• Nenhum resultado encontrado

A Escravidão Ontem e Hoje no Brasil

No documento Download/Open (páginas 72-80)

AGRONEGÓCIO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A pedagogia dos aços golpeia no corpo

1.8 A Escravidão Ontem e Hoje no Brasil

A apropriação do trabalho realizado pelo escravo, apesar de se manifestar em diferentes formas dentro de distintos processos sociais, econômicos e políticos teve em comum a exploração da mão de obra, a degradação humana, a exclusão de direitos, os privilégios e a distinção entre seres humanos, que desde a antiguidade tanta dor, racismo, preconceito e dificuldades de convivência social têm gerado.

Os sucessivos governos brasileiros, desde a época imperial, sempre incentivaram os grandes empreendimentos econômicos nas regiões mais distantes do centro das decisões

73 políticas do país fazendo com que o trabalho de centena de milhares de trabalhadores nos campos e nas cidades fosse fundamental para garantir os interesses burgueses. Nas cidades os escravos eram usados para todo tipo de serviços que iam das serralherias, carpitarias ao transporte de pessoas e ao ganho de seus senhores vendendo de quitutes ao transporte de água. No campo eram usados para derrubada das matas, nas lavouras de algodão, no café, cana-de- açúcar, borracha, formação de pastagens e outros tantos empreendimentos, sempre convivendo com os maus tratos e muitos abusos de seus proprietários.

Isso foi decisivo para se construir uma mentalidade no Brasil Republicano onde os direitos trabalhistas e socias nunca foram o forte e o eixo principal de intervenção de nenhum governo republicano brasileiro. A política de desenvolvimento adotada pelos governos ditatoriais ou democráticos, civis ou militares sempre esteve voltada para fortalecer o aspecto econômico, dando-se pouca atenção aos aspectos sociais, humanos e populares.

Dessa forma o Brasil aprendeu a conviver com a sonegação dos direitos trabalhistas tais como carteira assinada, direito a férias, décimo terceiro salário, adicional de insalubridade, adicional de periculosidade, pagamento de salário, assistência ao trabalhador em caso de acidente de trabalho etc. Muitas vezes vendo o empregador como um benfeitor apenas pelo fato de gerar o emprego e propiciar algum tipo de renda ao trabalhador.

Figura 5- Imagem de Prancha 33 de DEBRET, Jean Baptiste, 1834- Negros serradores de tábuas, Pintada pelo Viajante Europeu. Fonte Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1979. p. 174.

74 Além disso muitas normas regulamentadoras Rurais (NRRs) também jamais foram cumpridas e assim as questões de segurança, higiene do trabalho rural, obrigatoriedade do empregador de fornecer de graça equipamentos de proteção individual (EPIs), água potável, alojamentos dignos sempre foram vistos como um luxo dispensável. Para muitos empregadores "peões analfabetos não precisam dessas coisas".

Apesar da escravidão contemporânea no Brasil ter diferenças estruturais em relação ao sistema escravista do Brasil Colônia e do Brasil Império, abolida legalmente em 1888, o uso do trabalho escravo continuou fazendo do trabalhador uma mera peça de reprodução econômica, com muita frequencia tratado de forma brutal e com o mais absoluto desrespeito a própria condição humana do trabalhador. Assim, podemos afirmar que o trabalho escravo nunca desapareceu completamente do território nacional depois de seu fim legal em 1888.

Mesmo depois da Lei Áurea e ao longo do século XX a escravidão no Brasil continuou sendo praticada em localidades remotas e interioranas do país, adquirindo novos métodos e formas de escravizar a pessoa humana, aprimorando as técnicas de exploração com novas roupagens e novos discursos ideológicos. No mundo rural brasileiro permaneceu sob formas inovadas, a função colonial atribuída à terra com seus desdobramentos inerentes: usá- la para a produção de artigos agrícolas demandados pelos mercados externos, recorrendo a formas brutais de exploração do trabalho.

Dessa forma a terra monopolizada por poucos proprietários e hegemonizada por monoculturas restritas a alguns produtos destinados à exportação, sob a orientação do chamado agronegócio, recicla a condição colonial da propriedade agrária no Brasil, mas sempre com um histórico de sangue, expropriação, extermínio, genocídio e brutal exploração através do trabalho escravo, expulsão dos pequenos posseiros das terras em que vivem e roubo de terras públicas por falsos registros de títulos de propriedade em cartórios.

