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A Escravidão Contemporânea: Um Fenômeno Complexo e multifacetado

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AGRONEGÓCIO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A pedagogia dos aços golpeia no corpo

1.7 A Escravidão Contemporânea: Um Fenômeno Complexo e multifacetado

Para o sociólogo Bales15 (2001) compreender as especificidades da escravidão contemporânea exige a construção de conceitos que deem conta de compreender que ela é indubitavelmente estrutural e multifacetada, um fenômeno cujas causas e persistências estão ligadas a diversos elementos de ordem econômica, política, social e cultural, mas que seguramente há uma grande diferença entre as escravidões do passado e a contemporânea.

De acordo com Bales (2001) no problema da escravidão contemporânea, questões como a marginalização dos trabalhadores ou o papel do Estado, ganham dimensões substancialmente novas, não bastando entendê-la apenas como "uma dominação permanente e violenta de pessoas nativamente alienadas e geralmente desonradas" (PATTERSON apud BALES, 2001, p. 13).

Segundo Bales (2001) em conceitos como esse de Orlando Patterson, sociólogo e historiador norte americano, está uma definição da escravidão histórica, centrada na morte social do escravizado, que ajuda a compreender bem a escravatura do passado, mas não compreende toda a complexidade deste fenômeno no tempo contemporâneo.

Para Bales (2001) ao postular uma compreensão da escravidão contemporânea, é preciso ir além da retenção de uma pessoa pela violência ou ameaça de violência para exploração econômica; é preciso compreender como a globalização opera em diferentes níveis a exploração do trabalho escravo.

15 Kevin Bales, historiador, antropólogo e sociólogo norte americano, é atualmente um dos maiores especialistas no mundo

em escravidão contemporânea, autor de diversos estudos sobre esse tipo de escravidão, todos ainda inéditos no Brasil. Em um desses estudos intitulado New Slavery in the Global Economy (Nova Escravidão na Economia Global) Bales faz um amplo panorama da nova escravatura no mundo, destacando países como a Tailândia, Mauritânia, Paquistão, Índia e o Brasil. Bales é mestre, doutor e Ph.D. em História Econômica pela London School of Economics (Escola Econômica de Londres), mestre em Sociologia pela Universidade do Mississipi, bacharel em antropólogo pela Universidade de Oklahoma e presidente da Free the Slaves (Libertem os Escravos), uma organização irmã da Anti-Slavery International Organization (Organização Anti-Escravidão Internacional), a mais antiga organização de direitos humanos do mundo. Bales também é Consultor para o Programa Global das Nações Unidas Sobre o Tráficos de Seres Humanos, Consultor dos governos dos EUA, Inglaterra, Irlanda, Noruega, Nepal e Comunidade Econômica dos Estados do Oeste da África sobre escravidão humana.

70 Conforme Bales (2001) a escravidão contemporânea justamente por estar inserida num mundo extremamente complexo abarca amplas variações de forma. Dessa maneira, o autor, usando uma visão derivada de David Bell, afirma que a escravidão atual tem três facetas básicas: a primeira é social e envolve o uso ou ameaça da violência no controle de uma pessoa por outra. A segunda é a faceta psicológica da influência, a capacidade de persuadir outra pessoa a mudar a maneira como entende os seus interesses e as suas circunstâncias. E a terceira é a faceta cultural da autoridade, aquela que consegue transformar a força em direito e a obediência em dever, que o poderoso acha necessário para garantir o domínio continuado.

Dessa forma, Bales (2001) menciona que o poder coercitivo do escravocrata e a relação desse poder como o poder coercitivo do Estado são essenciais para a escravatura contemporânea, mas não são os únicos elementos que fazem com que a escravidão exista enquanto prática.

Por isso é necessário ter cuidado com as conexões históricas inapropriadas como, por exemplo, ver as distintas escravidões a partir da experiência da escravidão colonial das Américas ou Caribe ou uma visão da escravidão antiga europeia como se fosse uma fase inevitável rumo ao modo de produção capitalista ou uma mera continuidade da escravidão no mundo antigo.

