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TURISMO E ESTÉTICA DA MERCADORIA

4. GÊNESE E DIFUSÃO DO TURISMO

4.3 A estética da mercadoria nas raízes do turismo

As invenções de destinos, os lugares da moda e a moda de se fazer determinado tipo de viagem, fazem parte do turismo desde o tempo em que foi inventado, no século 18, quando ainda era apenas uma prática da aristocracia britânica. O turismo nascente desta época confirma o que disse Haug (1997, p. 32): “a criação e o direcionamento de necessidades luxuriosas não é em si absolutamente algo específico do capitalismo avançado”. O turismo teve origem na apropriação de modelos elitistas europeus de viagem, notadamente de um inventado modo britânico de viajar (principalmente pela França e Itália), o chamado Grand Tour. Realizado a partir do século 16, o Grand Tour foi de tal modo

divulgado por viajantes célebres, que se tornou uma desejada etapa de formação cultural para jovens filhos de endinheirados europeus.

A origem da palavra “turismo” está provavelmente ligada ao Grand Tour britânico, pois, segundo Moesch (2000, p. 10), a raiz tour de “tourisme” (turismo) aparece documentada em 1760, na Inglaterra, e tem origem nas palavras latinas tornus (torno) como substantivo e tornare (redondear, tornear, girar) como verbo, sugerindo-nos a ideia de giro, de viagem circular, de volta ao ponto de partida. Para Scattarregia (1986, p. 17), na primeira metade do século 19, a palavra “tourist” (turista) não se referia aos seguidores do nascente fenômeno turístico, mas sim aos “grands touristes”, aos seguidores do “Grand Tour” 28.

Aí mesmo, na raiz do turismo, o desejo de formação cultural e de status, já conferia uma produção estética do turismo, nos termos de uma padronização da sensualidade de Haug, pois segundo Boyer (2003, p. 40), ao retornar do Grand Tour, o jovem inglês era considerado um cavalheiro (“gentleman”), um tipo de indivíduo que tinha a reputação de ser cosmopolita e desprovido de preconceitos 29. Gemini (2008, p. 39) afirma que, se no fim do século 17, o Grand Tour se apresenta como instituição consolidada para os filhos da aristocracia e dos proprietários de terras e, no século 18, se torna um hábito também para os profissionais da burguesia em ascensão.

Segundo Cassou (1967, p. 25), a viagem, não ainda o turismo, se desenvolveu no século 18 durante o “Pré-Romantismo” e o “Romantismo”, com os viajantes partindo em

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De acordo com Moesch, a primeira utilização da palavra “tour” como título em uma obra sobre viagens, foi também em Londres, em 1810, no livro de Henry Swinburne: “Picturesque Tour Spain”. De acordo com Scattarregia (1986, p. 17), somente a partir dos anos 1850, é que o substantivo inglês “tourist” (turista) não indicava mais um aristocrata, um cavalheiro em viagem, começando a se referir a quem viaja por diversão. Segundo Lozato-Giotart (1988, p. 17), a edição de 1899 do dicionário Littrè definiu “turismo” como uma “viagem”, um “far niente”, um desejo de curiosidade. Para Ambrózio (2005, p. 106), denominar como “turismo” o deslocamento anterior à constituição desse nome é incorreto, pois além de não existir como linguagem ou pensamento até o século 19, o turismo é uma prática social acoplada à produção de mercadoria, designando a conversão da viagem a um fim em si. Ambrózio (2005, p. 106) pensa ser possível afirmar que a expressão “turismo de massa” é um pleonasmo, pois “o turismo é de massa ou significa outra coisa”, já que é de massa não apenas devido às multidões de indivíduos que ele envolve, mas porque existe como “produção em massa” de espaço-mercadoria.

