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Casuísticas semelhantes poderiam ser identificadas em outros ordenamentos jurídicos, caso houvesse, para tanto, tempo e espaço bastantes.

Apenas para referência, convém lembrar, no caso alemão, as inflexões provocadas pelo chamado “modelo de Stuttgart” (infra, §23º e tópico 23.2), que mereceu boa receptividade na primeira instância judiciária e induziu a “crise” de certos dogmas liberais (notadamente a inércia jurisdicional, corolário histórico da imparcialidade judicial) 64. No sistema norte-americano, releva citar o “leading case” que impõe a inversão do ônus da prova em casos de discriminação “prima facie”, cabendo ao réu provar a equanimidade dos critérios distintivos (U.S. Supreme Court, McDonnel Douglas Corp. v. Green, 1973). Na França, tem-se por adquirido que, em certas ações que versam assédio moral (“harcèlement moral”) ― notadamente nas de remoção de ilícito ―, o ônus da prova deve incumbir ao réu65.

Em Portugal, merecem menção as construções doutrinárias e jurisprudenciais içadas em torno das tutelas preventivas contra a Administração Pública (com a emergência, nos próprios tribunais, de um movimento generalizado que conferia maior protagonismo à tutela cautelar, revigorando a então inerme jurisdição administrativa lusitana66), ou ainda do

64 Cf., por todos, Rolf Bender, Christoph Strecker, “Access to Justice: report on the Federal Republic of

Germany”, in Access to justice: a world survey, Milano, Giuffrè, 1978, v. I, l. II, passim.

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Cf., por todos, Isabelle Bourkhris, "La preuve et le harcèlement moral", in http://www.village- justice.com/articles/preuve-harcelement-moral,981.html (acesso em 23.12.2005).

66 Cf., por todos, Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo (em especial, nos

procedimentos de formação dos contratos), Coimbra, Coimbra Editora, 2005, passim (especialmente pp.546 e

ss. — item XII). Após o aludido movimento, o próprio CPTA positivou, em seu artigo 120º, 2, hipótese de ponderação processual dos interesses públicos e privados afetados que, partindo de juízos de prognose e conceitos jurídicos indeterminados (“manifesta falta de fundamento” para negar uma providência conservatória, “procedência provável” para deferir uma providência antecipatória), permitiu relativizar princípios materiais do Direito Administrativo (como os princípios da presunção de legalidade da atividade administrativa e o da autoexecutoriedade dos atos administrativos) e passou a determinar, por conseguinte, inversões totais ou parciais do “onus probandi” em prejuízo da Administração.

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caso julgado inconstitucional (com a pretensão de desobediência privada às sentenças transitadas em julgado que violassem o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a despeito do disposto no artigo 205º, 2, c.c. artigo 282º, 3, da CRP67).

IX. Em todos esses casos e construções, o devido processo formal ― cujo conceito será destrinçado alhures (§16º) ― sofre, em maior ou menor medida, inflexões notáveis. Ora, a se tomar em conta a garantia constitucional do devido processo formal (que alça foros de universalidade, permeando os principais sistemas jurídicos ocidentais contemporâneos: Emendas n. V e XIV à Constituição dos Estados Unidos da América; artigos 92 e 103, 1, da Lei Fundamental alemã; artigo 24 da Constituição espanhola; artigos 24, 25 e 111 da Constituição italiana; artigo 37 da Carta Magna de 121568; artigo 20 da Constituição grega; artigo 20º, 4, da CRP; artigo 5º, LIV, da CRFB; e assim sucessivamente), um exame mais açodado denunciaria a desconformidade constitucional de

67 As normas em questão estabelecem, respectivamente, que “as decisões dos tribunais são obrigatórias para

todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (artigo 205º,

2, na numeração da RC/97, correspondente ao artigo 208º, 2, desde a RC/89); e que, dos efeitos “ex tunc” da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 281º, 3), “ficam

ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido” (artigo 282º, 3). Para certa doutrina, porém, o artigo 18º, 1, da CRP confere implicitamente, a todas as entidades privadas, uma competência desaplicadora de todos os atos jurídico-

públicos infraconstitucionais que ostensivamente violem a essência de um direito, liberdade ou garantia sob o regime do artigo 17º; entre esses atos, estariam todas as sentenças dos tribunais, incluídas aquelas cobertas pelo caso julgado (inconstitucional), apesar do que dispõe expressamente o artigo 282º, 3, da CRP. Veja-se, por todos, Paulo Otero, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, Lisboa, Lex, 1993, pp.162-165. Para OTERO, seria esse um “aspecto particularmente importante da vinculatividade do caso julgado inconstitucional”, por excepcionar sua eficácia direta sobre as entidades privadas, apesar da norma do artigo 205º, 2, da CRP (o autor ainda se refere ao artigo 208º, 2, por se tratar de obra anterior à RC/97) e ― acrescentamos ― da própria ressalva do artigo 282º, 3, da CRP, que só consente com a restrição de efeitos da coisa julgada vazada sobre norma ulteriormente declarada inconstitucional quando houver expressa decisão

do Tribunal Constitucional, e tão só em matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social (ut

artigo 29º, 4, da CRP). Se a vinculatividade das decisões judiciais transitadas em julgado é um atributo do

direito à tutela judicial efetiva ― que, por sua vez, é corolário do devido processo legal formal (vide, infra, o

tópico 26.1) ―, e se não há outra ressalva constitucional à vinculatividade do caso julgado, senão aquela do artigo 282º, 3, da CRP, pode-se concluir, com boa margem de razão, que a construção em foco, ao relativizar os efeitos de todo e qualquer caso julgado inconstitucional por ofensa ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, inflexiona uma regra positiva do “procedural due process”. Sobre a relativização da coisa julgada, cf., infra, o §32º.

68 Texto constitucional escrito ainda em vigor no Reino Unido (com a redação de 1297, e parcialmente), ao

lado da Petition of Rights (1628), do Habeas Corpus Amendment Act (1679), do Bill of Rights (1689), do Act

of Settlement (1701), do Parliament Act de 1911 (com as modificações do Parliament Act de 1949) e do Westminster Statute (1931). Ver, infra, o tópico 8.2.4, V.

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tudo quanto ali decidido ou alvitrado, por arrostar flagrantemente o teor literal de norma processual constitucional e/ou de legislação processual reputada conforme à Constituição.

Tal conclusão, veremos, predisporia a equívocos. Isso porque, na aplicação da secular cláusula do devido processo (“due process”), devem se acomodar concretamente, segundo modelos de decisão objetivamente aferíveis, as suas dimensões formal (“procedural due process”) e material (“substantive due process”). Aquela, sem essa, conduz à esterilidade dos sistemas fechados que se obcecam por conceitos e juízos isentos.

Eis o que, ao final, provaremos.

1.2. O PROBLEMA

I. O mero arrolamento dos casos notáveis de inflexão do devido processo formal

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