imprecisão dos “topoi”. Assim, p. ex., sobre as funções retóricas da tópica no âmbito jurídico, o jusfilósofo alemão assentou que

significados parecían estar fijados para siempre, un sistema jurídico “omnicomprensivo” (pandectista) y

distinguir el así obtenido contexto sintáctico-semántico in thesi del contexto de acción fundante. Naturalmente, en la praxis argumentativa, este último se imponía siempre, a veces con la observación de que no se debía “desgarrar lo que en la vida se pertenece recíprocamente”. Desde luego, no se logró eliminar

la estructura retórica básica, es decir, el juicio a partir de la situación de discurso; más bien, ella se puso

permanentemente de manifesto en la creciente extensión de los comentarios” (Theodor Viehweg, Tópica…,

pp.199-200 ― g.n.).

186 Karl Larenz, Metodologia…, pp.203-204. 187 Idem, p.204.

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“Os topoi bem estão mais a serviço de um uso de linguagem do que, primariamente, guiam um comportamento. Com sua ajuda, pode-se pôr de manifesto como funciona in praxi a linguagem quando se passa do aspecto não-retórico da linguagem ao retórico. […] O passo à retórica elimina algumas dificuldades que surgem do intento estéril de escapar à situação pragmática na qual sempre se fala. Os topoi são justamente adequados para iluminar esta situação do discurso que, de outra maneira, é dificilmente aclarável. Cumprem funções de diretrizes na ação lingüística.

Funcionam na linguagem como avisos operativos, como fórmulas detetoras, estímulos mentais, incitações criativas, propostas de entendimento, diretrizes lingüísticas para a ação, etc. Note-se que os topoi são oferecidos, aceitados ou rechaçados pelos

interlocutores que conversam ou discutem entre si, a fim de lograr uma opinião compartilhada. Dessa maneira, possibilitam uma criação comunicativa reciprocamente controlável”188.

Percebe-se, na passagem, o quanto a tópica contemporânea ainda é tributária da tópica clássica, formal e procedimentalista, adstrita à lógica da linguagem. Também salta aos olhos as dificuldades de VIEHWEG em definir o que possam ser, em substância, os seus herméticos “topoi” (ou ― o que é mais provável ― a sua recusa deliberada em fazê- lo). Chama a atenção, enfim, o fato de que, debruçando-se sobre questões específicas de processo, VIEHWEG evoque-as para ilustrar a tópica formal189, referendando soluções puramente procedimentais, que prescindem de quaisquer “complementos substanciais” (como se, sintomaticamente, os “topoi” jurídico-materiais não servissem à argumentação e à problematização processual).

VII. Com efeito, ao tratar da legitimação pelo discurso e dos deveres de

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