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A Escravidão Contemporânea no Brasil e a Questão Jurídica

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AGRONEGÓCIO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A pedagogia dos aços golpeia no corpo

1.9 A Escravidão Contemporânea no Brasil e a Questão Jurídica

Os casos do chamado “trabalho escravo contemporâneo” no Brasil, são sempre casos de exploração ilegal da força-de-trabalho e, cárcere privado de pessoas que enganadas, iludidas, obrigadas e falsamente endividadas tornam-se trabalhadores submetidos ao mando

17Cf Agência Informativa Pulsar Brasil in: Novos Casos de Escravidão Urbana Entram na Lista Suja. Divulgado dia 12/01/2012 no sítio

81 de outras pessoas sem escrúpulos, mas que devem responder à lei, por crime previsto no Código Penal Brasileiro no Capítulo VI: Dos Crimes Contra a Liberdade Individual, Seção I: Constrangimento Ilegal, que no seus artigos 146 apresenta a seguinte redação:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência[...] III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.

§ 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. Redução a condição análoga à de escravo (CÓDIGO PENAL BRASILEIRO, Capítulo VI- Dos Crimes Contra a Liberdade Individual, Seção Dos Crimes Contra a Liberdade Pessoal, Lei n° 10.803, de 11/12/2003, p. 43)

Todavia apesar dos rigores da lei contra o constrangimento no ambiente de trabalho, uso de violência ou sua ameaça, privação de liberdade e redução a condição análoga à de escravo, no Brasil esse crime tem crescido e se transformado numa chaga social, justamente porque a lei tem tido dificuldades de ser executada e cumprida.

Quem escraviza geralmente tem poder econômico, político e social, quase sempre conseguindo descaracterizar os flagrantes ou realizando recursos jurídicos que se arrastam anos pelos tribunais, havendo poucos mecanismos na própria lei que os façam perder as terras ou dificultem suas vidas como proprietários e produtores rurais.

O trabalho escravo contemporâneo no Brasil não se limita a questões trabalhistas, sendo uma grave violação de direitos humanos, que, frequentemente vem acompanhado de outros crimes e contravenções como crimes ambientais, grilagem de terra, falsificações de documentos, lesões corporais e até assassinatos.

Nesse sentido a escravidão continua sendo nos tempos atuais um segredo de esfinge que nos ameaça devorar, como na lenda dos peregrinos do deserto do Planalto de Gizé que incapazes de compreender e desvendar as mensagens recebidas pela imensa antiga criatura mística com corpo de leão e cabeça de ser humano, eram estrangulados e tragados pela gigante.

O problema da escravidão contemporânea no Brasil é estrutural e um fenômeno multifacetado, indo muito além da marginalização dos trabalhadores ou a ausência do Estado, que acarretam a existência deste fenômeno. Trata-se, sim, de um fenômeno social complexo,

82 com diversos elementos de ordem econômica, política e social que seguramente contribuem para a persistência deste problema e dificultam sua completa erradicação.

Assim a escravidão contemporânea enquanto fenômeno social, político e econômico vem assumindo muitas possibilidades explicativas da vida social e tornando possível a explicação não só o avanço da fronteira plenamente capitalista, mas fundamentalmente os impactos negativos desse acontecimento no planeta e no Brasil.

Particularmente na região amazônica, lugar de avanço da degradação das relações de trabalho, do desrespeito dos direitos trabalhistas, da submissão à nova lógica do capital, da precarização social e da negação dos direitos humanos, o trabalho escravo ganha proporções maiores do que no restante do Brasil, pois alí ele efetivamente nunca deixou de existir, desde o século XIX, sempre se adequando aos interesses capitalistas e sua progressiva expansão nessa região.

Por mais estranha que pareça a lógica do capitalismo contemporâneo com escravos deveria ser impraticável, inclusive porque essa forma de trabalho seria pouco produtiva e incompatível com a maioria dos arcabouços jurídicos das nações do mundo atual. Mas continua sendo utilizada porque ainda é capaz de gerar vantagens econômicas e lucratividade. Para inúmeros capitalistas "vale o risco do empreendimento".

A prática de espoliação humana no capitalismo não tem limites e conforme analisa a investigação histórica e as outras ciências sociais com suas categorias analíticas, esse sistema tem uma enorme capacidade de criar e recriar os mais variados modos de exploração. Nem que para isso precise ressuscitar formas pretéritas de apropriação integral dos frutos da força do trabalho como é o caso da escravidão.

A escravidão por exemplo, por mais que alguns esquemas teóricos já tenham tentado vê-la como uma mera fase de exploração do mundo do trabalho na história das sociedades, como um modo de produção universal, isso não passou de uma generalização teórica surgida a partir de interpretações da história, exclusivamente europeias.

