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Entrevista familiar: técnicas de escuta e investigação

No documento Psicologia de Família.pdf (páginas 173-177)

Terezinha Féres ‑Carneiro Orestes Diniz Neto

A entrevista psicológi‑ ca é a técnica mais an‑ tiga e a mais valiosa no contexto de investiga‑ ção, avaliação e inter‑ venção clínica.

A entrevista clínica é o ato mais complexo da práxis psicológica, no qual praticamente to‑ da a atividade clínica ocorre. O ato clínico psicológico é, portan‑ to, de enorme comple‑ xidade, pois é o resul‑ tado da ação em diver‑ sos contextos teóricos psicológicos, sociais, éticos, estéticos, políti‑ cos e filosóficos.

mais amplas, como psicologia jurídica, esco- lar, empresarial, militar, hospitalar e saúde da família, entre outras (Sholevar e Schwoeri, 2007; Gottman, Gottman e Atkins, 2011).

Certamente foi a abordagem psicodinâ- mica que primeiro aplicou e desenvolveu o olhar clínico psicológico em uma situação de entrevista. Autores como, Freud (1968), Jung (1972) e Adler (1961), cada qual seguindo pressupostos e orientações teóricas diferentes, apontaram para a importância do ambiente e do relacionamento familiar para a constitui- ção psicológica do individuo. Freud, prova- velmente o mais influente teórico clínico, já assinalava em 1905 que devemos prestar aten- ção às condições humanas e sociais dos enfer- mos tanto quanto aos dados psicopatológicos e somáticos, ressaltando que o interesse do psicanalista deve dirigir -se, sobretudo, para as relações familiares dos pacientes. De fato, Freud (1968) faz referência à importância da família em vários momentos de sua obra. Refere -se, por exemplo, às influências exter- nas e familiares do paciente que poderiam ex- plicar muitos dos casos de fracasso terapêuti- co. Notava que, quando a neurose rela cio- nava -se a conflitos entre os membros de uma família, muitas vezes os membros saudáveis preferiam não prejudicar os próprios interes- ses a colaborar com a recuperação dos mem- bros enfermos. Porém, apesar de suas obser- vações clínicas argutas sobre a influência fa- miliar na produção de quadros clínicos, Freud nunca desenvolveu uma teoria ou técnicas de tratamento familiar que abordassem seus es- forços no tratamento individual.

Outras áreas do conhecimento, como a antropologia, desde o final do século XIX também ressaltavam a importância da família em suas múltiplas configurações, como nú- cleo estruturador da sociedade, foco de transmissão da cultura e fundamento para o processo de humanização. Os estudos antro- pológicos interculturais revelaram a impossi- bilidade de existir qualquer organização social carente da estrutura familiar. Portanto, a uni- dade familiar e conjugal é conceituada como o primeiro nível lógico de análise da relação entre a construção do sujeito e o meio socio-

cultural. Assim, métodos de avaliação e entre- vista familiar foram desenvolvidos à medida que diversas teorias sobre a família surgiram em diferentes paradigmas psicológicos, em- bora todos se fundamentem na hipótese da influência dos grupos sociais na construção do sujeito e no agenciamento de seu compor- tamento. Contudo, dada a suposição intrínse- ca que dominou o olhar da psicologia desde o seu surgimento até quase metade do século XX, de que a situação clínica seria o encontro individual por excelência, a maior parte das técnicas foi desenvolvida para a entrevista in- dividual.

Mesmo em situações que envolviam questões eminentemente interpessoais, como no aconselhamento matrimonial ou familiar, ainda assim prevalecia o encontro individual como estratégia clínica e investigativa (Gott- man e Notarius, 2002), apesar de alguns pio- neiros, como Akerman (1938), defenderem a possibilidade e a utilidade de abordar a famí- lia como totalidade de um modo produtivo. Apenas com o desenvolvimento de novas abordagens psicológicas que desafiaram a visão reducionista ao individual é que foi pos- sível utilizar o estudo e o uso amplo de técni- cas de entrevista e avaliação familiar na clínica psicológica.

