Ao aplicarmos a metodologia batesoneana à articulação da abordagem sistêmica com a abordagem psicodinâmica, encontramos um processo de definição gradual de dois pontos de vista irredutíveis sobre a conjugalidade. No entanto, a crítica pós- -moderna relativizou os diversos discursos com pretensões fun- dacionais sobre a rea- lidade, revelando sua impossibilidade de verdade ontológica. O observador revela -se em suas teorias, mas também interage e realiza recortes epistemo- lógicos, “abduções” no sentido batesoneano,
descrevendo os diferentes níveis de sua inte- ração.
Conforme Morin (1996), o todo é mais e menos a soma das partes, assim como a parte é um todo que é mais e menos os sistemas de que faz parte. Assim, podemos afirmar que teorias sobre o sujeito são irredutíveis a teorias sobre a família ou sobre o casal, teorias sobre o casal são irredutíveis a teorias sobre o sujeito ou sobre a família e teorias sobre a família são irre- dutíveis a teorias sobre os sujeitos ou sobre o casal. Portanto, cada teoria não revela o funda- cional, a realidade definitiva a partir da qual todas as propriedades em todos os níveis podem ser deduzidas, mas campos de opera- ção que seriam marcados pelo processo inicial de abdução, no sentido batesoneano.
As deduções de um campo de recorte epistemológico (abdução) seriam inaplicáveis a outro campo complexo. Cabe, então, formu- lar a hipótese de que cada campo de comple- xidade hierarquizada apresenta processos de “antecipação” e “retrocipação” de complexi- dade, isto é, aspectos parciais das hipóteses orientadoras do olhar sobre casal podem ser antecipadas na situação clínica individual, assim como ao se olhar para o casal é possível antecipar aspectos parciais do funcionamento familiar. Inversamente, podem -se inferir al- guns aspectos do funcionamento do casal pela dinâmica familiar, como também se podem inferir aspectos dos sujeitos a partir do fun- cionamento do casal.
Elkaim (1998) fala da renúncia de uma epistemologia da verdade, enfatizando cons- truções nascidas da relação terapêutica. Le- maire (1988) ressalta a necessidade na clínica de se realizar uma tríplice leitura do intrapsi- quico, do sistêmico -relacional e do social. Por outro lado, Wilber (2008), em um projeto de crítica e articulação metametodológica, con- vida ao pensamento integral, no qual aspectos subjetivos e objetivos de qualquer fenômeno devem relacionar aspectos interobjetivos e in- tersubjetivos, reconhecendo a necessidade de múltiplas articulações entre níveis irredutíveis de cortes epistemológicos.
A aproximação da abordagem psicanalí- tica de casais com a abordagem sistêmica de
A crítica pós ‑moderna relativizou os diversos discursos com preten‑ sões fundacionais so‑ bre a realidade, reve‑ lando sua impossibili‑ dade de verdade onto‑ lógica.
casais revela ainda a diferença fundamen- tal de foco descritivo. Embora ambas discu- tam a conjugalidade, cada uma delas a des- creve a partir de prin- cípios diferentes. A abordagem psicanalí- tica de casais a descre- ve com um discurso sobre a subjetividade, orientado para pro-
cessos psicodinâmicos organizados em desejos e afetos pela linguagem. A abordagem sistêmi- ca a descreve com processos informacionais interindivíduos, orientados por padrões de regulação supraordenadores. Portanto, cada abordagem, como dois olhos, fornece uma vi- são parcial que pode ser enriquecida pela apro- ximação res peitosa das diferenças e semelhan- ças. Além disso, suas técnicas podem atuar como dois diferentes modos operativos, tor- nando os terapeutas de casal mais ricos em sua ação e mais justos quanto à complexidade da conjugalidade.
A abordagem psicana‑ lítica de casais a des‑ creve com um discurso sobre a subjetividade, orientado para proces‑ sos psicodinâmicos or‑ ganizados em desejos e afetos pela linguagem. A abordagem sistêmica a descreve com proces‑ sos informacionais inte‑ rindivíduos, orientados por padrões de regula‑ ção supraordenadores.
