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FAmílIA E VIdA nA RuA

No documento Psicologia de Família.pdf (páginas 159-164)

Como bem apontaram Paludo e Koller (2008), “toda criança tem família: criança em situa- ção de rua também”. No entanto, a escassez de recursos materiais e afetivos pode ter tido como consequência a saída da criança ou do adolescente para o contexto da rua, expres- sando o resultado negativo e imediato dessas condições. A vinculação com a família tem sido mencionada como um dos principais fa- tores a serem considerados na descrição de crianças e adolescentes em situação de rua.

Este, entre outros aspectos, tem aparecido como indicador da relação que crianças e ado- lescentes estabelecem com a rua. Desde o final da década de 1990, ter ou não vínculos fami- liares, viver ou não com a família, têm sido usados como variáveis para descrever a dife- rença entre “crianças de rua” e “crianças na rua”.

O primeiro grupo (“de rua”), caracteri- zado por aqueles que não têm mais vínculo familiar estável, é o de crianças que abando- naram a família ou foram abandonados por ela e passam a maior parte do tempo nas ruas. O segundo grupo (“na rua”) é composto por crianças e adolescentes que mantêm laços fa- miliares, que utilizam o espaço da rua como lugar de lazer e trabalho, visando obter seu sustento e auxiliar a família, mas retornam diariamente para casa (Morais et al., 2010).

Tais definições estão superadas, pois li- mitar com precisão esses vínculos e a utiliza- ção do espaço da rua é praticamente impossí- vel. A maioria das crianças e dos adolescentes encontrada na rua não é abandonada, pois em geral mantêm algum ponto de referência com relação ao grupo familiar. Recentemente, a vinculação com a família foi associada a ou- tros fatores que podem definir a criança “em situação de rua”. Apontam -se ainda a ativida- de exercida, a aparência, o local em que se en- contra a criança ou o adolescente e a ausência de um adulto responsável junto deles, assim como o horário de permanência na rua (Mo- rais et al., 2010).

Embora crianças e adolescentes que uti- lizam o contexto da rua como espaço de mo- radia e socialização tenham família, as crenças que permeiam a sociedade parecem indicar o contrário. Como afirmam Paludo e Koller (2008, p. 44), “se as crianças moram na rua é porque não têm família, uma vez que, se tives- sem, naturalmente estariam em casa”. Vários estudos, porém, reiteram e confirmam a exis- tência de vínculos familiares de crianças e adolescentes em situação de rua. Eles fazem referência a adultos responsáveis e estabele- cem contatos, efetivos ou esporádicos, com essas pessoas que consideram parte de sua fa- mília. No entanto, conforme enfatizam os au-

tores, esses vínculos devem ser analisados de forma dinâmica e contínua, devido às fre- quentes oscilações no grau e na configuração. Em um estudo com famílias de crianças em situação de rua, a necessidade de busca- rem na rua sustento para si e para suas famí- lias ficou bastante evidente, provocando o seu progressivo afastamento de seus lugares de moradia e a inserção na vida da rua (Carpena e Koller, 1999). Os resultados revelam as difi- culdades de relacionamento entre essas famí- lias e as suas crianças, com exposição a vários fatores de risco no desenvolvimento de todos os seus componentes. Contudo, também apre- sentaram expectativas para o futuro no âmbi- to dessa realidade. A situação de pobreza torna a todos vulneráveis, mas mesmo em tais con- dições a possibilidade de superação pode ser contemplada.

VulnERABIlIdAdE E

REsIlIêncIA FAmIlIAR

A resiliência pode ser compreendida como um fenômeno individual ou grupal. Masten (no prelo) define resiliência como uma “capa- cidade de um sistema dinâmico para resistir ou se recuperar de importantes desafios que ameaçam a sua estabilidade, viabilidade ou desenvolvimento.” É uma característica que não se aplica apenas a indivíduos, mas tam- bém a sistemas ecológicos, como grupos e co- munidades, famílias incluídas. Todavia, uma definição recente de Ungar (no prelo) acres- centa detalhes a tal definição: “No contexto da exposição à adversidade significativa, a resili- ência consiste na capacidade dos indivíduos para navegarem o seu caminho em busca de recursos psicológicos, sociais, culturais e ma- teriais que sustentem o seu bem -estar e da sua capacidade individual e coletiva, para nego- ciarem esses recursos de forma culturalmente significativa”.