29 Ortega y Gasset (1991, p. 43) observa que o gentleman não é o aristocrata, apesar de terem sido os aristocratas os idealizadores desse tipo de homem, inspirados por aquilo que diferenciava o aristocrata inglês de todos os outros tipos de nobres, criado protótipo de existência, no início do século 19, quando passa a valer para todo o mundo, não só na Inglaterra. O aristocrata é, antes de tudo, herdeiro, um homem que possui meios de vida consideráveis, mas que não teve que lutar para conquistá-los. Já o gentleman, enquanto tal, afirma Ortega y Gasset (1991, p. 44), não é o herdeiro, ao contrário, ser gentleman supõe que o homem tenha de lutar na vida, de exercer profissões e ofícios, sobretudo, os práticos (“o gentleman não é intelectual”) e é precisamente nessa luta que tem de ser gentleman.

busca de paisagens e monumentos. De acordo com Cassou (1967, p. 26), o Romantismo foi uma grande época de viagens, que tornou Veneza, os Alpes e muitos outros lugares legendários, graças a anos de peregrinação e às diversas aventuras amorosas de poetas, mulheres célebres e músicos. Os homens dessa época, afirma Cassou (1967, p. 27), foram levados por um movimento de vitalidade crescente e era inconcebível, para eles, que o desejo de conhecimento não fosse acompanhado de um desejo de alegria pessoal e, ao mesmo tempo, de um desejo de alegria de outros e da manifestação à consideração do universo e de todos os homens.

De acordo com Boyer (2003, p. 21), o “Journal de voyage” de Montaigne, que empreendeu uma viagem à Itália em 1581, foi descoberto em 1774 e sua divulgação tornou a Itália o “grande destino cultural”. Goethe, que também realizou uma viagem à Itália, entre 1786 e 1788, em uma carta escrita em Roma, três meses depois de ter iniciado sua jornada, declara: “Nada há, de fato, que se compare à nova vida que a contemplação de uma terra estranha descortina ao homem afeito à reflexão. Embora eu siga sendo sempre a mesma pessoa, creio ter mudado até os ossos” (GOETHE, 1999, p. 173) 30. A descrição de um lugar por parte de um viajante que, ao retornar ao seu país, escrevia um relato e consagrava assim a reputação de um lugar, tornou-se um processo clássico de “descoberta” no século 19 (KNAFOU, 1991, p. 13).

O uso da palavra “descoberta”, não se refere ao fato de se descobrir um lugar em si, adverte Knafou, mas diz respeito ao fato de descobrir outra forma de utilização do lugar, desta feita por pessoas estrangeiras a ele, ou seja, é a “invenção do lugar turístico”. Ao seu modo, a difusão desses relatos, bem como de livros de orientação para viajantes, inclusive promotores de outros “olhares” para os turistas, o caráter das viagens também se modificou, inclusive do Grand Tour. Segundo Urry (1996, pp. 19-20),

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Desde o século 19, algumas cidades italianas se preparavam para receber turistas, como Veneza, a antiga capital de uma república mercante da idade Média, que adaptava seus feriados em função dos interesses e desejos de visitantes. Atualmente, mais de seis milhões de turistas visitam Veneza a cada ano, um turismo de massa de questionável capacidade de internalização dos benefícios da atividade, já que, de muito tempo, segundo Zampetti (1976), trata-se, em grande parte, de um turismo “pendular”, ou seja, de pessoas que vão à Veneza apenas passar apenas algumas horas. Veneza vê o turismo tornar-se uma monocultura, num processo que faz dos prédios históricos apenas fachada para hotéis, restaurantes e comércio para turistas (GIRARDI- ALVES e MELIANI, 2009, p. 140). Nos últimos 50 anos, a população residente do centro histórico diminuiu quase três vezes, pois as famílias deixam a velha cidade por falta de empregos não turísticos, bem como pelo aumento dos preços de imóveis e do comércio, além do transtorno diário provocado pelo congestionamento de turistas nos espaços públicos e nos serviços de transporte. De acordo com dados fornecidos pelo Servizio Statistica e Ricerca da Comune di Venezia, a população residente no Centro Storico é cada vez menor: de 174.808 habitantes em 1951 passou para 111.570 em 1970, 78.165 em 1990, para 60.311 em 2008.

Do ‘Grand Tour clássico’, baseado em observações e registro neutro de galerias, museus e artefatos culturais, passou-se para o ‘Grand Tour romântico’, que presenciou a emergência do turismo voltado para a paisagem e de uma experiência muito mais particular e apaixonada da beleza e do sublime. É igualmente interessante notar como se esperava que a viagem exercesse um papel primordial na educação cognitiva e perceptiva da classe média inglesa.

