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TERAPIA PsIcAnAlíTIcA dE cAsAIs: do sujEITo

No documento Psicologia de Família.pdf (páginas 60-64)

à RElAção conjugAl

Para Gurman e Fraenkel (2002), as contribui- ções do pensamento psicanalítico à psicotera- pia de casal podem ser divididas em três perí- odos, segundo as tendências metodológicas e teóricas e as contribuições técnicas. O primei- ro período vai da década de 1930 até a década de 1960, sendo caracterizado por experimen- tações e aplicação dos princípios e técnicas psicanalíticas tradicionais à situação de trata- mento do casal. O segundo período, que vai da metade da década de 1960 até a década de 1980, marca um arrefecimento do interesse pela aplicação da psicanálise à situação conju- gal. Isso se deve, por um lado, às críticas do próprio movimento psicanalítico ao uso da psicanálise em situações não tradicionais e, por outro, ao interesse despertado pelo movi- mento de terapia sistêmica de família, que formulou sérias críticas à abordagem psicana- lítica, considerando -a excessivamente perso- nalista e voltada ao intrapsíquico. O terceiro período ocorreu a partir da década de 1980 quando podemos notar o surgimento de um interesse renovado na abordagem psicanalíti-

O método batesoniano de “dupla descrição” parece produtivo, pois permite a diferencia‑ ção cuidadosa de dife‑ rentes conhecimentos obtidos por diferentes métodos e a emergên‑ cia de padrões úteis de hipotetização de suas relações como um no‑ vo conhecimento emer‑ gente.

ca de casais, caracterizando um novo período que se estende até os dias de hoje.

Assim, importantes contribuições foram feitas pelos pioneiros em suas tentativas de responder à demanda crescente de atendi- mento por parte dos casais. Nos Estados Uni- dos, no início do século XX, apenas psiquia- tras eram admitidos como psicanalistas. Então, um grupo de profissionais interessados em responder à demanda das dificuldades conjugais, muitas vezes endereçadas por con- selheiros matrimoniais, e insatisfeitos com os resultados do método analítico individual tra- dicional, iniciou uma série de experimenta- ções e modificações na técnica de um modo um pouco ambivalente. Com isso, interven- ções psicanalíticas com o casal desenvolveram- -se de forma autônoma em relação ao aconse- lhamento matrimonial. A questão era: como tratar casais com uma técnica desenvolvida e voltada para o indivíduo? Ou como modificar a técnica analítica adaptando -a para o contex- to conjugal, mantendo -se orientados pelos princípios da psicanálise? Além dessas ques- tões, várias outras eram consideradas, como a seleção do parceiro na formação do casal e os fatores que levavam à manutenção das rela- ções conjugais, mesmo em situações de extre- mo estresse, que já despertavam o interesse de psicanalistas nesse período.

A psicanálise de casais parece ter sido iniciada por Oberndorf, que apresentou em 1931 um trabalho descrevendo a relação das neuroses individuais na formação do sintoma do casal. Anos depois, em 1938, Oberndorf publicou outro artigo no qual descrevia um método de psicanálise conjugal consecutiva, na qual a análise de um dos esposos começava quando terminava a do outro. O objetivo era solucionar o impasse conjugal pela análise das neuroses individuais. Mittelman (1948) pro- pôs o tratamento conjugal como um processo de análise individual concomitante de ambos os esposos pelo mesmo analista. Críticas e res- trições foram dirigidas a essas abordagens, pois obviamente contrariavam o método psi- canalítico tradicional, no qual qualquer con- tato com qualquer membro da família deveria

ser evitado, sob pena de “contaminação” da transferência (Greene, 1965).