EsBoço hIsTóRIco

O desenvolvimento de técnicas de entrevista e avaliação familiar foi influenciado por aspec- tos epistemológicos,

metodológicos e pa- radigmáticos, tor- nando a história do desenvolvimento das ideias mais complexa e entre laçada. É pos- sível observar, no en- tanto, etapas de desen- volvimento marcadas pelo surgimento de novas metodologias, abordagens e técni- cas que se sobrepu-

é possível observar, no entanto, etapas de desenvolvimento mar‑ cadas pelo surgimen‑ to de novas metodo‑ logias, abordagens e técnicas que se so‑ brepunham, mesclan‑ do ‑se ou coexistindo com outras aborda‑ gens, inaugurando no‑ vos modos de atuar na investigação psicoló‑ gica e prática clínica.

nham, mesclan do -se ou coexistindo com ou- tras abordagens, inaugurando novos modos de atuar na investi gação psicológica e prática clínica (Féres -Carneiro e Diniz -Neto, 2008). Resumidamente:

• A primeira etapa começa, no final do sécu- lo XIX e início do século XX, com os pri- meiros estudos sobre família, nos quais te- orias gerais pouco sistemáticas, de orientação religiosa ou sociológica, orien- tavam a abordagem teórica e técnica. O método de entrevista era empírico e pre- tendia descrever relações gerais. A entre- vista individual era predominante. Aspec- tos de disfunção na família eram atribuídos à atuação disfuncional individual de cunho moral.

• A segunda etapa é marcada pelo uso de conceitos e ideias da abordagem psicanalí- tica, mas apenas em entrevistas individu- ais. Surgem estudos com testes psicológi- cos de personalidade e família, mas os constructos são inteiramente centrados no sujeito visto como predominantemente monádico. A psicopatologia é individual, derivada de aspectos intrapsíquicos, con- textualizada na família e produtora de dis- funções familiares. A fantasia inconsciente tem prevalência sobre as relações familia- res.

• A terceira etapa ocorre no final da década de 1930, quando pioneiros começam relu- tantemente a realizar entrevistas conjuntas com membros da família, porém orienta- dos por conceitos aplicáveis à psicologia individual. A técnica de entrevista indivi- dual é usada concomitantemente com dois ou mais membros da família. A psicopato- logia individual combina -se para criar um quadro disfuncional, chamado de Folie à deux. Os aspectos intrapsíquicos são pre- valentes na etiologia.

• A quarta etapa, nas décadas de 1940 e 1950, assiste ao desenvolvimento de conceitos referentes à família ou ao casal como um todo, com características específicas e irre- dutíveis à psicologia individual. Na psica-

nálise, as aplicações da teoria de relações de objetos à família e casais orientam novas teorias e técnicas. Surgem os primeiros es- tudos sobre família e esquizofrenia. A fa- mília torna -se objeto de estudo, assim como a psicopatologia ou a disfunção é vista como sintoma do aparelho psíquico familiar ou do sistema comunicacional fa- miliar.

• A quinta etapa, nas décadas de 1950 e 1960, adota a abordagem sistêmica à família, in- fluenciada pela primeira cibernética, que desloca o interesse do intrapsíquico para o comunicacional, do individual para o sis- tema familiar. Escolas de pensamento sis- têmico, como transgeracional, estrutural, solução de problemas e estratégica, são exemplos clássicos desse período criativo em termos de técnicas de entrevista e ava- liação. Surgem as técnicas de entrevista com equipe de observação e também aten- dimentos em terapia conjunta. Os proces- sos homeostáticos são centrais para as for- mulações teóricas do diagnóstico e da intervenção. Nesse caso, a disfunção é ob- servada como funcional e homeostática no contexto mais amplo da família.

