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A Escravidão Moderna e a Escravidão Contemporânea: O Aperfeiçoamento da Exploração

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AGRONEGÓCIO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A pedagogia dos aços golpeia no corpo

1.6 A Escravidão Moderna e a Escravidão Contemporânea: O Aperfeiçoamento da Exploração

A escravidão contemporânea representou o aperfeiçoamento da escravidão que houve no Brasil do século XVI ao XIX, pois ela não se restringiu ao negro e ao índio, mas escravizou o colono estrangeiro, o mestiço, o branco pobre rebaixado como trabalhador em todos os níveis em relação aos outros brasileiros e sempre vistos como pessoas desqualificadas social e culturalmente.

64 Os escravos contemporâneos são mais produtivos do que os escravos do século XVI ao XIX, porque sempre tem a expectativa de receber algum tipo de remuneração, são mais fáceis de se conseguir (porque há uma grande oferta disponível de mão de obra) e tem custos mais baratos, pois seus "contratantes" não disponibilizam gratuitamente nem comida, nem alojamento, nem remédios, nem transporte e até mesmo ferramentas de trabalho.

Esses trabalhadores são espoliados facilmente pelo capital para propiciar concorrência comercial, sendo vítimas da miséria social e enquanto escravos continuam se apresentando como resultado da exploração econômica imposta por quem tem opulência material, poder político, educação formal e status social. As classes sociais dominantes sempre impuseram sua vontade a partir a exclusão social e das necessidades de sobrevivência de uma ampla parcela da população brasileira.

Sakamoto (2003) comentando a esse respeito afirma que:

O desemprego proporciona hoje mão-de-obra farta. Na escravidão contemporânea, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, sem distinção de cor ou credo. Porém, tanto na escravidão imperial como na do Brasil de hoje, mantém-se a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos. (SAKAMOTO, 2003, p. 02)

Esses escravos da miséria do mundo contemporâneo diferentemente do que é dito por alguns militantes sociais nem sempre são escravizados por fazendeiros de mentalidade arcaica, hoje são também mantidos em cativeiros por grandes empresas capitalistas, empreendimentos privados que tiveram apoio direto ou indireto do Estado e que são responsáveis pela inserção do Brasil no mercado mundial.

A escravidão contemporânea no Brasil é um crime praticado principalmente no campo por diferentes tipos de empresários, que atentam contra a liberdade individual e contra a dignidade humana. Porque, segundo Castilho (1999. p. 93), "a dignidade abrange tudo, e a escravidão tira tudo". Assim é evidente que o trabalho escravo viola todos os princípios de justiça social, de igualdade, de liberdade e de respeito a legislação brasileira e até em códigos legais internacionais, tendo em vista que o trabalhador fica privado de todos os direitos previstos na Constituição Federal, na Consolidação das Leis do Trabalho e nas demais legislações.

Para o trabalhador escravizado não imperam as regras sobre o registro em carteira, o salário, a jornada de trabalho, os descansos semanais remunerados, licenças, férias, 13º

65 salário, fundo de garantia por tempo de serviço, benefícios da Previdência social, entre outros dispositivos que são aplicados aos trabalhadores em geral. Dessa forma, segundo Cassemiro (2011, p. 02) há pelo menos dezesseis elementos característicos da escravidão contemporânea no Brasil:

1) falta de pagamento de salários;

2) alojamento em condições subumanas (barracos de lona, casas de taipa ou pau-a- pique, amiúde infestadas por insetos, a exemplo do barbeiro, vetor da doença de Chagas);

3) inexistência de acomodações indevassadas para homens, mulheres e crianças (convivência promíscua);

4) inexistência de instalações sanitárias adequadas e precárias condições de saúde e higiene (falta de material de primeiros socorros);

5) falta de água potável e alimentação parca;

6) aliciamento de uma para outra localidade do território nacional (que configura, por si só, o crime do artigo 207 do Código Penal);

7) aliciamento e trabalhadores de fora para dentro ou de dentro para fora do país (caso dos hispano-americanos mantidos em condições análogas à de escravo em fábricas têxteis clandestinas nos grandes centros urbanos);

8) truck-system (correspondente, às mais das vezes, ao popular "barracão", no qual o trabalhador se endivida para além dos limites de seus supostos rendimentos);

9) inexistência de refeitório adequado para os trabalhadores e de cozinha adequada para o preparo de alimentos;

10) ausência de equipamentos de proteção individual (EPI) ou coletiva (EPC); 11) meio ambiente de trabalho nocivo ou inóspito (região de selva, chão batido, exposição a habitat de animais peçonhentos, ambiente excessivamente úmido etc.);

12) coação moral;

13) cerceamento à liberdade ambulatória (direito de ir e vir limitado pela distância e pela precariedade de acesso);

14) falta de assistência médica;

15) vigilância armada e/ou presença de armas na fazenda; 16) ausência de registro em CTPS.

