• Nenhum resultado encontrado

TERAPIA dE FAmílIA sIsTêmIcA: TERAPIA dE cAsAIs

No documento Psicologia de Família.pdf (páginas 64-66)

Outro paradigma desenvolveu -se, durante as décadas de 1950 e 1960, a partir de estudos pioneiros que parecem ter se inspirado no hoje clássico estudo intitulado Toward a the­ ory of schizophrenia, de Bateson e colaborado- res (1956). Nesse trabalho, foi apresentada pela primeira vez a teoria do duplo vínculo, inaugurando estudos sobre possibilidade e necessidade de intervenções com a família como campo de tratamento (Foley, 1995). Esse estudo foi a pri-

meira proposta de modelo, na perspec- tiva sistêmica comu- nicacional, sobre a psicopatologia como um processo do grupo familiar e pro- piciou novas propos- tas de tratamento. A

abordagem sistêmica, que rapidamente se de- senvolveu em inúmeras escolas de terapia de família, marcou o surgimento de um novo pa- radigma na perspectiva psicoterapêutica.

Os modelos de terapia sistêmica desen- volvidos no período derivam do que pode ser considerada como a primeira cibernética (Esteves -Vasconcelos, 1995), baseando -se nas ideias de Von Bertalanfy (1977), que propu- nha que os sistemas abertos, aqueles que tro- cam informações e energia com o ambiente, exibiam certas propriedades e características, como globalidade, homeostase e equifinalida- de. Essas propriedades estariam presentes in- dependentemente do nível de complexidade do sistema estudado, embora se expressassem de acordo com o nível de ordem emergente. A aplicação de princípios da teoria geral dos sis- temas levou à visão da família como um siste- ma aberto, ciberneticamente orientado por laços de feedback positivos e negativos, que propiciavam uma oscilação ao redor de um ponto de equilíbrio homeostático e manti- nham um padrão de equifinalidade. Assim, as diversas leituras sobre o funcionamento con-

A abordagem sistêmi‑ ca, que rapidamente se desenvolveu em inúmeras escolas de terapia de família, mar‑ cou o surgimento de um novo paradigma na perspectiva psicotera‑ pêutica.

jugal só poderiam ser interpretadas como parte do funcionamento sistêmico familiar. O sintoma, manifestado no casal ou em mem- bros da família, era caracteristicamente perce- bido como um processo de feedback que man- tinha o funcionamento do sistema. Diferentes escolas emergiram com diferentes leituras do sistema familiar, como, por exemplo, escola de solução de problemas, escola estrutural, esco- la estratégica e escola transgeracional (Féres- -Carneiro, 1996).

As hipóteses descritivas e as interven- ções das escolas sistêmicas de terapia de famí- lia guiavam -se principalmente pelos aspectos de comunicação verbal e não verbal, visando a uma modificação do sistema como um todo. Desenvolveram -se modelos sofisticados de compreensão do processo comunicacional e de modos de intervenção (Watzlavick, Beavin e Weakland, 1977). Então, o processo conjugal passou a ser compreendido como aspecto do funcionamento familiar. Essa tendência não é estranha, conforme destaca Fraenkel (1997): “As abordagens sistêmicas desenvolveram -se em larga medida como uma reação às limita- ções percebidas nas terapias que atribuíam as disfunções psicológicas e sociais apenas a pro- blemas no plano individuais, fosse este visto como de natureza biológica, psicológica, psi- codinâmica ou comportamental” (p. 380).

Portanto, a história inicial da terapia sis- têmica de família foi marcada por uma forte e, por vezes, radical discordância de muitos dos princípios aceitos da psicoterapia psicanalíti- ca e psicodinâmica, em especial do foco nos aspectos psicodinâmicos individuais como princípios teóricos explicativos e de interven- ção. É necessário, contudo, apontar que mui- tos dos pioneiros da terapia de família, como Akerman, Jackson, Framo e Bowen, entre ou- tros, tinham sólida formação em psicanálise (Féres -Carneiro, 1996; Foley, 1995). Essas crí- ticas, somadas ao interesse pela abordagem da família, e não mais do casal, juntamente com os impasses teóricos, levaram a um esmaeci- mento da abordagem de casal. Não se tratou de fato de um desaparecimento, pois, apesar de sua menor visibilidade em termos de pu-

blicações, ocorreram algumas significativas contribuições, como as de Framo (1976, 1981), Paul (1969) e Sander (1979).

Historiadores do período descrevem uma absorção do campo da psicoterapia de casal pela abordagem sistêmica de família. Broderick e Schrader (1991) referem -se a “uma mistura ou amálgama das abordagens” (p. 15). Nichols e Schwartz (1998) referem -se à “terapia de família absorvendo a psicotera- pia de casal” (p. 37). Olson, Russel e Sprenkle (1980) concluem que “no início da década de 1980 a distinção entre terapia de família e psi- coterapia de casal havia desaparecido” (p. 973), notando ainda que o campo havia se tornado “unitário, mas não totalmente unifi- cado e integrado” (p. 973).

