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Da Antiga Escravidão Colonial/Imperial no Brasil à Escravidão Contemporânea

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AGRONEGÓCIO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A pedagogia dos aços golpeia no corpo

ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA DO SÉCULO XX AO SÉCULO

1.11 Da Antiga Escravidão Colonial/Imperial no Brasil à Escravidão Contemporânea

Vive-se um período histórico substancialmente diferente daquele onde prevaleceu a escravidão colonial/imperial no Brasil ou mesmo do período do século XX, em que a escravidão não foi considerada como um problema significativo e de grande impacto social. Atualmente a escravidão conta com inúmeros mecanismos legais que a reprimem enquanto prática desvelada e aceitável.

Mas os neoescravistas, para tirar grandes vantagens econômicas com a escravidão, ao ponto de valer o risco de enfrentar as legislações contrárias a esse crime, mudaram profundamente as características da relação de exploração escravista, inclusive seu caráter racial e visão de superioridade branca.

O escravo atual não precisa mais ser uma propriedade, não precisa estar legalmente documentado e geralmente não se tem mais que arcar com custos de remédios, alimentação, alojamentos e outras despesas, que agora são muitas vezes cobradas do próprio cativo. Além disso, a quantidade e disponibilidade de seres humanos a serem escravizados aumentou imensamente o volume do lucro, além de tornar o ciclo da escravidão bastante reduzido e o escravo totalmente descartável.

A esse respeito Bales afirma:

Os modernos escravocratas são predadores intensamente conhecedores da fraqueza; eles estão a adaptar rapidamente uma prática antiga à nova economia global. [...] Pela primeira vez na história da humanidade, há uma abundancia absoluta de potenciais escravos. Esta é uma trágica ilustração das leis da oferta e da procura: com tantos escravos possíveis, o seu valor caiu rapidamente. Os escravos são hoje tão baratos que se tornaram produtivos em muitos novos tipos de trabalhos, mudando completamente o modo como são vistos e usados. Pense nos computadores. Há quarenta anos havia apenas uma mão-cheia de computadores, e custavam centena de milhares de dólares; só as grandes empresas e os governos podiam adquiri-los. Hoje existem milhões de computadores pessoais. Qualquer pessoa pode comprar um modelo usado, mas perfeitamente utilizável, por 100 dólares. Use esse computador de 100 dólares durante um ano ou dois, e quando ele se estragar, não se preocupe em arranjá-lo, limite-se a deitá-lo fora. (BALES, 2001, pp. 22-25).

Dessa maneira, Bales (2001) demonstra que os escravos atuais são totalmente descartáveis e ao contrário de um escravo antigo não há muito interesse por sua vida. O próprio exemplo eram os escravos da época colonial e imperial do Brasil, que apesar de muitas vezes serem tratados de forma brutal, havia, no entanto, um forte estímulo para mantê- los vivos pelo maior tempo que fosse possível.

94 Os senhores precisavam recuperar o investimento e obter o máximo de produção possível, sem contar que havia também o interesse que eles reproduzissem, inclusive muitas vezes os próprios senhores ou seus filhos se deitavam com as escravas para engravidá-las, pois era mais barato e lucrativo procriar em casa escravos do que comprá-los adultos.

Essa mesma realidade é retratada por Bales (2001) que afirma que um escravo do século XIX, por volta de 1860, nos EUA, era um investimento caro e difícil de comprar, pois a procura era elevada e a oferta de menos, o que fazia com que a velha lei da oferta e da procura funcionasse perfeitamente também nessa situação.

Por isso mesmo a posse era claramente comprovada por títulos de propriedade, que inclusive podiam ser usados como garatia para empréstimos ou para pagamento de dívidas. Isso fazia com que os escravos embora muitas vezes fossem brutalizados para se manter o controle, também fossem reconhecidos e tratados como um investimento de valor.