Se na colônia e no império a exploração da mão-de-obra negra era legalizada e a posse de escravos era inclusive um fator de distinção social, após mais de 350 anos de escravidão ela continua existindo, mas agora como uma atividade clandestina e ilegal, sendo negada com veemência pelos que a praticam. Nenhum empresário do campo ou das cidades gosta de ser

66 identificado como escravista, justamente porque isso "atrapalha" seus negócios e pode fazê-los "perder dinheiro".

No passado com o fim da escravidão oficial em 1888 para todos os que viviam exclusivamente do suor de seu rosto e do trabalho de suas mãos, o preço da liberdade foi a miséria, a impossibilidade de acesso à terra, à educação, à condições dignas de vida. No presente isso pouco alterou-se para milhares de trabalhadores braçais brasileiros que continuam sem ter acesso a terra, a políticas públicas de inclusão social e a cidadania.

Nas palavras do Prof. Araújo, da Universidade Federal da Bahia:

No processo da abolição da escravidão, extinguiu-se o regime jurídico da escravidão e o regime econômico baseado no trabalho escravo, mas sobreviveram, reciclaram-se e praticaram-se contra os descendentes de africanos no Brasil os mecanismos sociais de produção de um discriminado, já não mais escravo, agora negro e mestiço, rebaixado em todos os níveis em relação aos outros brasileiros que não aparentavam traços biológicos da ascendência africana. (...) Muitos foram os que saíram dos engenhos e fazendas para buscarem a liberdade na pesca e na mariscagem, outros para seguirem o Conselheiro, houve os que se embrenharam nas matas para constituírem os novos quilombos. Para todos esses, o preço da liberdade era a miséria. Para a grande maioria, no entanto, a impossibilidade de acesso à terra tolhia os sonhos de liberdade. O antigo senhor barão foi substituído pelo coronel proprietário. (ARAUJO, 2000, pp. 2 – 3)

Araújo (2000) deixa claro assim que o fim oficial da escravidão no Brasil, que em nenhum outro país do Novo Mundo, teve vida tão longa e levou o Brasil a ser o último país do mundo a aboli-la juridicamente, foi uma possibilidade de recomeço, de busca de outras relações sociais que não se efetivou.

A vida longa da escravidão no Brasil enquanto instituição gerou mais do que implicações econômicas, gerou discriminações, exclusão social e o rebaixamento social de quem não tinha propriedade, poder político, estudo e status social, sendo a miséria, a impossibilidade de acesso a um pedaço de chão e a um trabalho digno mantida e reproduzida no cotidiano, fator decisivo de impedimento de avanço socioeconômico para milhões de brasileiros.

A “nova vida” tão esperada pelos negros escravizados do Brasil foi fonte de dissabores e o grande movimento abolicionista, que havia congregado pessoas de todas as classes pela libertação dos escravos, não se transformou em movimento político de valorização da força de trabalho, que incluísse uma legislação trabalhista forte, capacitação da mão-de-obra, salários dignos, direito a saúde, moradia, jornada de trabalho definida, etc.

67 A população negra e os trabalhadores pobres em geral descobriram rapidamente que o abolicionismo era contra o instituto da escravidão, mas não era necessariamente a favor do escravo e da dignidade do trabalhador e que não significaria uma garantia de emprego, salário e uma vida melhor e marcada pela inclusão social.

Os antigos beneficiários e admiradores da escravidão, ao invés de rejubilarem-se com a inexistência de vinganças ou violências populares após a abolição, construíram solidamente uma raiva do "treze de maio", responsabilizado pela ruína da classe senhorial. Tanto que o povo brasileiro, negro e mestiço em sua grande maioria, foram punidos por extensão por ter acesso à liberdade. Foram considerados incapazes para a construção de um Brasil modernizado, ao ponto da imigração européia ser eleita, então, como remédio milagroso para a injeção de sangue de branco e de culturas de branco no considerado “doentio” povo negro e mestiço,visto por muitos como preguiçosos, indolentes, incapazes.

Esse discurso ideológico persiste até hoje na sociedade brasileira, como um mecanismo perverso de discriminação do pobre, trabalhador braçal e desqualificado, como se a pobreza fosse uma escolha e não uma imposição social e econômica com profundas raízes no sistema capitalista.

