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No documento Psicologia de Família.pdf (páginas 57-60)

Diversas escolas de terapia de casal orientadas por diferentes abordagens, como sistêmica, comportamental e humanista, desenvolveram- -se a partir de então, seguindo caminhos e propostas epistemológicas próprias, bem como gerando uma diversidade de modelos e métodos de intervenção (Féres -Carneiro e Diniz -Neto, 2008). Nas décadas de 1970 e 1980, surgiram estudos controlados sobre a eficácia da terapia de casal. Sucessivas revisões

com o uso de métodos metaestatísticos têm encontrado um quadro de homogeneidade de resultados independente da abordagem teóri- ca. Assim, o uso e a aplicação na clínica de di- ferentes métodos de tratamento a casais mostram -se, até o momento, possíveis e ade- quados do ponto de vista da eficácia terapêu- tica. Além disso, pesquisas mostram que os psicoterapeutas orientam -se por um ou mais modelos derivados de diferentes abordagens (Sholevar, 2003).

Gondim, Bas- tos e Peixoto (2010), em uma investigação sobre o perfil do psi- cólogo brasileiro, ve- rificaram que 50,1% dos psicólogos de uma amostra de 2529 entrevistados decla- ram orientar -se por duas ou mais aborda-

gens teóricas, mesmo que estas sejam contra- ditórias em seus pressupostos e orientações: “De um lado, a habilidade de integrar teorias, que historicamente não são afins, pode ser ex- plicada pela complexidade do objeto da psi- cologia, que compele o profissional a analisar o homem de modo integral, conciliando pers- pectivas biológicas (cognitivo -comportamen- tal) e subjetivas” (p. 190). Porém, esse mesmo resultado pode indicar que o psicólogo não tem clareza metodológica e epistemológica, promovendo muito mais um ecletismo do que uma integração articulada e crítica.

Ponciano e Féres -Carneiro (2006), ao examinar as produções do I ao V congressos da Associação Brasileira de Terapia de Família (ABRATEF), notaram a diversidade de abor- dagens terapêuticas orientadoras dos traba- lhos apresentados: “A tendência de se utilizar várias disciplinas para uma compreensão que englobe o indivíduo, a família e o contexto sócio -histórico, enfatizando a relação entre eles” (p. 259). Ao examinar as publicações na- cionais sobre família nas bases de dados IN- DEXPSI e SCIELO de 1980 a 2003, as autoras observaram que apenas 36 (7,34%) artigos referiam -se a casais. Esse resultado é notável,

Em uma investigação sobre o perfil do psicó‑ logo brasileiro, 50,1% dos psicólogos de uma amostra de 2529 en‑ trevistados declaram orientar ‑se por duas ou mais abordagens teóricas, mesmo que estas sejam contradi‑ tórias em seus pressu‑ postos e orientações.

uma vez que pesquisas internacionais relatam a predominância de aproximadamente 60% do atendimento dos terapeutas de família são a casais ou consistem em sessões de família com a presença exclusiva de casais (Gottman e Notarius, 2002). Isso pode indicar a necessida- de de maiores estudos e teorizações centradas em modelos específicos para os casais.

Além disso, outras categorias temáticas apareciam como sendo de menor ocorrência e representatividade: psicanálise (6; 1,12%); articulação (2; 0,38%); interiorização (1; 0,19%); Winnicott (1; 0,19%). Sugeriram que essas categorias representam a necessidade de integrar diferentes teorias, considerando tanto o aspecto intrapsíquico quanto o relacional. Esses dados indicam que uma possibilidade para compreender melhor a relação entre conceitos como saúde/doença mental e ho- meostase seria “que se considere o indivíduo, pela psicanálise, a família e o grupo social, pela teoria sistêmica” (Ponciano e Féres Car- neiro, 2006, p. 256).

A complementaridade entre essas duas abordagens tem sido defendida por diversos autores desde Nataniel Akerman (1970). Mais recentemente, Abdo e Oliveira (1994) defen- deram uma complementaridade entre as duas teorias para compreender o adoecer psíquico. Para eles, conceitos comuns poderiam estar presentes em ambas as teorias, como, por exemplo, a homeostase como princípio expli- cativo da psique humana e de sistemas rela- cionais. Féres -Carneiro (1994, 1996) também aponta a ausência de um campo teórico unifi- cador e propõe uma perspectiva de articula- ção, observando ainda que a rigidez entre cer- tos partidários da psicanálise e da teoria sistêmica pouco tem contribuído para a pro- dução teórica e o desenvolvimento de técnicas terapêuticas.