Nessa perspectiva, Trzesniak, Libório e Koller (no prelo) salientam a importância de se estabelecer dimensões críticas para o en- tendimento do constructo resiliência, ou seja, como podem ser definidas as condições sine

qua non para que haja ou não a sua detecção. O mesmo procedimento vale para o construc- to vulnerabilidade. Para chegar a eles, tais constructos devem ser comparados com ou- tros que apresentem quase todas as suas ca- racterísticas, mas não pertençam ao sistema a ser examinado (por exemplo, indivíduos, gru- pos de pares, família, comunidade, cultura). Como uma construção, a resiliência teria seis dimensões fundamentais:

1. trata -se de um sistema que, devido a 2. um conjunto não exclusivo de recursos in-

ternos a si próprio, é capaz de

3. funcionar normalmente, apesar de expos- to a um

4. contexto 5. de estresse 6. significativo.

O conceito de vulnerabilidade seria apli- cado a um sistema que contraria o ponto 3, mesmo na presença de todos os outros, pois indica um funcionamento não adaptado. Quanto mais completa estiver a informação sobre essas dimen-

sões críticas, melhor será a definição. É sa- bido que, durante dé- cadas, a definição de resiliência tem desa- fiado pesquisadores de ciências humanas. Todos aqueles que trabalham com seres humanos estão cons- cientes de que há algum tipo de carac- terística, capacidade,

processo ou fenômeno que indica que as pes- soas podem superar os eventos estressantes e continuar seu ciclo de desenvolvimento. Isso é diferente da mera adaptação, sendo difícil identificá -lo ou medi -lo.

Walsh (2005) definiu a resiliência fami- liar como uma capacidade de seus membros que demonstram enfrentar situações adversas e, ao lidar com essas situações, tornam -se mais unidos e capazes de administrar outras situa-

Todos aqueles que tra‑ balham com seres hu‑ manos estão conscien‑ tes de que há algum tipo de característica, capa‑ cidade, processo ou fe‑ nômeno que indica que as pessoas podem su‑ perar os eventos estres‑ santes e con tinuar seu ciclo de desenvolvimen‑ to. Isso é diferente da mera adaptação, sendo difícil identificá ‑lo ou medi ‑lo.

ções. Três condições que auxiliam na promo- ção da resiliência familiar foram identificadas: a forma como estão estabelecidos os padrões de organização, os processos de comunicação e os sistemas de crenças. A análise desses “processos -chave” (Yunes, 2006) da resiliência familiar permite compreender como as famí- lias estão estruturadas e como funcionam. Na concepção sistêmica, a ideia de estrutura per- mite conhecer como estão estabelecidas as re- lações, que envolvem relações de poder (hie- rarquia e tomadas de decisão) e de interação (coesão e sentimentos de pertencimento) (De Antoni, Teodoro e Koller, 2009).

A estrutura de funcionamento pode re- velar o estado nas quais as relações são estabe- lecidas. Toda família tem uma estrutura e um funcionamento, que podem ser sofisticados, precários, organizados, caóticos, etc. O termo “famílias desestruturadas”, por exemplo, utili- zado no cotidiano de alguns profissionais, não condiz com essa concepção e deveria ser evi- tado. Por mais que na perspectiva externa a família não consiga organizar -se para enfren- tar seus problemas, todas têm em si uma es- trutura e um funcionamento. Por exemplo: o abuso de substâncias ilícitas por parte de um adolescente e, consequentemente, seu isola- mento da família e a negação ou apatia dos pais sobre o comportamento do filho sugere que a família não estabelece uma comunica- ção aberta e eficaz. Tal descrição revela sua es- trutura caótica e como seu funcionamento pode reforçar o afastamento físico e emocio- nal dos seus membros: Eles funcionam assim. Karpel (1986) salientou que está na es- trutura familiar que revela resiliência a uni- dade funcional capaz de promovê -la em cada um de seus membros. Além disso, há uma inter -relação das características individuais e a forma de criação das pessoas, consideran- do a família um potencial importante no de- senvolvimento da resiliência em seu meio. As pessoas constroem suas próprias experiên- cias, havendo evidências empíricas de rela- ções entre as características familiares e pa- rentais, o que tem sido interpretado como a influência que a família exerce sobre as con- quistas das crianças, o seu nível socioeconô-