Esta mudança de valores, ocorrida no final do século 18 e início 19, está ligada ao movimento romântico que, enfatizando a emoção e a sensação, conduziu o desenvolvimento de um “turismo de paisagem”, notadamente com a valorização estética da natureza. De acordo com Henrique (2009, p. 67), esta visão estética atrelada à visão romântica da natureza foi difundida pelos relatos de viajantes, o que contribuiu para tornar a natureza um elemento de consumo a ser vendido, inclusive, aos turistas. “A representação romântica da natureza “selvagem” e escarpada estava na moda no final do século XIX, e a observação deste tipo de “natureza” era um dos programas preferidos das elites europeias, que criaram vários clubes de turismo” (HENRIQUE, 2009, p. 68).

A partir de um texto de Elisée Reclus de 1866 (“Du sentiment de la nature dans les sociétés modernes”), no qual o geógrafo descreve o amor a uma natureza escarpada, acidentada e alta, que transmite fascinação, Henrique (2009, pp. 82-83) comenta que

Uma natureza alta, onde a montanha oferece mais obstáculos ao homem, sua “dominação” exige maiores esforços e levam a um prazer mais sofisticado e intenso. Neste momento, se desenvolvem na Europa os clubes expedicionários que visavam criar grupos para exploração de novos lugares e de lugares selvagens, tais como os clubes alpinos com o intuito de conquistar as montanhas europeias; e os clubes de turismo, que passaram a publicar alguns relatos de viagens e instituir a ideia de viagens expedicionárias. Uma ideia muito interessante trabalhada por Reclus, neste texto, refere-se às glórias e triunfos que o homem alcançava cada vez que um novo pico de uma montanha era conquistado, e inserido nos mapeamentos, passando a ostentar uma bandeira, um símbolo do poder de dominação humana.

Por sua vez, segundo Gemini (2008, p. 40), o desenvolvimento de infraestruturas turísticas na Europa, como as estações termais em moda no século 19, forneceu a ocasião para a elite rural se socializar com a vida urbana, através dos bailes, passeios, leituras, aulas de etiqueta. Para Gemini, com o pretexto do banho e da cura, o espaço das outrora estações termais era “separado” (“separato, appartato”) e liminar (“liminale”), de modo a permitir uma experiência nova, com uma nova moral, sempre transgressiva, assim como as tradições rituais e festivas do Carnaval. Uma situação “liminóide”, nos termos de Urry (1996, p. 26),

pelas quais passariam os turistas, as situações de “suspensão” ou “inversão” das obrigações cotidianas. Os lugares visitados seriam para os turistas, de algum modo, portadores de liminaridade, na medida em que existe uma licença para um comportamento permissivo, alegre, “não sério” e o encorajamento de uma “communitas” relativamente livre de restrições (p. 27) 31.

Em meados da década de 1860, segundo Hobsbawm (2009, p. 286), um boom de férias característico da classe média já transformava partes da costa britânica, com lugares para passeios à beira mar, piers e outros embelezamentos, tornaram possíveis, para proprietários de terras, obterem lucros “insuspeitados” de faixas de rochedos e de praias antes sem nenhum valor. As estações de águas do continente europeu tinham mais estilo que as britânicas, com hotéis de luxo e divertimentos necessários para uma clientela distinta, como cassinos e bordéis de alta classe, “justificados pela desculpa de beber alguma água mineral de gosto desagradável ou de mergulhar em alguma forma líquida, sob controle do benevolente ditador, o médico” (HOBSBAWM, 2009, p. 286).

Nos balneários, a questão da saúde, que também revestiu o turismo no século 19, corrobora com o pensamento de Haug (1997, p. 32), de que a criação e o direcionamento de necessidades não é em si absolutamente algo do capitalismo avançado. Segundo Boyer (2003, p. 53), as temporadas nas estações termais e balneárias eram apresentadas como uma questão de saúde pública nos manuais, guias e relatórios do século 19. Estes guias médicos tiveram importante papel na difusão do turismo que, ao utilizar um discurso higienista, davam valor científico à escolha das estações (os lugares) e as temporadas. De acordo com Boyer (2003, p. 50),

Os guias cada vez mais numerosos ao longo do século 19, para incentivar a vinda de turistas e responder às suas necessidades, anunciavam, desde o título, uma finalidade terapêutica; eles se denominavam Guia médico; Guia do banhista em...; Informativo topográfico e médico; Informativo climatoterápico sobre...; Sobre o bom uso do inverno no Sul da França; Sobre o bom uso das águas minerais; Termalismo e medicina; Guia prático das águas.