Bales (2001), analisando essa questão e discutindo como combater a escravidão moderna, apresenta números chocantes:

O preço de um ser humano escravizado ao longo dos últimos 40 mil anos em moeda corrente de hoje, esteve na média de US$ 40.000 mil dólares ativos de capital. Com a explosão da população mundial o preço médio de um ser humano escravizado hoje, no mundo, é de apenas uns US$ 90,00 noventa dólares. Em alguns lugares eles são evidentemente mais caros. Um escravo na América do Norte custa entre US$ 3.000,00 e US$ 8.000,00 dólares, mas na India ou no Nepal, um ser humano pode ser comprado por US$ 5,00 a US$ 10,00 dólares. Isso ocorre porque as pessoas deixaram de ser um ativo de capital. (BALES, 2010, 18:02 min)

Dessa forma, fica explícito que a superabundância de mão de obra disponível hoje facilita o processo de escravização, uma vez que quem escraviza não escraviza outra pessoa simplesmente por maldade ou para lhe causar mal, esse é majoritariamente um crime com finalidade econômica e os escravistas fazem para ter lucro.

Por isso quase sempre a contabilidade de quem escraviza por dívida é uma fraude estabelecida pelo escravizador, sendo ele quem decide o momento em que a dívida começa e acaba, o que o trabalhador escravizado deve pagar e o que pagar. Ainda que muitas vezes o trabalhdor tenha desconfianças quanto ao que deve pagar, ele acaba aceitando a imposição por não ter outra alternativa e também por não querer ficar devendo.

Assim para Bales (2001) o escravo contemporâneo deixou de ser um ativo econômico e criou condições de ser um escravo de novo tipo, que não precisa mais de

95 nenhum tipo de cuidado. Quando perde a utilidade, pode ser descartado como um copinho de plástico já usado.

Diante da amplitude das diferenças e semelhanças entre a escravidão contemporânea e as outras escravidões do passado, Bales (2001) busca perceber suas realidades funcionais e esquematizar suas grandes diferenças básicas. Entre essas, ele aponta as seguintes características:

Primeiro, ninguém procura afirmar a posse legal do trabalhador escravizado. O escravo é mantido sob ameaça de violência, e muitas vezes fisicamente encarcerado, mas ninguém afirma que ele ou ela é de fato propriedade. Segundo, o trabalhador escravizado é tornado responsável pela sua própria manutenção, reduzindo assim os custos do dono. [...] Terceiro, se um trabalhador escravizado é incapaz para trabalhar talvez por doença ou ferimento, ou não é necessário para o trabalho pode ser abandonado ou alienado pelo dono, que não assume qualquer responsabiliade pela manutenção do escravo. [...] Quarto, a diferenciação étnica não é tão rígida, de modo nenhum, como a da antiga escravatura. [...] Finalmente, uma importante diferença entre a antiga e a nova escravatura está nos lucros produzidos pelo trabalhador escravizado. Os trabalhadores agrícolas escravizados na India por exemplo, não geram 5 por cento, como os escravos no sul da América, mas mais de 50 por cento de lucro ao ano para o escravocrata. Este lucro é devido, em parte, ao baixo custo do escravo [...] (BALES, 2001, p. 28).

Dessa forma, Bales (2001), demonstra os pilares básicos da nova escravidão em relação à escravidão moderna, demonstrando inclusive que a lucratividade dos trabalhadores agrícolas escravizados na India é superior a 50% ao ano, embora apresente apenas 5% anuais para os trabalhadores na agricultura na América do Sul.

É possível concordar em parte com a análise de Bales (2001) e discordar que um escravo na América do Sul, especificamente no Brasil gere apenas 5% de lucratividade, dado ao seu custo para quem o escraviza. No caso do Brasil, acredita-se que mesmo que o escravizador possa ter um alto custo com adiantamentos, transporte para o local de trabalho e alimentação, sua lucratividade é bem superior a 5%.

O trabalho dos escravizados tende a pagar ao seu contratante todos os “investimentos” realizados e ainda deixa uma margem razoável de lucratividade. Se fosse uma lucratividade muito baixa, os "riscos" que os produtores em tese correm com a atuação do MTE e das entidades da sociedade civil, não compensariam.