Dessa forma o mundo agrário brasileiro sempre conheceu formas de exploração dos trabalhadores rurais que vão desde a grilagem de terras públicas e a expulsão de pequenos posseiros e arrendatários de suas terras por milícias de jagunços a soldo dos fazendeiros, ao trabalho escravo em grandes propriedades monocultoras do agronegócio. Mais recentemente a influência econômica e política readquirida pelos grandes proprietários rurais nos últimos anos através do agronegócio, reafirma o histórico papel brasileiro de grande exportador agrícola na nova divisão internacional do trabalho imposta pelos países imperialistas.

Na avaliação de Santos (2001), o aparelho produtivo mundial dominado por empresas multinacionais impõe uma unicidade e homogeneização das técnicas produtivas. Quem não atende a tais imperativos fica fora do jogo. Dessa forma a produção agrícola sofre

75 com as conseqüências desse modelo pelo aparecimento de uma agricultura científica

globalizada, que nas condições brasileiras encontra no agronegócio sua forma própria de

manifestação e na superexploração da força de trabalho sua garantia de funcionamento e implementação. Assim a escravidão contemporânea é senão uma expressão desse movimento capitalista no sentido de gerar a acumulação de capitais.

Justamente por causa disso não se pode acreditar que o agronegócio será a porta de entrada definitiva do Brasil no primeiro mundo e nem tampouco o caminho para o desenvolvimento social do país. No máximo o agronegócio signifca a entrada definitiva do capitalismo no campo brasileiro, dominando completamente pela lógica capitalista, a produção agrícola, os recursos naturais e impondo uma exploração da terra e da força de trabalho.

Prado Júnior (1988) a exemplo de Santos (2001) também já havia advertido nos anos de 1960 que a exploração do capital, sobretudo a exploração do capital sobre o trabalho, nunca se traduzem num processo de civilidade e desenvolvimento social. Quem sempre termina por alcançar algumas conquistas civilizatórias e impõe limites ético-políticos e econômicos ao funcionamento do capitalismo são os trabalhadores e suas lutas. A própria história da escravidão no Brasil demonstra isso no passado e no tempo contemporâneo.

Então a partir das leituras históricas de Santos (2001) e de Prado Júnior (1988) podemos concluir que é totalmente incongruente, portanto, querer associar agronegócio ao progresso e desenvolvimento sócio-econômico do país. Isso porque o agronegócio é moderno nos recursos técnicos empregados, mas no que tange às relações de trabalho e exploração dos recursos naturais, ele recicla sob novas vestes certas características da condição colonial da exploração da terra no Brasil.

Além disso, o agronegócio mantém a tendência de concentração da grande propriedade privada da terra, reforça os vínculos da economia nacional ao mercado externo que lhe demanda certos artigos agrícolas, molda as formas próprias de exploração da terra e do trabalho escravo, que em nossos dias ainda se reproduz como uma forma brutal de exploração da força de trabalho.

76 Figura 6 - Escravos Carregam Senhora em sua liteira, na Província de São Paulo. Fotografo anônimo, 1860. Fonte: http://militanciaviva.blogspot.com.br/2011_archive.html

Se na primeira metade do século XX esse processo foi incipiente, a partir da segunda metade do mesmo século voltou a ter uma expressão significativa no mundo do trabalho, principalmente no meio rural ao ponto do Ministério do Trabalho e Emprego definir na sua Instrução Normativa nº1, de 1994, a moderna escravidão como: "condição análoga à de escravo é aquela que se dá através de fraude, dívida e retenção de salários e documentos, ameaça e violência."16

As diferenças étnicas não são mais fundamentais para escolher a mão-de-obra e a seleção do trabalhador se dá pela capacidade da força física de trabalho e não pela cor. Diante disso o escravo contemporâneo é o branco, o mestiço, o negro, são os pobres, os excluídos sociais, os que vivem sem direitos, sem a proteção do Estado, sem políticas públicas e, acima de tudo, sem os direitos humanos mais elementares.

Contudo de acordo com integrantes dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do do Trabalho e Emprego há uma grande incidência de afrodescendentes entre os libertos da escravidão contemporânea e segundo a OIT (2007):

Apesar de não haver um levantamento estatístico sobre isso há evidências de que um grande número de afrodescendentes estão entre os libertos da escravidão, em uma

16 Cf. Instrução Normativa 1 do Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em http://portal.mte.gov.br/.../instrucaonormativa. Consultado em 28/11/2011.