Mittelman (1948) realizou, segundo Sager (1966), a primeira sessão de casal con- junta relatada na abordagem psicanalítica, tendo sido motivado por histórias dos casais que não combinavam em aspectos significati- vos. Na época, essa intervenção foi considera- da teoricamente incorreta para a abordagem psicanalítica e politicamente incorreta para o período histórico social, mas revela a hipótese que guiava a intervenção psicanalítica com casais: era tarefa do analista destacar e corrigir as percepções distorcidas pelas neuroses de ambos os cônjuges, permitindo uma relação descontaminada, liberta da irracionalidade neurótica. Dessa forma, caberia ao analista a difícil posição de decidir ou auxiliar na deci- são do que era “mais racional”. O próprio Mit- telman (1948) expressava ambivalência quan- to a sessões conjuntas e acreditava que esse modelo só deveria ser usado em 20% das situ- ações, ou seja, apenas em casos específicos cuja irracionalidade neurótica tornara -se ex- cessiva. Os demais casos de terapia de casal se- riam mais beneficiados com análises em sepa- rado, com diferentes analistas.

Durante o final da década de 1950 e iní- cio da década de 1960, surgiram outras pro- postas orientadas pelo pensamento psicanalí- tico. Porém, como destaca Sager (1966), “essas contribuições não evidenciavam nenhum de- senvolvimento significativo da teoria” (p. 460). Diferentes formatos para a psicoterapia de casal foram propostos, como a “terapia co- laborativa” de Martin (1965), na qual dois analistas atendiam o casal, comunicando -se entre si sobre os processos em andamento com o objetivo de manter o casamento. Foram propostas sessões conjuntas, combinadas com sessões individuais e de grupo, com vários propósitos e combinações (Greene, 1965). Nesses modelos de tratamento psicanalítico conjunto do casal, a visão individual prevale- cia, embora desafiando a adesão aos métodos clássicos, como a livre associação e a análise dos sonhos. A análise da transferência, pedra de toque do método psicanalítico, continuou

como instrumento central do trabalho tera- pêutico, ampliada para incluir a transferência recíproca entre os cônjuges e a importância do “real” (Greene, 1965; Gurman e Fraenkel, 2002).

A década de 1960 assistiu a uma mu- dança ambivalente na abordagem psicanalíti- ca de casal para o predomínio de modelos que privilegiavam a realização de sessões conjun- tas. Contudo, essa transição não foi feita sem restrições. Em 1963, por exemplo, Watson re- comendava em um artigo sobre o tratamento conjunto do casal a realização prévia de duas ou três sessões de anamnese com cada um dos cônjuges, antes da realização de sessões con- juntas. O pressuposto de tal prescrição partia da suposta necessidade e possibilidade de o analista compreender o modo de conexão conjugal e de padrões neuróticos do sistema comunicativo do casal, bem como seus pa- drões de homeostase. Supunha -se que a apre- ciação por meio de uma cuidadosa avaliação dos aspectos psicodinâmicos e desenvolvi- mentais de cada um dos cônjuges, individual- mente, forneceria importantes indícios sobre o funcionamento do casal.

A abordagem psicanalítica de casal co- meçava a emergir, oferecendo hipóteses que orientaram o campo, como aponta Manus (1966): “A mais influente hipótese é a de que o conflito conjugal é baseado na interação neu- rótica dos parceiros (...) um produto da psico- patologia de um ou ambos os parceiros” (p. 449). Em um artigo clássico dos anos de 1960, Leslie (1964) propõe que a técnica central do trabalho com casais era a identificação de dis- torções nas percepções mútuas dos parceiros sobre si e sobre o outro, que ocorriam projeti- vamente, e cujas manifestações tornavam -se evidentes na transferência e na contratransfe- rência com o psicanalista, e sua correção, per- mitindo a plena manifestação do conflito na sessão e sua direta alteração.

Mesmo com o aumento e a prevalência de métodos de abordagem conjunta do casal, a visão teórica e as técnicas terapêuticas psica- naliticamente orientadas permaneceram sem maiores mudanças. A interpretação das defe- sas era a maior ênfase e passou a incluir as de-

fesas do casal além das individuais. O uso de técnicas de associação livre passou a ser reali- zado conjuntamente pelo casal, assim como a análise dos sonhos, que agora incluía, além das associações individuais, as associações do cônjuge (Gurman e Fraenkel, 2002; Sager, 1967a). Sendo um dos mais influentes tera- peutas de casal do período, Sager (1967b) ilus- tra a ambivalência entre os métodos deriva- dos da psicanálise individual e as adaptações ao casal: “Eu não estou envolvido primeira- mente em tratar desarmonias conjugais, que são um sintoma, mas em tratar os dois indiví- duos no casamento” (p. 185). Portanto, ainda se mantém ligado à perspectiva tradicional psicanalítica, com forte ênfase nos processos de transações transferênciais trianguladas e na atenção aos elementos edípicos.