A superabundância de mão de obra também contribui para a redução dos empregos formais, que passam a ser vistos pelos empregadores, como sendo mais caros. Por isso mesmo, nas regiões de fronteira agrícola, geralmente o empregador rural, quando tem muita disponibilidade de braços para o trabalho, tenta reduzir ao máximo o valor da remuneração

96 do trabalhador, enquanto tenta elevar a sua produtividade e alcançar mercados com preços competitivos.

Isso significa que principalmente nas regiões de fronteirta agrícola, o trabalho livre tem que competir regularmente com o trabalho cativo e havendo uma resultante pressão sobre os salários agrícolas, empurra os trabalhadores para uma situação de profundas dificuldade de obtenção de renda, inclusive empurrando-os para a escravidão.

No final do do século XIX, antes da abolição, na maioria dos países americanos, acontecia o contrário: quem exercia uma pressão sobre a escravidão era o trabalho assalariado e muitos fazendeiros rapidamente perceberam que aquele tipo de escravidão era muito caro e despendioso enquanto processo.

Mas essa situação só serve para demonstrar o grau de perversidade da escravidão contemporânea, quando comparada com a antiga escravidão, mostrando uma diferença substancial entre uma e outra, justamente no grau de descartabilidade do escravo atual.

Outra pesquisadora, Le Breton (2002), também ao fazer uma comparação entre o antigo trabalho escravo e o trabalho escravo contemporâneo, demonstra claramente as profundas diferenças entre os tipos de escravos:

Na escravidão negra do passado, quer no delta do Mississipi, quer em Pernambuco, os escravos faziam parte do patrimônio do seu dono. Os que nasciam escravos, morriam escravos. Em troca de seu trabalho eram vestidos, abrigados, alimentados e medicados. [...]. Os escravos negros eram ligados à casa ou à plantação, mas os escravos atuais não pertencem a lugar nenhum. Os escravos negros eram possuídos e usados, os escravos de hoje são dominados e usados. No sistema feudal, os escravos negros faziam parte de uma ordem social estabelecida, reconhecida e forçada pela coroa e pela Igreja. No sistema capitalista, os “escravos brancos” são recrutados de acordo com a necessidade, postos para trabalhar o quanto for possível, e descartados assim que espira a sua utilidade. As condições sociais, econômicas e geográficas do Brasil sempre fizeram dele um chão fértil para o surgimento da escravidão”. (LE BRETON, 2002, pp. 221-222).

Dessa forma, pode-se perceber a partir das afirmações de Le Breton (2002) que tanto o escravo antigo como o escravo contemporâneo foram e são usados para assegurar os mais variados interesses, mas se os escravos negros eram possuídos e usados dentro de uma ordem social que os localizavam e os determinavam numa condição estável, já os escravos de hoje são dominados e usados de forma totalmente instável, na qual a degradação do ser humano submetido a tais condições não encontra limites nem mesmo nas leis que em tese protegem os trabalhadores.

97 Le Breton, como ativista de direitos humanos e estudiosa da escravidão contemporânea na Amazônia brasileira, conseguiu reunir um conjunto de informações em sua pesquisa que se transformou no livro Vidas Roubadas: A Escravidão Moderna na Amazônia Brasileira, lançado em setembro de 2002, mas que continua extremamente atual, pois de lá para cá, pouca coisa mudou em termo de atuação da complexa rede de pessoas e empresas envolvidas nesse tipo de crime no Brasil.

Um dos capítulos mais expressivos da obra de Le Breton (2002) é o que a pesquisadora demonstra como a escravidão é sistematicamente praticada inclusive por grandes empresas capitalistas mundiais, como a Volkswagen, que nos anos de 1980 chegou a estruturar a fazenda-modelo Rio Cristalino, em 139 mil hectares no município de Santana do Araguaia, no Pará, mas também de poderosos fazendeiros locais que para desmatarem a floresta, plantarem pastos e criarem gado ou mesmo praticarem a agricultura de escala, utilizam da mão de obra escrava e da superexploração da força de trabalho.