O foco também parecia deslocado da inclusão da família como um todo, e qualquer proposta de atender menos que a família pa- recia inadequada ou insuficiente. Isso não quer dizer que os teóricos pioneiros da terapia sistêmica de família não tivessem nenhum in- teresse pelas questões conjugais. É possível apontar, como Gurman e Fraenkel (2002), al- gumas contribuições seminais, de autores como Donald Jackson, Jay Haley, Virginia Satir e Murray Bowen, todas significativas para a terapia de casais.

Até o início da década de 1980, a abor- dagem sistêmica da família moldou a visão de tratamento de transtornos psicológicos que incluíam aspectos conjugais. Todo tratamento conjugal deveria passar pela visão da família. Essa perspectiva esteve presente nas diversas escolas de terapia familiar e moldou grande parte da produção desse campo. Isso pode ser inferido de alguns desdobramentos. Em pri- meiro lugar, o aconselhamento matrimonial, em que ainda pese a sua ausência de contri- buições teóricas e técnicas significativas, aca- bou sendo absorvido teoricamente pelo mo- vimento da terapia familiar, o que levou ao seu fim enquanto profissão em 1979.

Por outro lado, no campo da terapia de casal psicanalítica, seus praticantes debatiam- -se entre o dilema de se manterem fiéis à teo- ria e à técnica psicanalítica ou de se lançarem

na criação e no desenvolvimento de teorias e técnicas para além do intrapsíquico, envol- vendo o inter -relacional, ocorrendo uma certa imobilização. Surgiram poucos avanços teóri- cos nessa escola, sendo os mais notáveis refe- rentes às contribuições de Dicks (1967), no clássico Marital tensions, que se tornou o livro -texto da abordagem da teoria das rela- ções objetais na relação conjugal. São também relevantes os trabalhos de Sager (1976, 1981) sobre o “contrato conjugal” e a contribuição original de Framo (1965, 1996), que desenvol- veu modelos de atendimento a casais em grupo e em sessões com a família de origem, orientado pela teoria das relações objetais.

As abordagens experienciais humanísti- cas, originadas das contribuições de Virginia Satir, permaneceram marginalizadas até mea- dos da década de 1980, na medida em que a própria Virginia Satir afastou -se do movi- mento de terapia familiar. Assim, Gurman e Fraenkel (2002) consideram que nesse perío- do, da metade da década de 1960 à metade da década de 1980, poucos trabalhos de monta surgiram no campo da terapia de casal, indi- cando um eclipse da abordagem. Porém, o in- teresse por esse campo não desapareceu por completo. Nas décadas de 1970 e 1980, emer- giram pesquisas sobre a eficácia da psicotera- pia em geral, recolocando questões sobre a va- lidade de abordagens teóricas e métodos de tratamento.

Em 1986, Jacobson e Gurman publica- ram o clássico Clínical handbook of marital therapy, anunciando, pela sua grande difusão e utilização, um novo período do desenvolvi- mento conceitual da psicoterapia de casal. Esse período foi marcado pelo aumento de sólidas pesquisas empíricas sobre a conjugali- dade, o exame detalhado de conceitos e teo- rias até então propostas, o surgimento de pes- quisas empíricas experimentais sobre modelos e a criação de centros de pesquisa e treina- mento de terapeutas de casal. A combinação desses fatores levou a um contínuo refina- mento do modelo, à colocação de novas ques- tões e ao desenvolvimento de novas aborda- gens. Críticas dos autores pós -modernos, transculturais e feministas oportunizaram a

recolocação de questões relativas à validade fundacional dos modelos (Féres -Carneiro e Diniz -Neto, 2008).

Tais críticas contribuíram para o desen- volvimento de modelos integrativos e articu- lados, incluindo contribuições de outras abor- dagens, como terapia sexual e modelos derivados da teoria do apego. (Féres -Carneiro e Diniz -Neto, 2010). O próprio desdobra- mento da abordagem sistêmica, a partir de críticas à epistemologia da primeira cibernéti- ca, levou ao surgimento de novas propostas. Esse novo olhar, considerando uma segunda cibernética (Esteves -Vasconcelos, 1995), traduziu -se em modelos construtivistas e construcionistas sociais. Essas propostas in- cluem o próprio observador na descrição, de- clarando a impossibilidade de uma teoria livre da subjetividade do observador, bem como enfatizando os processos cognitivos do obser- vador no construtivismo e os processos so- ciais de construção da realidade no constru- cionismo social (Diniz -Neto, 2005). Desse modo, no início, a abordagem sistêmica intro- duziu uma nova perspectiva, apontando as re- lações intrínsecas do casal com a família ex- tensa, convidando a compreender aspectos familiares da conjugalidade; no entanto, tol- dou a compreensão e o foco dos fenômenos específicos da conjugalidade. Os desafios de tratar casais, incluídos ou não em famílias, trouxe gradativamente a reemêrgencia do as- pecto conjugal como irredutível, quer ao su- jeito monádico, quer ao familiar sistêmico, lançando um olhar complexo sobre a sua es- pecificidade.

No documento Psicologia de Família.pdf (páginas 64-66)