Questões para discussão
1. Qual é a evolução histórico ‑conceitual da abordagem psicanalítica de casais e da aborda‑ gem sistêmica?
2. De que modo a epistemologia batesoneana permite a articulação entre as duas aborda‑ gens?
3. Qual a importância das críticas pós ‑modernas para a articulação entre as abordagens sis‑ têmica e psicanalítica de casais?
4. Como um terapeuta de casal pode orientar ‑se por ambas as abordagens?
REFERêncIAs
Abdo, C. H. N., & Oliveira, S. R. C. (1994). Psicanálise, teoria sistêmica e o princípio da homeostase. Revista
ABP APAL, 16(3), 99-104.
Ackerman, N. W. (1970). Family psychotherapy today.
Family Process, 9, 123-126.
Bader, E., & Pearson, P. T. (1988). In quest of the mythical
mate. New York: Brunner/Mazel.
Bateson, G. (1956). Toward a theory of schizophrenia.
Behavioral Science (Michigan), 1, 251-264.
Bateson, G. (1979). Mind and nature: A necessary unity. New York: E. P. Dutton.
Broderick, C. B., & Schrader, S. S. (1991). The history of professional marriage and family therapy. In A. S. Gur- man, & D. P. Kniskern (Orgs.), Handbook of family ther
apy (Vol. 2, pp. 3-40). New York: Brunner/Mazel.
Catherall, D. R. (1992). Working with projective identifi- cation in couples. Family Process, 31, 355-367.
De Shazer, S. (1982). Patterns of brieff family therapy. New York: Guilford.
Dicks, H. V. (1967). Marital tensions. New York: Basic Books.
Diniz -Neto, O. (2005). Conjugalidade: Proposta de um
modelo construcionista social de terapia de casal. Tese de
doutorado não publicada, Pontifícia Universidade Cató- lica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Diniz -Neto, O., & Féres -Carneiro, T. (2005). Psicoterapia de casal na pós-modernidade: Rupturas e possibilidades.
Estudos de Psicologia, 22, 133-141.
Eiguer, A. (1984). La therapie psychanalytique de couple. Paris: Dunod.
Elkaim, M. (1998). Panorama das terapias familiares. São Paulo: Summus.
Esteves -Vasconcelos, M. J. (1995). As bases cibernéticas da
terapia familiar. Campinas: Psy.
Féres -Carneiro, T. (1994). Diferentes abordagens em tera- pia de casal: Uma articulação possível? Temas em Psicolo
gia, 2, 53-63.
Féres -Carneiro, T. (1994). Terapia familiar: Da divergên- cia às possibilidades de articulação dos diferentes enfo- ques. Psicologia: Ciência e Profissão, 16, 38-42.
Féres -Carneiro, T., & Diniz -Neto, O. (2008). Psicoterapia de casal: Modelos e perspectivas. Aletheia, 27(1), 173-187. Féres -Carneiro, T., & Diniz -Neto, O. (2010). Construção e dissolução da conjugalidade: Padrões relacionais. Pai
Figueiredo, L. C. M. (2004). Revisitando as psicologias. Petrópolis: Vozes.
Foley, V. (1995). Introdução à terapia familiar. Porto Ale- gre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1984).
Fraenkel, P. (1997). Systems approaches to couple ther- apy. In W. K. Halford, & H. J. Markman (Orgs.), Clinical
handbook of marriage and couples interventions (pp.379-
414). New York: John Wiley & Sons.
Framo, J. L. (1965). Rationale and techniques of intensive family therapy. In I. Boszormenyi -Nagy, & J. L. Framo (Orgs.), Intensive family therapy (pp. 143-212). New York: Harper and Row.
Framo, J. L. (1976). Family of origin as a therapeutic resource for adults in marital and family therapy: You can and should go home again. Family Process, 15, 193-210. Framo, J. L. (1981). The integration of marital therapy with sessions with family of origin. In A. S. Gurman, & D. P. Kniskern (Orgs.), Handbook of family therapy (pp. 133- 158). New York: Brunner/Mazel.
Framo, J. L. (1996). A personal retrospective of the family therapy field: Then and now. Journal of Marital and
Family Therapy, 22, 289-316.
Gondim, S. M. G., Bastos, A. V. B., & Peixoto, L. S. A. (2010). Áreas de atuação e abordagens teóricas do psicó- logo brasileiro. In A. V. B. Bastos, & S. M. G. Gondim, O
trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 174-199). Porto Alegre:
Artmed.