A obra de Le Breton (2002) é um vigoroso líbelo contra a política neocolonial da escravidão contemporânea na Amazônia brasileira, mostrando que por trás da submissão de milhares de trabalhadores estão não só grupos econômicos poderosos, mas muitas vezes também membros do parlamento nacional e de governos estaduais, a exemplo de Francisco Filho, deputado licenciado e secretário de Agricultura do governo estadual do Piauí. Segundo Le Breton (2002) Chico Filho, como é chamado, possui várias fazendas em diferentes estados, sendo acusado da prática de trabalho escravo no Pará e no Maranhão.

Para Le Breton (2002) a escravidão sempre esteve em nosso meio e o Brasil não viveu uma só época sem o uso de trabalho escravo. Assim o mal da escravidão, seja quando era legal ou quando praticado de forma escondida e insidiosa, floresce sempre no terreno da violência e da ganância, suas vítimas são sempre dominadas e usadas para satisfazer os interesses do capital e ele ocorre devido à meta de se conseguir o maior lucro a partir da menor despesa possível.

Le Breton (2002), ao comentar sobre a escravidão contemporânea comenta:

Esses trabalhadores são recrutados de acordo com as necessidades, postos para trabalhar o tanto quanto for possível, e descartados assim que expira sua utilidade. As condições sociais, econômicas e geográficas do Brasil sempre fizeram dele um chão fértil para o surgimento da escravidão. Nos confins da Amazônia, o Estado é dramaticamente ausente e a pistola é a única lei. Existe uma reserva enorme de trabalhadores migrantes, sem formação nem emprego, passando fome, portanto facilmente manipuláveis e domináveis. Expulsos de seus lares pela pobreza e pela falta de alternativa, logo se descobrem em uma região em que reina a violência e a regra do cada um por si e Deus por todos. (LE BRETON, 2002, p. 222)

98 Dessa forma podemos afirmar que a escravidão no Brasil tem uma longa história por causa da lógica do capital que cria um quadro de permanente injustiça social no país, pela constante impunidade e desrespeito às leis e porque o Estado brasileiro sempre esteve comandado por interesses minoritários e nunca se preocupou efetivamente em criar mecanismos adequados para deter a escravidão. Além disso, uma das características econômicas do capitalismo no Brasil é fazer com que os encargos sociais sejam elevados, custando entre 28% a 30% do custo salarial, o que contribui para com os empresários cortem os gastos com salários e abram as portas para a escravidão.

Bales (2011) afirma que no Brasil do século XIX, a força-chave no combate à escravidão foram os ingleses, de quem os portugueses e os brasileiros tinham se tornado cada vez mais dependentes economicamente. Fora do Brasil, a partir de 1832, os navios britânicos patrulhavam os oceanos e interceptavam navios negreiros, libertando os escravos africanos. Dentro do Brasil, os donos de escravos se aplicavam com constância a cultivar o racismo e o medo indispensável à manutenção da escravidão, enquanto o governo baixava leis ineficientes e que nunca eram levadas à prática.

A escravidão por dívida na agricultura brasileira do período pós-colonial, durante um certo tempo ficou quase incipiente, mas voltou com força na década de 1960, quando o governo liberou, simultaneamente, grandes áreas de terra e grande quantias de financiamento público para empreendimentos agrícolas. Nessa época foi necessário arranjar grandes contingentes de homens por curtos períodos. Como já era tradição, o empobrecido Nordeste brasileiro passou a alimentar o circuito da escravidão por dívida.

Nesse tipo de exploração da força de trabalho, muitas vezes os indivíduos sabem que serão escravizados, mas vivem em situações tão absurdas de pobreza que frequentemente acham melhor comer o pão da escravidão do que morrer de fome em suposta liberdade. Dessa forma o ciclo da escravidão é continuamente alimentado pela pobreza, pela falta de oportunidades e por um sistema econômico que aprendeu a utilizar todas as formas possíveis de exploração do mundo dos que vivem da sua força de trabalho.

Embora a escravidão exista desde a remota antiguidade, tenha sustentado sociedades inteiras e posteriormente, já sob a influência do modo de produção capitalista, não tenha sido mais o aspecto de elemento central na vida do sistema econômico, ainda assim continua criando fortunas e gerando a acumulação de capitais.

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