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A Nova Escravatura na Economia Global

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AGRONEGÓCIO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A pedagogia dos aços golpeia no corpo

ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA DO SÉCULO XX AO SÉCULO

1.20 A Nova Escravatura na Economia Global

Bales (2011) ao analisar essa crescente descartabilidade da vida no Brasil e especificamente na Amazônia faz um relato impressionante quando comenta:

Mais de dez vezes ao acordar de manhã cedo descobri o corpo de uma jovem flutuando na água ao pé da lancha. Ninguém se preocupava em enterrar as raparigas. Lançavam simplesmente os corpos ao rio para serem comidos pelos peixes. Este era o destino das jovens escravizadas como prostitutas nas cidades mineiras da Amazônia", explicou Antônia Pinto, que ali trabalhou como cozinheira e alcoviteira. [..] as raparigas são espancadas, violadas, e postas a trabalhar como prostitutas. Os seus “agentes de recrutamento” recebem uma pequena soma por cada uma delas, talvez uns 150 dólares. As “recrutas” tornaram-se escravas — não através da posse legal, mas através da autoridade decisiva da violência. (BALES, 2001, p.12)

Bales (2011) ao nos relatar histórias como as contadas a ele por Antônia Pinto, que vivenciou pessoalmente muitas histórias trágicas de meninas prostituídas e massacradas, mostra que a escravatura contemporânea é algo terrível e certamente é um conceito que esconde significados ainda mais trágicos que a escravidão de outros periodos, justamente

140 porque a descartabilidade das pessoas e os tipos de escravidões ampliaram-se incluindo componentes como a prostituição e o trabalho infantil.

Bales (2011) deixa isso bem claro quando nas histórias de crianças de onze anos escravizadas e prostituídas na Amazônia:

O mundo desenvolvido deplora a destruição das florestas tropicais, mas poucas pessoas compreendem que o trabalho escravo é utilizado para as destruir. Os homens são atraídos para a região com promessas de riqueza em pó de ouro, e raparigas de apenas onze anos recebem ofertas de emprego nos escritórios e restaurantes que servem as minas. Quando chegam às longínquas regiões mineiras, os homens são aprisionados e forçados a trabalhar nas minas. (BALES, 2001, p.12)

A ampliação dos dramas humanos na escravidão contemporânea provoca muitas vezes nos seus analistas o irresistível uso de metáforas a toda espécie de acontecimentos que termina por enfraquecer e banalizar o próprio uso do conceito de escravidão. O que só torna mais difícil a compreensão sociológica, antropológica, histórica, econômica e política da questão e dificulta a compreensão, por exemplo, do próprio papel do Estado na reprodução e combate a escravidão contemporânea.

Isso porque há um movimento muito contraditório no que tange à ação do Estado em relação à escravidão. De um lado há variados compromissos e graus variados de comprometimentos com o poder econômico mas por outro existe uma ação decisiva de coibir a atuação dos escravizadores.

Assim fica evidente que o fenômeno da escravidão contemporânea é um terreno onde se afirmam e se negam simultaneamente diversos interesses, não só de caráter econômico, mas também de caráter político, cultural, social e do próprio imaginário social. Por isso há tantas incompatibilidades no funcionamento da ação estatal quando age no combate à escravidão.

Bales (2001) evidencia isso quando afirma:

A polícia local actua como reforço para controlar os escravos. Como uma jovem explicava: “Aqui os donos de bordéis mandam a polícia bater-nos… se fugimos, eles perseguem-nos, se nos acham matam-nos, ou se não nos matam batem-nos todo o caminho de volta ao bordel.” Os bordéis são incrivelmente lucrativos. A rapariga que “custa” 150 dólares pode ser vendida para sexo até dez vezes por noite e render 10 000 dólares por mês. As únicas despesas são os pagamentos à polícia e uma bagatela para comida. Se uma rapariga causa problemas, foge ou adoece, é fácil livrar-se dela e substituí-la. Antónia Pinto descreveu o que aconteceu a uma menina de onze anos que se recusou a fazer sexo com um mineiro: “Depois de decapitá-la

141 com o machete, o mineiro circulou na sua lancha rápida, exibindo-a para os outros mineiros, que aplaudiam e gritavam aprovadoramente.” (BALES, 2001, p.13)

Segundo Bales, ter dinheiro apenas para sobreviver, receber salários que mal dão para viver, pode chamar-se um salário de escravo, mas não é escravatura. Os meeiros têm uma vida difícil, mas não são escravos. O trabalho infantil é horrível, mas não é necessariamente escravatura. Portanto não basta a superexploração do trabalho para haver escravidão.