77 proporção maior do que a que ocorre no restante da população brasileira. O histórico da desigualdade da população negra não se alterou substancialmente. [...] Apesar da escravidão ter se tornado oficialmente ilegal, após a assinatura da Lei Áurea, em maio de 1888, o Estado e a sociedade não garantiram condições para os libertos poderem efetivar sua cidadania. Por fim, as estatísticas oficiais mostram que há mais negros pobres no Brasil. (PESQUISA TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI, OIT, 2007, p. 35)

Mas apesar das observações da pesquisa da OIT (2007) os escravizados de hoje são qualquer pessoa miserável e ávida por um emprego que lhe possibilite alguma renda e condições de sobrevivência, ainda que em condições extremamente precárias e marcadas por graves problemas de nutrição, saúde, moradia e autoestima.

Os moradores das regiões mais empobrecidas são vítimas de grande incidência de aliciamento para a escravidão, caindo nas garras dos gatos e agenciadores de trabalho justamente porque vivem em unidades da federação com menores índices de Desenvolvimento Humano (IDH), maiores índices de desrespeito da legislação trabalhista e alto grau de conivência das autoridades públicas com a superexploração do trabalhador.

Essa situação é responsável inclusive por uma desagregação crescente de laços familiares uma vez que muitos trabalhadores ao irem para outras regiões em busca de emprego acabam não conseguindo o dinheiro que pretendiam e muitos por isso acabam ficando envergonhados de retornar para casa numa situação pior do que aquela de que saíram, rompendo assim quaisquer laços afetivos.

Isso termina gerando nesses trabalhadores o agravamento dos processos psicológicos, já elevados, de baixa autoestima, fazendo com que muitos deles ao não quererem retornar para suas casas, perderem assim o contato com a família ou transformando- se "peões do trecho", “os que vivem de trabalhar para os outros”, uma espécie de encarnação dos chamados trabalhadores "sem eira nem beira", que vivem sem lugar certo, sem querer saber da família e errantes pelo mundo.

Esses trabalhadores chamados de "peões do trecho", são brasileiros abandonados à sua própria sorte. Muitos, inclusive, não têm documentos ou registro de qualquer forma, pois nunca foram entrevistados pelo IBGE ou jamais precisaram de um documento para serem fichados em um trabalho.

Esses são brasileiros fora das estatísticas e dos elementos básicos da cidadania, mera mão mão-de-obra a ser explorada até não terem mais forças ou qualquer utilidade para os donos do capital. São trabalhadores também chamados de "migrantes", "temporários", "sazonais" que constituiem uma massa humana invisível das áreas do agronegócio, dispersos

78 em muitos empreendimentos econômicos e estão sujeitos a todo tipo de exploração enquanto força de trabalho.

___________________________________________________________________________

Figura 7 - Trabalhador rural, peão de trecho, Amazônia. Foto: Ricardo Funari/ 2007

Os peões de trecho vivem perambulando de cidade em cidade, de um trabalho escravo a outro, de um emprego precário a outro até o encontro com uma morte indigente, geralmente triturados pela doença, alcoolismo e indiferença social. Eles são vistos por grande parte das sociedades locais onde atuam e transitam como uma espécie de escória social, para muitos pior do que as prostitutas, pois frequentemente estão envolvidos em "badernas", brigas, alcoolismo e até pequenos furtos e calotes em bares, pequenos mercados e comércios.

Dessa maneira as sociedades locais geralmente em vez de ver os peões de trecho como vítimas das engrenagens capitalistas geralmente os veem como marginais, bandidos, ladrões, ou beberrões arruaceiros, indignos de qualquer tipo de confiança, pessoas "perigosas", "desocupadas", que devem ser presas, castigadas e ou punidas pela lei, afastadas da convivência social por desmerecimento e condutas antissociais.

Os peões de trecho do universo rural têm seu equivalente também na construção civil, naqueles trabalhadores que vivem passando de um canteiro de obras a outro, a exemplo dos grandes projetos públicos e privados da Amazônia Legal, que geram a monopolização da terra por grande empresas e uma população flutuante, que se desloca para as periferias urbanas ou segue atrás das empresas.