As ambivalências em relação à técnica eram reflexos de uma dificuldade teórica ainda mais profunda para os psicanalistas do período, interessados em terapia de casal: qual o lugar central daquilo que tradicionalmente seria o caráter distintivo da psicanálise, ou seja, a análise da transferência em um proce- dimento conjugal. Uma década mais tarde, ao avaliar a produção do período, Skynner (1980), influenciado pela escola das relações objetais, afirma que a abordagem psicodinâ- mica parecia ter perdido o seu caminho na identificação das técnicas indutoras de mu- dança do casal ao focar de modo impróprio o conceito de transferência e as técnicas inter- pretativas. Retrospectivamente, concluiu que um modo mais produtivo de tratar as ques- tões da transferência na abordagem psicanalí- tica de casal seria considerar que os conflitos inconscientes estavam presentes e totalmente desenvolvidos em padrões projetivos. E que eles poderiam ser mais acessíveis e trabalha- dos diretamente na relação projetiva do casal do que por meio de métodos indiretos, como a interpretação da transferência.

No final da década de 1960, uma saída simples para o impasse teórico e técnico, liga- do a essas questões, levou a uma diminuição temporária do interesse pela abordagem psi- canalítica. Esta sofreu, ainda na década de 1960, fortes críticas das escolas de terapia de

família, que começavam a expandir o seu mo- vimento. Conforme Broderick e Schrader (1991), o artigo de Sager (1966) sobre uma re- visão histórica do desenvolvimento da psico- terapia de casal de orientação psicanalítica “parece ser o verdadeiro zênite de seu desen- volvimento independente” (p. 17) no período. A ausência de desenvolvimentos teóricos e técnicos próprios e as fortes críticas, tanto da psicanálise mais ortodoxa quanto da aborda- gem da terapia de família, levaram a um perí- odo de declínio do interesse pela terapia psi- canalítica de casais. Apenas na década de 1980, com importantes mudanças teóricas e novas metodologias, surgiu um novo interesse na aplicação do enfoque psicanalítico à clínica da conjugalidade.

Gurman e Fraenkel (2002) consideram que o interesse na abordagem psicodinâmica reemergiu na década de 1980, facilitado por três importantes eventos. O primeiro ocor- reu na medida em que pesquisadores de tera- pia de casal contribuíram significativamente para o refinamento de técnicas e para a cons- trução de manuais de tratamento que orien- tariam a prática terapêutica. Isso permitiu seu uso em estudos de resultados de eficácia. O segundo ocorreu em função do surgimen- to de um grande número de modelos de te- rapia integrativos com elementos psicodinâ- micos. O terceiro, ocorrido na década de 1980, está relacionado à pesquisa de vários clínicos que, trabalhando independentemen- te, publicaram estudos nos quais procuram desenvolver e explorar teorias fundamenta- das nas relações objetais e técnicas para a te- rapia de casal, refinando intervenções e es- tratégias (Bader e Pearson, 1988; Nadelson, 1978; Scharff e Scharff, 1991, 2007; Siegel, 1992; Solomon, 1989; Willi, 1982). Outros autores, como Ruffiot (1981), Eiguer (1984) e Lemaire (1988), desenvolveram, também nesse período, a partir da psicanálise de grupo, modelos psicanalíticos de atendimen- to a casais. Esses estudos objetivaram facili- tar a individuação, modificar as defesas diá- dicas e individuais, tornando -as mais flexíveis, e aumentar as capacidades dos membros do casal de suportar e apoiar as di-

ficuldades emocionais do parceiro (Féres- -Carneiro, 1996; Gurman e Fraenkel, 2002).

Todos os méto- dos de terapia psico- dinâmica de casal atribuem importân- cia central à comu- nicação inconsciente e aos processos de manutenção de rela- ções que caracteri- zam a conjugalidade.