Gottman, J. M., & Notarius, C. I. (2002). Marital research in the 20th century and aagenda for the 21th century.
Family Process, 41(2), 159-198.
Greene, B. L. (1965). Introduction: A multioperational approach to marital problems. In B. L. Greene (Org.), The
psychotherapies of marital disharmony (pp. 1-14). New
York: The Free Press.
Gurman, A. S., & Fraenkel, P. (2002). The history of cou- ple therapy: A millennial review. Family Process, 41(2), 199-260.
Hui, J., Cashman, T., & Deacon, T. (2008). Bateson’s method: Double description. What is it? How does it work? What do we learn? In J. Hoffmeyer (Ed.), A legacy
of living systems: Gregory Bateson as precursor of biosemi otics (pp. 77-92). London: Springer.
Jacobson, N. S., & Gurman, A. S. (1986). Clinical hand
book of couple therapy. New York: Guilford.
Lemaire, J. (1988). Du je au nous, ou du nous au je? Dia
logue Recherches Cliniques et Sociologiques sur le Couple et la Famille, 4(102), 72-79.
Leslie, G. R. (1964). Conjoint therapy in marriage coun- seling. Journal of Marriage and the Family, 26, 65-71. Maciel, S. F. M., & Santos, E. M. (2010). Como enfrenta- mos o futuro: Linguagem, cognição corporificada e ação humana. Ciências & Cognição, 15(1), 211-216.
Manus, G. I. (1966). Marriage counseling: A technique in search of a theory. Journal of Marriage and the Family, 28, 449-453.
Martin, P. A. (1965). Treatment of marital disharmony by collaborative therapy. In B. L. Greene (Org.), The psycho
therapies of marital disharmony. New York: The Free Press.
Maturana, H., & Varela, F. (1987). The tree of knowledge:
The biological roots of human understanding. Boston: New
Science Library.
Mittelman, B. (1948). The concurrent analysis of married couples. Psychiatric Quarterly, 17, 182-197.
Morin, E. (1996). Problemas de uma epistemologia com
complexidade. Lisboa: Europa América.
Nadelson, C. C. (1978). Marital therapy from a psycho- analytic perspective. In T. Paolino, & B. McCrady (Orgs.),
Marriage and marital therapy (pp. 89-164). New York:
Brunner/Mazel.
Nichols, M. P., & Schwartz, R. C. (1998). Family therapy:
Concepts and methods. Boston: Allyn and Bacon.
Oberndorf, C. P. (1931). Psychoanalysis of married couples. Presented at the 87° Congress of the American Psychiatric Association, Toronto.
Oberndorf, C. P. (1938). Psychoanalysis of married cou- ples. Psychoanalytic Review, 25, 453-475.
Olson, D. H., Russell, R. C., & Sprenkle, D. H. (1980). Marital and family therapy: A decade review. Journal of
Marriage and Family, 42, 973-992.
Palazzoli, M. S. (1987). Paradoxo e contraparadoxo. São Paulo: Cultrix. (Original em italiano).
Paul, N. (1969). The role of mourning and empathy in conjoint marital therapy. In G. Zuk, & I. Boszormenyi- -Nagy (Orgs.), Family therapy and disturbed families (pp.186-205). Palo Alto: Science and Behavior Books. Peirce, C. S. (1994). Collected papers (Vols. I – V). Cam- brige: Harvard University.
Pinto, J. (1995). Um, dois, três da semiótica. Belo Hori- zonte: UFMG.
Ponciano, E. L. T., & Féres -Carneiro, T. (2006). Terapia de família no Brasil: Uma visão panorâmica. Psicologia:
Reflexão e Crítica, 19(2), 252-260.
Ruffiot, A. (1981). Thérapie familiale psychanalytique. Paris: Dunod, 1981.
Sager, C. J. (1966). The development of marriage therapy: An historical review. American Journal of Orthopsychiatry,
36, 458-467.
Sager, C. J. (1967a). The conjoint session in marriage therapy. American Journal of Psychoanalysis, 27, 139-146. Sager, C. J. (1967b). Transference in conjoint treatment of married couples. Archives of General Psychiatry, 16, 185- 193.
Sager, C. J. (1976). Marriage contracts and couple therapy. New York: Brunner/Mazel.