Embora muito disseminada enquanto prática social, a escravidão nem sempre existiu ao longo da história, havendo diversas sociedades que não tiveram escravos e diversas pesquisas demonstram que ela jamais existiu enquanto um modo de produção global. Todavia o modo de produção capitalista, depois que passou a ser o primeiro modo de produção global da história, fez da escravidão um instrumento altamente lucrativo de acumulação de capitais e viabilizador dos interesses econômicos mais diversos.

No Brasil embora não seja uma análise histórica consensual, a escravidão é vista como aquela situação que estabeleceu a natureza estrutural da sociedade patriarcal, deu

83 sustentação à grande propriedade latifundiária da terra, à monocultura e às relações de produção marcadas por formas conservadoras de poder. Dessa forma, jamais teria havido no Brasil uma fração burguesa progressista, que tenha rompido completamente com os setores agrários oligárquicos.

No Brasil o caráter da burguesia sempre foi conservador e essa classe social em tempo algum na história brasileira jamais encontrou obstáculos consistentes para adquirir, dominar a propriedade de terra, praticar a especulação fundiária e a escravidão. Nem mesmo quando o Brasil passou a estruturar seu modelo de industrialização tardio, criando o chamado modelo de substituição de importações, que permitiu que no Brasil fossem instaladas indústrias de base como a do aço e do petróleo.

O latifúndio no Brasil sempre foi uma das fontes de acumulação original do capital. Portanto, efetivamente do ponto de vista da burguesia brasileira, nunca houve contradição com o latifúndio, ao contrário, o latifúndio esteve na gênese da formação do Brasil enquanto país colonial, imperial e republicano e sua estrutura agrária ocupou um espaço fundamental na formação do capitalismo enquanto modo de produção. Agora em pleno século XXI o latifúndio modernizado passa a ter novamente um papel central na economia nacional.

Evidentemente houve diversos momentos na história brasileira em que o peso das oligarquias, seus interesses regionais e nacionais provocaram choques políticos entre os setores dominantes. Todavia a unidade contra os de baixo, contra as classes populares sempre foi muito forte e a reprodução de formas de exploração da força de trabalho, mesmo que incompatíveis com a necessária modernização do país, nunca foi objeto de profundas divergências entre as diversas frações burguesas.

Tanto foi, e ainda hoje é assim, que a burguesia brasileira tratou de implantar uma modernização da grande empresa rural através do chamado agronegócio como uma forma de legitimar a sobrevivência do latifúndio, tornando uma porcentagem deste em empresas de fato produtivas. A partir daí, alguns setores intelectuais e políticos perderam qualquer tipo de constrangimento para afirmar que a reforma agrária hoje não é mais necessária ou que já não atende mais ao papel de estimular o desenvolvimento nacional.

Para impulsionar e modernizar o latifúndio brasieleiro como uma grande empresa rural, vem sendo estruturado e desenvolvido no país um modelo de crescimento econômico que propicia apoio técnico e financeiro do Estado, com reforço a dinâmica concentradora de terras, poder político e econômico no campo. Esses elementos associados a uma ampla penetração de capitais externos no campo brasileiro, têm gerado uma segunda onda de modernização da agricultura empresarial no país.

84 Essa dinâmica hoje existe em todo território nacional, mas está concentrada principalmente na região da Amazônia Legal, que mantém o grande latifúndio na vanguarda da superexploração da força de trabalho e na subjugação da população rural local, inclusive com a construção de grandes obras de infraestrutura através de programas governamentais como o PAC, onde também já foram identificados trabalhadores em regime de escravidão.

Esse apoio do Estado brasileiro ao latifúndio, a produção monocultora e voltada para o mercado externo não é algo típico da República Federativa do Brasil, nem começou com ela. Na época do Império brasileiro, o Estado estava completamente a serviço dos grandes produtores rurais escravocratas. Por isso, insistimos que no entendimento da situação histórica do trabalho escravo contemporâneo que a manutenção do trabalho escravizador não é anacrônica com a situação do capitalismo brasileiro sempre um capitalismo incompleto, periférico e dependente.

Assim, apesar do caráter multifacetado da produção escravista, seu eixo dominante ainda hoje se encontra na grande propriedade rural, cujas características estruturais não foram modificadas em séculos no Brasil, que ao não conseguir romper com um padrão de produção e subordinação aos países centrais, não conseguiu criar um amplo mercado interno e um processo de industrialização que tivesse a capacidade de romper com a estrutura agrária latifundiária e voltada para o atendimento de interesses do mercado externo.

Dessa forma, a concentração da propriedade da terra, o poder das oligarquias rurais e do "novo" empresário rural continuam gerando uma trama de relações econômicas, sociais, culturais e políticas que impulsionam o comprometimento de todas as esferas da vida rural, afetando inclusive o exercício da democracia no país, que só chegou tardiamente ao país e assim mesmo marcada por fortes incompletudes.

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