Le Breton (2002), jornalista, ambientalista e escritora inglesa, ao estudar os conflitos agrários da Amazônia e a questão do trabalho escravo também define esse quadro da seguinte forma:

Sentada no ônibus que pula ao longo das intermináveis e esburacadas estradas da Amazônia, eu reflito sobre a situação da escravidão moderna no Brasil. Seringueiros no Acre continuam a viver eternamente endividados com os atravessadores que compram sua borracha em troca do mínimo vital. A prostituição infantil floresce nas remotas minas de ouro do interior. Carvoeiros trabalham 24 horas por dia em condições subumanas, queimando a sola dos pés e cuspindo os pulmões para fora de tanto tossir, vendendo barato e comprando caro. No interior da Amazônia, homens trabalham no corte e na queima da floresta numa nova versão do antigo mal da escravidão por dívida. Pela janela, vejo terras planas do Tocantins, a zona de transição entre o cerrado e a floresta. Capoeiras alternam-se com grandes campos por onde se espalham tristes carcaças de árvores queimadas; numa das mais irresponsáveis devastações da história da humanidade, ali a floresta desapareceu para sempre. (LE BRETON, 2002, p. 21)

Esse fenômeno social e ambiental bem definido por Le Breton (2002), apesar de assentar-se sobre as estruturas econômicas atuais, tem raízes profundas na história brasileira, sendo o resultado de um modo de organização social e política que se instaurou no Brasil já fazem alguns séculos, qual seja o do patriarcalismo e do patrimonialismo. 25

25O patrimonialismo é a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e os limites do privado. No

Brasil, o patrimonialismo fora implantado pelo Estado colonial português, quando o processo de concessão de títulos, de terras e poderes quase absolutos aos senhores de terra legou à posteridade uma prática político-administrativa em que o público e o privado não se distingue perante as autoridades. Assim, torna-se "natural" desde o período colonial (1500 - 1822), perpassando pelo período Imperial (1822 - 1889) e chegando mesmo à República (1889 - 2011) a confusão entre o público e o privado. Assim o Estado extralegalemnte tolera o legado do poder privado, que mesmo hoje, ainda sobrevive dentro da máquina governamental com o uso e presença do "jeitinho brasileiro",quando a maioria dos políticos vêem o cargo público que ocupam como uma "propriedade privada" sua, ou de sua família, em detrimento dos interesses da coletividade. Já o patriarcalismo é um modo de estruturação e organização da vida coletiva baseado no poder de um “pai”, isto é, prevalecem as relações masculinas sobre as femininas; e o poder de alguns homens são mais fortes sobre outros. A partir daí uma série de elementos sociais e culturais vão se estruturando e colocando cada vez mais alguns homens como expressão de poder e mando acima das mulheres e outros homens. A ideologia patriarcal no Brasil não atingiu apenas o relacionamento entre homens e mulheres, mas recaiu sobre o funcionamento político do país em que a figura líderes centralizadores afeta os valores, o desempenho dos papéis e as formas de organização das instituições. Sob o jugo patriarcal, a família, a política, os negócios, as relações de trabalho são subjugada pelo homem, pelo marido, pelo chefe político e patrão que deve ser obedecido, numa clara falta de democracia. As consequências negativas disso podemos vislumbrar nas organizações e instituições, nas relações trabalhistas, na desconfiança entre homens e mulheres, no idioma, nas crenças, nos ritos, na sexualidade, etc. Muitas dessas relações onde prevalece os mandos e os desmandos, ainda são naturalmente aceitas e justificadas em nossa sociedade.

142 Dessa forma, desde a gênese social e econômica do Brasil, o proprietário, geralmente o patriarca de uma família, sempre era visto como o dono de tudo (das fazendas, da esposa, dos filhos, parentes, agregados, escravos etc.) e, por isso mesmo, sendo o Senhor absoluto que podia dispor das “suas” propriedades da forma como quisesse, tendo inclusive “direito” de decidir sobre a vida e morte de quem estivesse sob seu poder de mando.

Esse tipo de comportamento acabou inclusive por extravasar para o campo político, levando a um comportamento característico das oligarquias e a grupos políticos que frequentemente à frente do Estado não possuem distinções entre os limites do público e os limites do privado, executando o patriarcalismo e o patrimonialismo com naturalidade e como se fosse algo que todos devêssemos aceitar como natural, que sempre existiu e que sempre existirá.

O patriarcalismo e o patrimonialismo, enquanto práticas comuns na sociedade brasileira, não mudaram substancialmente com a chegada das novas relações econômicas advindas do capitalismo financeiro globalizado atual. Pelo contrário, adaptaram-se muito bem à nova realidade da economia nacional, permitindo a continuidade da reprodução e acumulações de capitais e a manutenção de relações atrasadas no relacionamento do capital com o trabalho.

É assim que a escravização de milhares de brasileiros, como forma de baratear os custos de produtos exportáveis e obter vantagens econômicas, continua sendo uma prática largamente usada e ameaça virar um sistema de escravidão moderna, pelo é isso que vem demonstrando os números pesquisados por entidades governamentais e da sociedade civil.

Na ponta de linha, está uma população vulnerável, sem acesso à educação, à saúde ou à terra, a oportunidades de trabalho e a renda, e que muitas vezes, por ser forçada à migração interna, empurrados pelo desespero ou mesmo pelo sonho de uma vida melhor, acabam caindo sob o jugo da escravidão, perpetuando um histórico retrocesso no mundo do trabalho e uma situação de atraso social compatível com a própria situação do desenvolvimento desigual e combinado das forças produtivas já presentes no cenário nacional.

Essa lógica que faz com que frequentemente os empresários do agronegócio, os políticos e grandes fazendeiros flagrados praticando o trabalho escravo em suas propriedades privadas encontram nos meios de comunicação e no próprio Congresso nacional a leniência capaz de perpetuar a reprodução permanente desse crime.

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