Sager, C. J. (1981). Couples therapy and marriage contracts. In A. S. Gurman, & D. P. Kniskern (Orgs.), Handbook of
family therapy (pp. 85-130). New York: Brunner/Mazel.
Sander, F. M. (1979). Individual and family therapy:
Toward anintegration. New York: Jason Aronson.
Scharff, D. E., & Scharff, J. S. (1991). Object relation couple
therapy. Northvale: Aronson.
Scharff, D. E., & Scharff, J. S. (2007). Terapia psicodinâ- mica de casais. In: G. O. Gabbard, J. S. Beck, & J. Holmes (Orgs.), Compêndio de psicoterapia de Oxford. Porto Ale- gre: Artmed.
Sholevar, G. P. (2003). Family and a couple therapy. Arling- ton: American Psychiatric Publishing.
Siegel, J. (1992). Repairing intimacy: An object relations
approach to couples therapy. Northvale: Jason Aronson.
Skynner, A. C. (1980). Recent developments in marital therapy. Journal of Family Therapy, 2, 271-296.
Snyder, D. K., Castellani, A. M., & Whisman, M. A. (2006). Current status and future directions in couple therapy. Annual. Review of Psychology, 57, 317-44.
Solomon, M. F. (1989). Narcissism and intimacy. New York: W.W. Norton.
Von Bertalanfy, L. (1977). Teoria geral dos sistemas. Petró- polis: Vozes. (Original em ingles publicado em 1968). Watson, A. S. (1963). The conjoint psychotherapy of mar- ried partners. American Journal of Orthopsychiatry, 33, 912-922.
Watzlawick, P., Beavin, J., & Weakland, J. (1981). Pragmá
tica da comunicação humana. São Paulo: Cultrix.
Wilber, K. (2008). A visão integral: Uma introdução à
revolucionária abordagem integral da vida, de Deus, do universo e de tudo mais. São Paulo: Cultrix.
Willi, J. (1982). Couples in collusion. Claremont: Hunter House.
Noite de sábado. Recebo o convite para jantar com uma família amiga: Talita e Nílson, casa- dos há pouco mais de duas décadas. À mesa também estão os dois filhos do casal (é neces- sário que se diga do casal para os objetivos do capítulo), Cleison, 21 anos, que estuda na es- cola militar, e Cássia, 18 anos, que estuda me- dicina. Ao lado da mesa, também está Lili, 11 meses, que faz parte da família como “filhinha mais nova”, a cachorra. Durante o jantar, Tali- ta tece o seguinte comentário:
– Se eu não insistisse, ele (referindo -se ao filho), ficaria mais um final de semana sem aparecer.
– Eh, mãe, que pegação de pé, dá um tempo. Eu não tô aqui?
O pai, até então calado, também se ma- nifesta:
– Mas ela não é muito diferente; aposto que, se não precisasse de dinheiro, não estaria aqui.
– Pai, que injustiça, eu tava aqui há duas se- manas atrás – responde a filha.
Todos rimos e voltamos a nos concen- trar na comida... felizes, afinal, a família estava reunida...
Ao receber o convite para escrever um capítulo neste livro sobre família, em especial sobre a família do futuro, passei semanas re- fletindo sobre os temas que exigiam minhas reflexões para compor tal capítulo. Primeiro, levei dias tentando delimitar o que quero es- crever sobre família e, depois, refletindo sobre que futuro quero dialogar, ou mesmo se no futuro haverá família, ou se a família se fará presente no futuro. Parecia estar correndo em círculos, como um cachorro atrás do próprio rabo (algumas pessoas podem não perceber a ironia da figura de linguagem), mas o fato é que falar sobre família e futuro, ou o futuro da família, parece -me redundante, pois não há como imaginarmos um futuro sem família.
conTExTuAlIzAndo A
FAmílIA conTEmPoRânEA
Quando Enriquez (Levi et al., 2001, p. 27) atesta que ficou irritado com o sucesso das teses sobre a “morte do sujeito”, pareceu -me também assustador imaginar a história como processo sem sujeito. Por certo, o tempo que vivemos na sociedade contemporânea, que considero pós -moderna (Anderson, 1998; Ea- gleton, 1996; Lion, 1994; Lyotard, 1979; Con- nor, 1989), tem feito muito para que o homem