Assim, articula- ções tanto no nível teórico quanto na prática, abordando o indivíduo, sua famí- lia ou o casal e o con- texto social, seriam não só possíveis

como também necessárias. Diversas questões emergem desse quadro: diferentes modelos podem ser de fato articulados? De que forma? Diferentes abordagens são realmente eficazes quando utilizadas em conjunto? Como essa orientação beneficia o tratamento? Qual pos- tura epistemológica poderia permitir uma ar- ticulação teórica entre essas perspectivas de modo ético e científico?

Figueiredo (2004), ao abordar a questão da diversidade de escolas de psicoterapia deri- vadas de matrizes do pensamento psicológico, nota que se pode adotar duas reações típicas diante desse quadro: o ecletismo e o dogma- tismo. Na primeira, os usos de diversas abor- dagens, modelos e técnicas são feitos livre- mente, com a suposição de que no final se combinam. Esse processo gera, entre outras dificuldades, uma indiferenciação da crítica epistemológica e metodológica, impedindo o avanço da ciência psicológica através da perda da avaliação da relação entre teoria, a aplica- ção da técnica e seus resultados. A posição dogmática leva, por outro lado, a um fecha- mento arbitrário ou à adesão exclusiva a uma abordagem, também impedindo a exploração de teorias e vieses alternativos que poderiam levar a descobertas e desenvolvimentos signi- ficativos ou a críticas construtivas. Para o autor, articular cam-

pos teóricos diversos parece ser uma rota viável, tanto para o avanço da psicologia quanto para o enri- quecimento das teo- rias psicoterapêuticas e da atuação terapêu- tica.

ARTIculAndo dIFEREnTEs VIsõEs

Como realizar essa articulação? Muitas pro- postas apontam soluções para tal pergunta. Figueiredo (2004), por exemplo, propõe a adoção de uma abordagem construtivista e reflexiva, considerando a importância de se investir na produção do conhecimento a par-

Articulações tanto no nível teórico quanto na prática, abordando o indivíduo, sua família ou o casal e o contexto social, seriam não só possíveis como tam‑ bém necessárias.

Articular campos teóri‑ cos diversos parece ser uma rota viável, tanto para o avanço da psicologia quanto para o enriquecimento das teorias psicoterapêuti‑ cas e da atuação tera‑ pêutica.

tir dos recursos conceituais disponíveis em di- ferentes orientações e no desafio de uma críti- ca reflexiva da prática. Nesse sentido, a epistemologia batesoniana parece ser de espe- cial interesse por oferecer um caminho episte- mológico possível para a articulação de teo- rias. Gregory Bateson, figura seminal do campo da terapia de casal e família, apresen- tou em 1979 no livro Mind and nature um método de investigação e articulação entre diferentes vieses, descrevendo a visão bino- cular como metáfora dessa proposta. Nela, cada olho, como nos seres humanos, capta uma visão semelhan- te, mas diferente da cena que se apresen- ta. Assim, na com- paração entre seme- lhanças e diferenças, o nosso processo cog- nitivo constrói/extrai uma informação que não está disponível no padrão captado por nenhum dos dois olhos separadamen- te: a profundidade em três dimensões.

Bateson (1979) descreve seu método como “dupla descrição”. Inclui elementos dos conceitos de “abdução” de Charles S. Pierce e da teoria de tipos lógicos de Bertrand Russel, embora nenhum deles seja aplicado em seu sentido original. Para que a “dupla descrição” seja um método ana- lítico útil para extrair informações, desvelan- do padrões de relações não percebíveis nas descrições originais, a seleção de similarida- des é o primeiro passo. Nesse ponto, Bateson considera como chave um modo de inferência metodológica frequentemente negligenciado: a abdução, conceito proposto por Pierce (1994).

Para Pierce, a abdução é o processo epis- têmico para formar hipóteses explicativas. A dedução conclui algo que deve ser lógico, en- quanto a indução mostra algo que atualmente é operatório, e a abdução faz uma mera suges- tão de algo que pode ser. Para apreender ou compreender os fenômenos, a abdução só

pode funcionar como método inicial, pois seria o modo de seleção de inputs e constru- ção de fatos. Assim, o raciocínio abdutivo leva às hipóteses que formulamos antes da confir- mação (ou negação) do caso pela indução e pela dedução. Julio Pinto (1995) sintetiza: “a inferência abdutiva é um palpite razoavel- mente bem fundamentado acerca de uma se- miose que deve ser testado posteriormente por dedução a fim de que se chegue a uma in- ferência indutiva sobre o universo representa- do por aquela semiose” (p. 14).