mico e a saúde mental delas. A família não pode ser tomada como um sistema único, tendo em vista que o que afeta os seus mem- bros são os microambientes que cercam as famílias. Rutter (2007) argumenta que, fren- te a uma mesma experiência externa, as pes- soas de uma mesma família podem ter “per- cepção compartilhada”, ou seja, manifestar reações muito diferentes entre si, embora partilhem do mesmo evento.

Lipp (1996) apontou para o papel im- portante dos pais em relação à resistência ou à vulnerabilidade que os filhos desenvolvem em relação ao estresse, partindo não só de ques- tões relacionadas à hereditariedade, como também de fatores ligados à aprendizagem. Segundo a autora, “os pais exercem um papel fundamental na aquisição, pela criança, de es- tratégias naturais para lidar com o estresse e a forma mais positiva de ver a vida, com inter- pretações saudáveis em relação a eventos do dia a dia e sua percepção de que é capaz de lidar com o mundo ao seu redor de modo competente” (p. 93). O modo adotado por uma criança para lidar com o estresse deter- minará sua resistência quando adulta.

O bom relacionamento familiar, a com- petência materna e a capacidade de transmitir valores, entre outros fatores, também favore- cem o desenvolvimento da resiliência. O ser humano necessita do grupo para sobreviver, e a família tem sido identificada como o con- texto básico para fornecer alimentação, prote- ção e ensinamento para as crianças (Minu- chin, 1988). A sobrevivência humana, em todas as sociedades, é resultado do pertenci- mento a agregações sociais.

Conceitos sobre famílias encontrados na literatura referem -se, de modo geral, a um sistema aberto, dinâ-

mico, sociocultural, adaptativo, homeos- tático e governado por regras de origem externa ou interna. As funções da família atendem a dois dife- rentes objetivos: um interno, de proteção

Conceitos sobre famí‑ lias encontrados na li‑ teratura referem ‑se, de modo geral, a um siste‑ ma aberto, dinâmico, sociocultural, adaptati‑ vo, homeostático e go‑ vernado por regras de origem externa ou in‑ terna.

psicossocial de seus membros, e outro exter- no, de acomodação e transmissão da cultura.

consIdERAçõEs FInAIs

Investigar a relação que as pessoas mantêm com suas famílias, em princípio, parece um desafio. Embora nas últimas décadas seja no- tável a mudança na configuração e no funcio- namento familiar, é curioso observar que per- manecem tabus e mitos no que se refere a outros arranjos que fogem ao modelo original e tradicional. A sociedade ainda insiste na transmissão do modelo de família nuclear, e qualquer composição diferente dessa é classi- ficada como desestruturada, mas o significa- do de família parece transcender tais preceitos e preconceitos (Paludo e Koller, 2008).

Uma abordagem que enfatize a força entre as famílias não é apenas um argumento para os estudiosos. Pesquisas rigorosas e siste- máticas mostram -se necessárias para fornecer informações cruciais para a manutenção de programas de intervenção mais eficazes. Uma abordagem para estudar os pontos fortes das famílias amplia a compreensão das forças e promove o desenvolvimento de programas de prevenção destinados a fomentar característi- cas de resiliência das famílias, em vez de uma ênfase em programas de intervenção destina- dos a corrigir problemas já manifestos e pato- logias. Além disso, ferramentas de diagnóstico para identificar os pontos fortes existentes entre as pessoas, as famílias e as comunidades, nos mais diversos níveis ecológicos, podem permitir que as suas forças sejam canalizadas de maneira mais eficaz.

Questões para discussão

1. Como se pode definir família?

2. Por que uma família pode estar em situação de vulnerabilidade? 3. O que é resiliência?

4. O que é vulnerabilidade?

5. Discuta a situação familiar de crianças em situação de rua.

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Parte III

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