79 Muitos dos peões de trecho da construção civil são ex-pequenos proprietários, ex- posseiros e ex-agricultores familiares do Maranhão, Piauí ou Tocantins, mas também da Bahia, do Ceará, da Bahia, de Minas Gerais e dos mais variados lugares do Brasil. São trabalhadores que já participaram da construção de projetos como usinas, estradas e outros empreendimentos do grande capital no Brasil e que se desligaram da sua antiga trajetória camponesa para ganhar pequenos salários, com expectativas em relação aos patrões, construídas sobre valores morais, como honra e lealdade, exatamente como no trabalho rural.

A diferença básica entre um peão de trecho da construção civil e um que trabalha nas fazendas do agronegócio é que estes acabam tendo nos alojamentos dos canteiros de obras um maior contato entre diversos tipos de trabalhadores oriundos dos municípios vizinhos do entorno, que só voltam para casa nos fins de semana, e fazem desse espaço do trabalho também um espaço da troca de experiências, da reflexão sobre as condições de vida e de trabalho.

O alojamento de um canteiro de obras é muito distinto de um alojamento de fazenda, geralmente isolado no meio da mata, dependente do barracão do gato ou capataz e submetido à vigilância armada de pistoleiros. Nos canteiros de obras, por mais que possa haver situações análogas à escravidão e um certo controle por parte dos capitalistas, sempre existem maiores possibilidades de reuniões de todos os trabalhadores da empresa, de expor a organização de ações perante um grande número de operários.

No alojamento de um canteiro de obras, os operários tomam conhecimento de toda a organização do trabalho da empresa; ficam sabendo dos acidentes ocorridos na obra, das atitudes tomadas pelos mestres-de-obras, das condições de trabalho das outras empresas, das condições de alimentação, das características dos alojamentos onde estão e de maior circulação de informações do mundo exterior, que chegam através de rádios, TVs e comentários de peões que se deslocam para suas residências.

As situações de superexploração no meio rural e urbano do Brasil só demonstram o quanto o desenvolvimento desigual e combinado da economia brasileira tem sido feito à base da precarização da força de trabalho, no âmbito do patrimonialismo prevalecente nas instituições públicas e privadas, que utilizam das práticas sociais mais arcaicas ao mesmo tempo que moderniza o uso de tecnologias e amplia a produtividade.

De acordo com Marini (2005) as diferenças de produtividade do trabalho entre a periferia e os países centrais refletem diferentes composições orgânicas do capital, fazendo com que, na esfera da circulação das mercadorias entre periferia e centro, a mais-valia

80 produzida no Brasil e demais países latino-americanos (de menor composição orgânica) seja apropriada pelos países centrais (de maior composição orgânica). (MARINI, 2005, p. 155)

Para Marini (2005) a redução das taxas de lucro decorrentes desta transferência de valor exacerbaria a ânsia por lucro dos capitalistas da periferia, que passariam a superexplorar os trabalhadores. Assim nas palavras de Marini: “O efeito da troca desigual é – à medida que coloca obstáculos a sua plena satisfação – o de exacerbar esse afã por lucro e aguçar, portanto, os métodos de extração de trabalho excedente” (MARINI, 2005, p. 156).

Nesse "afã por lucro" a escravidão contemporânea no Brasil não tem mais um caráter racial como no passado recente, nem é uma continuidade direta das práticas escravocratas do passado. Todavia tem que ver com a mentalidade da própria burguesia brasileira, com a sua sensação de impunidade, de que o poder econômico suplanta todas as outras regras estabelecidas legalmente na sociedade brasileira. Assim quanto mais as atividades econômicas capitalistas forem beneficiadas pela escravidão e mais impunidade dos escravistas houver, mais espaço para ela existir haverá.

O conceito de escravidão contemporânea significa uma gama de fenômenos já conhecidos da experiência escravocrata do passado e que sempre giram no entorno do sacrifício da liberdade pessoal; sujeição e dominação dos indivíduos por outrem. Uma condição de desigualdade e miséria humana que reproduz relações materiais e sociais desiguais, de violação da dignidade do ser humano.

No Brasil a escravidão contemporânea é um fenômeno basicamente rural, mas o número de empresas e empregadores urbanos que utilizam o trabalho escravo vem crescendo, principalmente por causa da terceirização das cadeias produtivas. Na última atualização da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em janeiro de 2012, houve a inclusão de 52 novos registros de empresas urbanas envolvidas nesse tipo de crime, num cadastro que chegou a 294 nomes totais, envolvendo principalmente grupos usineiros, madeireiras, empreiteiras e grandes grupos do agronegócio.17

No documento Download/Open (páginas 72-80)

Outline

Documentos relacionados