Embora muitos desses métodos utilizem di- ferentes técnicas e intervenções, todos pare- cem estar em débito com as contribuições de Dicks (1967) sobre as relações objetais na cena conjugal. Entre os conceitos centrais dessa abordagem, podemos citar a identifi- cação projetiva, o splitting, a colusão, o hol­ ding e a contenção (Catherall, 1992). Segun- do Gurman e Fraenkel (2002), “quaisquer que sejam as explicações para o renovado in- teresse pela psicodinâmica do casal, no nas- cimento deste milênio, parece que esse inte- resse voltou contribuindo para o enriquecimento do campo” (p. 227).

Retrospectivamente, o desenvolvimen- to da prática da terapia psicodinâmica de casal evoluiu de uma abordagem de indivídu- os neuróticos em uma relação conjugal para uma abordagem psicodinâmica da relação conjugal. Pode -se afirmar que os terapeutas de casal psicodinâmicos tendem, atualmente, mesmo descrevendo suas intervenções em uma linguagem psicanalítica pura, a ser flexí- veis e ecléticos na clínica (Snyder, Castellani e Whisman, 2006). Essas mudanças teóricas e metodológicas colocaram a abordagem psi- codinâmica de casais em uma posição favorá- vel para um diálogo com outros modelos e métodos. Assim, no início do século XXI, uma nova visão sobre os métodos psicanalíti- cos de tratamento de casais surgiu com a in- tegração de contribuições das escolas de rela- ções objetais, teoria de apego e terapia sexual (Scharff e Scharff, 2007). A influência das es- colas de relações objetais contribuiu conside- ravelmente para a mudança de foco dos as- pectos intrapsíquicos puros, econômicos,

Todos os métodos de terapia psicodinâmica de casal atribuem im‑ portância central à comunicação incons‑ ciente e aos proces‑ sos de manutenção de relações que caracte‑ rizam a conjugalidade.

característicos da primeira tópica freudiana, para uma visão transicional. Essa mudança da visão dinâmica da conjugalidade, na qual o outro é sujeito desejante e objeto de desejo ao mesmo tempo, articulando -se na lingua- gem, tanto para si quanto para o outro, pare- ce mais produtiva.

Portanto, os casais são abordados como uma dinâmica psíquica na qual, através de processos de identificação projetiva e identifi- cação introjetiva, repetem padrões de relações objetais experimentados em suas famílias de origem. A escolha do par cria um processo de defesas mútuas, através do cônjuge, que ocu- pam certos papéis na relação, evitando confli- tos infantis inconscientes e realizando desejos inconscientes através do cônjuge. Assim, de- positam seus conflitos nos parceiros, evitando suas próprias dificuldades. Nesse sentido, a dinâmica dos desejos inconscientes e da rela- ção projetiva pode levar a situações de emer- gência de sintomas que refletem o conflito. Por exemplo, um casal em profunda relação simbiótica pode resolver parte de sua tensão com a entrada de um terceiro, seja através de uma infidelidade ou de um forte investimento projetivo, que cria um espaço de diferencia- ção em relação ao cônjuge/objeto persecutó- rio, ainda que de modo disfuncional. Talvez seja surpreendente para o terapeuta iniciante descobrir como o cônjuge “traído” pode, mui- tas vezes, colaborar com o caso do parceiro de forma consciente e inconsciente. A questão terapêutica é a dependência psíquica, que deve ser resolvida por diferenciação, e não apenas triangulada como no sintoma “caso extraconjugal”.

Nota -se nos diversos modelos psicodi- namicamente orientados uma mudança, ao longo de seu desenvolvimento, de focalização do indivíduo na relação conjugal para a dinâ- mica da conjugalidade. Tal mudança abre es- paço para o diálogo produtivo com a perspec- tiva sistêmica que, por sua vez, também modificou sua posição teórica e epistemológi- ca ao longo do tempo, à medida que tomava o casal como foco de tratamento (Diniz -Neto, 2005).

TERAPIA dE FAmílIA sIsTêmIcA:

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