Embora possamos encontrar elementos estruturais úteis à análise histórica no ciclo de nascimento e renascimento da escravidão é preciso estar atento a uma observação de Guarinello (2006):

Podemos falar de uma fase escravista na história das sociedades humanas, como se fosse uma etapa necessária em direção às modernas relações capitalistas. Mas essa idéia, que teve muito trânsito na historiografia até recentemente, deriva de uma visão exclusivamente eurocêntrica da história humana, ao mesmo tempo em que generaliza, para a própria história europeia, uma instituição cuja importância, numérica e social, só se tornou efetiva em certos momentos e lugares bastante específicos. (GUARINELLO, 2006, pp.229-230)

Os conceitos de modo de produção acrescidos do conceito de formação social são atualmente fundamentais para a compreensão da existência do fenômeno da escravidão contemporânea, que hoje é um mero instrumento de exploração econômica e que apesar de também parecer um anacronismo histórico, do ponto de vista das relações sociais de trabalho, é apenas uma anomalia, que pode até gerar certos constrangimentos legais, mas que do ponto

71 de vista sistêmico do capitalismo ainda propicia a lucratividade de muitos grupos econômicos e empresariais.

Se a escravidão chegou bem viva ao tempo capitalista contemporâneo, que tem como referência fundamental o avanço tecnológico, que eleva a produtividade do trabalho, é porque ela ainda é uma forma de trabalho que contribui de forma decisiva para que este modo de produção avance e propicie alta lucratividade aos proprietários de meios de produção no meio rural e também urbano.

O grande capitalista, como os grandes imperadores da Antiguidade, aprenderam que para manter o seu poder econômico é preciso conciliar distintas formas de exploração, distintas maneiras de viabilizar seus lucros a partir de suas propriedades e empreendimentos, o que importa para eles é expandir-se, ganhar territórios de influência, retorno financeiro e político.

Hoje, como ontem, a produção capitalista necessita de espaços não capitalistas para se desenvolver, dessa forma os empreendimentos agropecuários são capazes de se expandir sobre áreas, na maioria das vezes, ocupadas por populações que vivem sob um modo de produção não capitalista.

No Brasil em questão de poucos anos, surgiram grandes fazendas de gado, lavouras de soja, algodão e cana-de-açúcar, além de carvoarias, produzindo matéria-prima e gêneros alimentícios, onde antes viviam populações indígenas, camponeses, comunidades quilombolas ou ribeirinhas.

Cada vez mais as relações de mercado, assalariamento, financeirização da agricultura ditam o funcionamento e o "novo" modo de vida, proletarizando, massacrando ou expulsando os homens do campo para as cidades, numa reedição trágica do que já havia acontecido na Europa quando do desenvolvimento do modo de produção capitalista.

Todavia o processo de ampliação da agricultura empresarial atual nada tem que ver diretamente com os mesmos rumos tomados pelo capitalismo na Europa ou com os rumos que tomaram a escravidão antiga ou moderna, aqui não se está ampliando a classe operária e havendo uma intensificação do processo de industrialização, com a consolidação de um extenso e amplo mercado.

Mas a exploração do trabalho escravo, naquela época como nos tempos atuais, tornou possível a produção de grandes excedentes e uma enorme acumulação de riquezas, contribuindo assim para o desenvolvimento econômico e padrões típicos de exploração da natureza e dos seres humanos.

72 Embora cada tipo de escravidão tenha ocorrido em partes diferentes do mundo e desenvolvido conotações específicas sujeitas a definições legais, noções religiosas e convenções sociais diferentes, ainda assim, qualquer que seja o foco de pesquisa, não se pode desconhecer de igual forma, que o viés econômico sempre teve um peso significativo na configuração desses vários tipos de escravidões, sendo preciso lembrar uma observação de Marx (2011):

[...] o que não contradiz o fato de que a escravidão é possível em pontos isolados no interior do sistema de produção burguês. Nesse caso, porém, ela só é possível porque não existe em outros pontos e aparece como uma anomalia em relação ao próprio sistema burguês. (MARX. 2011, p. 381).

Mas sendo uma anomalia ou não, onde prevalece a escravidão como uma forma de apropriação do trabalhador, mais uma vez se repetirá como condição objetiva na reprodução econômica a figura de senhores de escravos, que apesar das diferenças do tempo histórico sempre fazem o que querem da saúde, da vida e da morte do trabalhador, numa relação de dominação de classe social cuja expressão contemporânea necessitava segundo Marx (2011) de uma análise social, econômica e histórica cuidadosa.

Os sentimentos morais contrários à escravidão são fundamentais para impulsionar a luta contra ela, todavia somente compreendendo bem os mecanismos de funcionamento da economia capitalista ter-se-á suficiente clareza que o que gera a escravidão contemporânea são os elementos intrínsecos ao modo de produção capitalista, suas contradições de classe e sua forma de apropriação das riquezas produzidas pela imensa maioria dos trabalhadores submetidos às formas mais espoliativas possíveis.

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