Enquanto Pierce utiliza as categoriza- ções abdutivas como base para induções ou deduções, Bateson (1979) entende -as de modo diferente: “Cada abdução pode ser vista como uma dupla ou múltipla descrição de um objeto ou sequência de eventos” (p. 143). Logo, a dupla descrição seria a base para a ab- dução em Bateson, pois o relacionamento entre diferenças seria sempre necessário. Ele inclui o relacionamento entre diferentes des- crições como parte da abdução, introduzindo uma hierarquia lógica na “dupla descrição”, insistindo na necessidade de não confundir diferentes níveis. Portanto, o primeiro passo da “dupla descrição” envolve identificar pa- drões informativos similares, compará -los e, em virtude da comparação, descobrir regras de ordem superior sobre as similaridades e di- ferenças. Bateson (1979) vê na abdução a pos- sibilidade de prover uma profundidade meta- fórica, mas que não garante por si mesma sua utilidade, necessitando de uma clara distinção entre a abdução e a inferência hierárquica que esta pode eliciar.

Para ele, a possibilidade para a diferen- ciação dessa profundidade metafórica vem da lógica matemática: a teoria dos tipos lógicos de Russel. A teoria dos tipos lógicos foi desen- volvida por Bertrand Russel como meio de evitar paradoxos lógicos matemáticos que emergem em asserções autorreferentes como a de um conjunto que pertence a si mesmo. Bateson desenvolveu um amplo uso do termo “tipos lógicos”, aplicando como meio de elu- cidar relacionamentos hierárquicos em diver- sos domínios. Na “dupla descrição”, argumen- ta que o bônus metafórico obtido é inevitável

Cada olho, como nos seres humanos, capta uma visão semelhante, mas diferente da cena que se apresenta. As‑ sim, na comparação entre semelhanças e di‑ ferenças, o nosso pro‑ cesso cognitivo cons‑ trói/extrai uma infor‑ mação que não está disponível no padrão captado por nenhum dos dois olhos separa‑ damente: a profundi‑ dade em três dimen‑ sões.

em relação ao fenômeno estudado. A diferen- ciação das descrições em tipos lógicos faz a dupla descrição mais do que uma abdução no sentido de Pierce. Isso exige que se usem des- crições relacionadas para que se obtenha uma descrição de um tipo lógico superior. Essa dis- tinção permite emergir a “diferença que faz a diferença” no sentido batesoneano. No que se refere ao exemplo da visão binuclear, Bateson (1979, p. 7) salienta que “a diferença entre a informação obtida por uma retina e a provida pela outra é em si mesma informações de di- ferentes tipos lógicos”. Perceber profundidade depende de registrar sistematicamente as di- ferenças nos sinais dos dois olhos, mas isso não pode ser reconhecido até que os sinais sejam justapostos e alinhados em função de suas similaridades. O método de Bateson foi explorado em perspectivas terapêuticas, como pela escola de Milão (Palazzoli et al., 1972), pelo método de intervenções sistêmicas (De Shazer, 1982) e por áreas da biologia (Matura- na e Varela, 1987) e da estética (Maciel e San- tos, 2010).

Em relação à articulação possível entre a terapia psicanalítica e sistêmica de casais, o método batesoniano de “dupla descrição” parece produtivo, pois permite a diferencia- ção cuidadosa de di- ferentes conhecimen- tos obtidos por dife- rentes métodos e a emergência de pa- drões úteis de hipo- tetização de suas re- lações como um novo conhecimento emer- gente. Para tan to, temos de considerar que um alinhamento cognitivo sobre o mesmo objeto deve ocorrer nas duas perspectivas. Esse ali- nhamento, de fato, ocorreu após um processo longo de estudo e adequação metodológica ao objeto, a terapia de casal, nas duas aborda- gens, como uma focalização. Aspectos salien- tes podem então ser levantados, fornecendo o campo de diferenças e similitudes; assim, um

conhecimento supraordenado pode emergir. Essa informação precisa ser produtiva e apli- cável ao campo de estudo em foco, permitin- do operar -se em um nível mais elevado do que nas descrições anteriores.

Para articular duas teorias tão díspares em seus fundamentos como a psicanálise e a abordagem sistêmica, é necessário descrever o processo de focalização no objeto terapia de casal em ambas as abordagens, revelando a di- nâmica metodológica e epistemológica que levou ao surgimento das teorias de interven- ção. Em seguida, é preciso realizar uma dis- cussão sobre os aspectos salientes comuns emergentes no campo de comparação. Pode- remos obter assim uma metadescrição, nem psicanalítica, nem sistêmica, porém mais do que ambas e menos do que ambas.

TERAPIA PsIcAnAlíTIcA

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