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Urry (1996) faz uma analogia do turismo com as viagens de peregrinos: “Importantes rites de passage estão presentes no movimento de um estágio para outro. Estes estágios são três: o primeiro deles é a separação social e espacial do lugar normal de residência e dos laços sociais convencionais; o segundo é a liminaridade, onde o indivíduo encontra-se em uma ‘antiestrutura...fora do lugar e do tempo’ – os laços convencionais são suspensos, é vivenciada uma ‘communitas’, na qual as ligações são intensas e ocorre uma experiência direta do sagrado e do sobrenatural; o terceiro é a reintegração, em que o indivíduo é reintegrado ao grupo social anterior, habitualmente em um status mais elevado” (p. 26).

De acordo com Boyer (2003, p. 50), desde o século 18, ricos ingleses estavam à procura de “health places” (lugares de saúde) no continente europeu, pois crescera muito no período o número de “invalids”, como eram chamadas as pessoas de alta renda que tinham certo tipo de doença. Os médicos recomendavam a mudança de ares, que seria soberana em relação a todos os males, indicando a viagem para onde o prazer da estadia, por si só, levaria à cura ou, ao menos, ao alívio. O discurso terapêutico era dominante e o conceito de higiene deu valor geral ao que era apenas uma série de práticas de pessoas originais, como tratamentos médicos realizados no inverno, em lugares como Nice e Cannes, no sul da França 32. Boyer (2003, p. 52) cita os argumentos dos médicos Lee, Aufauvre e Clarke: ‘fujam do frio úmido do Norte para o calor do Sul (...) o calor permite viver mais ao ar livre; a contemplação da bela natureza é um elemento de cura’. De acordo com Boyer, os médicos enumeravam razões empíricas, mas omitiam a triste cronologia dos invernantes cuja vida terminou nos cemitérios da francesa região da Côte D’Azur.

Segundo Urry (1996, p. 59), no século 19, os balneários se desenvolveram porque se acreditava nas supostas propriedades do banho de mar, como restauradores da saúde. “Os banhos de sol, ao contrário, eram relativamente inusitados, em parte devido ao grande valor dado à pele alva, que significava delicadeza, ócio e reclusão” (p. 60). Valor que começou a mudar em relação às classes altas, sobretudo com o desenvolvimento, a partir dos anos 1920, de balneários que entraram na moda, como Cannes e Biarritz, ambos na França, onde a pele bronzeada era associada à suposta espontaneidade e sensualidade dos negros. Situação que se difundiu, segundo Urry (1996), pois

No período do pós-guerra era o sol, e não o mar, que, supostamente, proporcionava saúde e atração sexual. O corpo ideal passou a ser visto como aquele que é bronzeado. Esse ponto de vista foi difundido nas diversas classes sociais e o resultado é que muitos pacotes turísticos o apresentam quase como se fossem um motivo para viajar durante as férias.

32 Nice, que surgiu para o turismo, a partir da década de 1760, como um lugar onde muitos ingleses foram passar temporadas de inverno, foi uma das pioneiras na produção de espaços unicamente para o consumo de turistas. Ainda na primeira metade do século 19, foi construído um caminho público em frente ao mar da cidade, composto de jardins e instalações de serviços, chamado de “Promenade des Anglais”. O caminho, que não tinha a função de ligar um ponto a outro da cidade, servia apenas para passeio e contemplação do horizonte marinho por parte dos turistas ingleses, sempre presentes nas temporadas de inverno. O “Promenade des Anglais” ainda é um ponto turístico da cidade, bem como um espaço de uso restrito, considerando que, a partir dela, se dá o acesso a algumas praias privadas de Nice.

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