O trabalho escravo enquanto uma prática econômica historicamente presente nas relações sociais da produção brasileira, foi aceitável e visto, durante muitos séculos, dentro de uma lógica mercadológica em que a mão-de-obra não deveria onerar o custo do produto mais do que já havia onerado com seu preço de aquisição enquanto mercadoria. Isso criou uma mentalidade em que o investidor brasileiro quase não conta com os gastos que obrigatoriamente tem que fazer com a mão-de-obra.

Assim embora tenha sido declarada como um tipo de exploração pouco rentável e abolida do ambiente capitalista, a escravidão deixou de herança relações sócio-político- econômicas que dificultam até hoje a constituição de um Estado de Direito, uma democracia consistente e uma postura social fortemente contrária a qualquer tipo de barbárie e desumanidade, onde o lucro é princípio absoluto e a mão-de-obra tem que ser sugada a máximo.

Então no Brasil existência da escravidão contemporânea, dando seguimento a prática capitalista de “coisificar” o homem ao máximo e torná-lo um mero acessório produtivo, objeto de posse e de uso até a exaustão e depois praticar o seu “descarte”, quando não mais serve aos interesses imediatos do lucro e da rentabilidade transformou-se num princípio absoluto, que tem resistido as tentativas de humanização justamente porque são uma expressão das relações capital- trabalho.

68 A escravidão contemporânea no Brasil como uma das práticas trabalhistas do sistema capitalista serve para aumentar sua eficiência espoliativa e propiciar a acumulação de capitais. O escravizado de ontem era um instrumento que se adquiria no mercado; era, efetivamente, um item que compunha o patrimônio do proprietário. Havia, portanto, uma preocupação com a sua depreciação. Era, nos termos de Marx, uma mercadoria e, como tal, tinha o seu valor de mercado, estava submetida às leis da oferta e da procura.

Já o escravo de hoje no Brasil é desprovido destas características na sociedade em que vivemos. Embora a globalização cada vez mais exija as inovações tecnológicas, a concorrência comercial sem limites exija a qualificação profissional, para a inserção no mercado de trabalho formal, aqui a precarização do trabalho e a escravidão é antes de tudo um diferencial competitivo, um instrumento eficiente do capital para "economizar" na produção e "baratear" a venda dos seus produtos.

O trabalho escravo contemporâneo é fundamentalmente uma formas de exploração inserido na mescla do desenvolvimento desigual e combinado para viabilizar a extração da mais- valia e propiciar a burguesia a lucratividade sem limites. As transformações e novas formas de organização do mundo do trabalho que vem gerando a precarizando os direitos trabalhistas e usando relações sociais de trabalho, que muitos julgavam que já haviam se encerrado no país, é a mais pura expressão do capitalismo que pode até fazer um discurso de humanização e respeito aos trabalhadores, mas para propiciar cada vez mais o lucro e o acúmulo desenfreado de capitais, estabelece uma multiplicidade ampla de formas de exploração e dominação burguesa.

Apesar do capitalismo globalizado atual usar cada vez mais novas tecnologias e inovar amplos setores da produção industrial e agrícola, os desrespeito a condição humana do trabalhador, seja ele doméstico, operário, trabalhador rural ou subempregado continua vigoroso e demonstra a verdadeira face do capitalismo. Portanto, compreender a escravidão como uma expressão capitalista é vislumbrar o entendimento histórico de suas contradições e a necessidade da luta contra o capital para por fim a exploração do mundo do trabalho e suas várias maneiras de exploração da força de trabalho.

Especificamente no Brasil quanto mais desqualificado for o trabalhador, mais pobre, sem escolarização e viver em regiões sem grande infra-estrutura social, mais possibilidade de ser aliciado para o trabalho escravo ele está sujeito. Isso ocorre porque o trabalhador é antes de mais nada refém de sua própria miséria, falta de inserção social e exercício da cidadania, conforme está previsto na Constituição Federal.

No mundo contemporâneo cada vez mais dezenas de milhares de pessoas são traficadas, usadas para se obter lucratividade com a prostituição e trabalho forçado. Nesse

69 contexto a escravidão por dívida também desconhece fronteiras, etnias, gênero e idade. Atualmente em quase todos os países do mundo mulheres, crianças, indígenas, negros, brancos, mestiços e migrantes de todo tipo são os principais alvos do trabalho escravo no mundo, pela vulnerabilidade social em que se encontram. Isso só demonstra que a escravidão contemporânea é gerada por multiplos fatores de ordem econômica, política, social e cultural. Sendo necessário desenvolver uma capacidade ampla de entendimento de sua manifestação fenomênica.

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