• A sexta etapa, no fim da década de 1960 e início da década de 1970, inclui outras abordagens, como o behaviorismo e o hu- manismo, que desenvolvem teorias e pro- postas para o tratamento de famílias, tor- nando complexo o campo com uma diversificação de escolas. Métodos de en- trevista e abordagem da família são pro- postos, inspirados em técnicas de avalia- ção e entrevista individual dessas escolas de pensamento psicológico. O campo de estudo da psicologia da família afirma -se como campo de pesquisa psicossocial bá- sica independente, embora relacionada com a terapia de família. Outras teorias psicopatológicas emergem, derivadas das teorias psicopatológicas de outras escolas. Padrões recíprocos de condicionamento são estudados como base do pensamento disfuncional, assim como processos cogni- tivos.

• A sétima etapa, no final da década de 1970 e início da década de 1980, presencia o surgimento da segunda cibernética, que desloca o foco do objeto -sistema para o sujeito -sistema, revelando a complexidade da construção do objeto em seu entrelaça- mento com o olhar do clínico e as técnicas de estudo. A escola de Milão é paradigmá- tica desse período, com a proposta de mo- delo de entrevista com grupo de supervi- são que atua durante o atendimento. O foco desloca -se dos processos homeostáti- cos para os processos de auto -organização. A disfunção é compreendida como parte do funcionamento familiar auto -orga ni- zado.

• A oitava etapa, na década de 1980, é mar- cada pelas críticas feministas, pós -moder- nas e multiculturais, que revelam os limi- tes das escolas de terapia de família, apontando suas técnicas como agentes re- petidores de processos de construção so- cial, marcadas pelo domínio ideológico sobre a mulher, a cultura e a raça. São pro- postos novos procedimentos e modifica- ção nas técnicas de entrevistas, e os pa- drões de avaliação são questionados, revelando vieses ideológicos. As escolas construtivistas e construcionistas sociais propõem técnicas de entrevista que desa- fiam as distinções clássicas entre entrevis- tador e entrevistado, causando rupturas nas fronteiras e integrando o sistema tera- pêutico por meio do diálogo. A disfunção familiar é relacionada a processos de ge- renciamento de domínio de classe, raça, gênero e cultural.

• A nona etapa, no final década de 1980 e início da de 1990, abrange os estudos sobre eficácia terapêutica que revelam padrões consistentes de resultados positivos para diversas escolas de terapia de família. Sur- gem modelos articulados e integrados, renovando -se o diálogo com outras for- mas de conhecimento, como filosofia, psi- copatologia, psiquiatria, neurociência, se- xologia e terapia breve. Modelo s sistêmicos matemáticos não lineares são desenvolvi-

dos e aplicados ao estudo de famílias e ca- sais, resultando em modelos preditivos de dissolução e manutenção conjugal que, quando utilizados com técnicas de entre- vista e avaliação apropriadas, podem che- gar a mais de 98% de acerto (Gottman, 1998). A disfuncionalidade familiar é abor- dada como fenômeno complexo que ultra- passa a possibilidade de redução a teorias simples.

• A décima etapa, que vai da década de 1990 à década de 2000, tem sido caracterizada por uma diversidade de olhares e diálogos sobre a atuação da psicologia da família. Além disso, tem -se expandido a atuação da terapia de família a outros contextos, como psicologia hospitalar, saúde da famí- lia e psicologia do trabalho, entre outros.

REFlExõEs EPIsTEmológIcAs

E mETodológIcAs soBRE

A dIVERsIdAdE

Como compreender então a diversidade de olhares sobre a ci- ência e a técnica da entrevista familiar? A entrevista familiar, assim como a entre- vista indivi dual, é uma atividade com-

plexa que assume uma diversidade de funções nas quais são empregadas diferentes técnicas. De fato, todos os aspectos do enquadre dos participantes no diálogo filosófico, teórico, metodológico, ético, estético e antropológico refletem -se no encontro da entrevista psicoló- gica familiar. DeBruyne, Hurmam e Deschou- theete (1977) propõem um modelo quadri- polar dinâmico para a metodologia em ciências sociais que pode ser transposto para a complexidade do campo da entrevista clínica e da avaliação familiar e suas técnicas (Diniz- -Neto, 2005). Nesse modelo, cada polo relaciona -se com os demais em um processo dinâmico, revelador da tensão conceitual e do

A entrevista familiar, as‑ sim como a entrevista individual, é uma ativi‑ dade complexa que as‑ sume uma diversidade de funções nas quais são empregadas dife‑ rentes técnicas.

caráter autorreferente presente em cada abor- dagem:

Polo teórico Polo epistemológico

Entrevista clínica familiar

Polo metodológico Polo técnico O polo epistemológico fundamenta, orienta e valida as práticas clínicas, fornecen- do enquadres relacionados a visões antropo- lógicas, filosóficas, ontológicas, éticas e estéti- cas. Diversas orientações são possíveis nesse polo, tais como as abordagens fenomenológi- ca, empírica existencialista, estruturalista, dia- lética e construtivista. Assim, o polo episte- mológico fundamenta filosoficamente o olhar que constrói teorias. Mahoney (1998) observa que, dos 190 autores mais citados em livros clássicos de história da psicologia, 40 são filó- sofos.

O polo teórico sempre reflete uma base filosófica e procura descrever aspectos ligados ao objeto de estudo orientado por esse olhar. No caso de entrevistas clínicas e técnicas de avaliação familiar, as teorias organizam -se ao redor de questões como: o que é a família? Como surge ou se desenvolve? Como mantém sua estrutura, sua dinâmica e seus processos? Como se torna saudável ou disfuncional? Como abordá -la tecnicamente e nela intervir? É importante salientar que a maneira como cada uma dessas questões pode ser feita é in- fluenciada pela visão filosófica anterior à pró- pria pergunta. Assim, talvez a grande dificul- dade de se estabelecer um diálogo enriquecedor entre as várias escolas de terapia de família deva -se principalmente à confusão nos níveis de observação, entre elementos primários e constructos teóricos. As teorias fazem referên- cia aos constructos, muitas vezes, como se fos- sem dados primários, perdendo graus de ob- jetivação e tornando difícil o consenso.

O polo metodológico refere -se ao uso de métodos de investigação orientados por procedimentos psicológicos científicos que, por sua vez, estarão fundamentados em qua- dros de análise que permitirão um espaço de abordagem dos objetos teóricos de sua práti-

ca. De fato, o que se avalia nunca é a família em si, mas a possibilidade e o limite de uma leitura do clínico sobre uma realidade com- plexa no âmbito de determinada metodolo- gia. A existência de inúmeros métodos forne- ce uma ampla gama de opções para o psi cólogo em sua prática. O método clínico pode seguir uma orientação fenomenológica, psicanalíti- ca, estrutural, sistêmica ou construtivista. Essa riqueza permite a utilização de esquemas va- riados que devem estar em consonância teóri- ca e epistemológica com uma prática clínica daí decorrente.

Por outro lado, os diferentes métodos implicam, por sua vez, enquadramentos téc- nicos diferentes, que propiciarão uma gama de interações multivariadas, o que poderia produzir resultados “anômalos” e não obser- vados em outra abordagem. E estes poderão ser desconsiderados, ou considerados espú- rios e pouco significativos, por membros de outra escola (Diniz -Neto, 1997).

Portanto, o universo da técnica de en- trevista enriquece -se de diferentes fontes e, em sua utilização, podemos observar a gran- de produtividade do campo. As técnicas têm significado apenas quando compreendidas no enquadre de sua produção, e seus resulta- dos devem ser avaliados em função da teoria que as sustenta. Esses vários polos não se configuram como aspectos isolados, mas em uma relação dinâmica, constituindo o todo de cada abordagem. É dessa dinâmica que emergem várias abordagens tanto de avalia- ção e de entrevista familiar quanto de pro- postas terapêuticas, com seus aspectos co- muns e específicos.

consTRuIndo TEoRIAs

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