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TURISMO E ESTÉTICA DA MERCADORIA

3. SOBRE A CRÍTICA DA ESTÉTICA DA MERCADORIA

3.1 A origem da estética da mercadoria na contradição da troca

A propaganda e a comercialização destroem os vestígios da produção, reforçando o fetichismo que surge com a troca, um ato que tem sentido diverso para compradores necessitados do valor de uso e para vendedores interessados no valor de troca. Da perspectiva do comprador (que tem a necessidade do valor de uso), o ato da compra significa apenas o começo e o pressuposto para a realização de seu fim, através do uso e do desfrute da mercadoria comprada. Na perspectiva do vendedor (interessado no valor de troca), com o ato da venda, o processo está concluído e o objetivo alcançado. Dessa contradição, entre valor de uso e valor de troca, surge uma tendência que provoca sempre novas modificações no corpo da mercadoria e na sua forma de uso.

Estas modificações adicionam ao valor de uso uma “manifestação do valor de uso”, que desempenha um papel de mera aparência, um aspecto estético da mercadoria separado do objeto em si. Nesse sentido, segundo Haug (1997, p. 27),

A aparência torna-se importante – sem dúvida importantíssima – na consumação do ato da compra, enquanto ser. O que é apenas algo, mas não parece um ‘ser’, não é vendável. O que parece ser algo é vendável. A aparência estética, o valor de uso prometido pela mercadoria, surge também como função de venda autônoma no sistema de compra e venda. No sentido econômico está-se próximo de, e será

finalmente obrigatório, em razão da concorrência, ater-se ao domínio técnico e à produção desse aspecto estético. O valor de uso estético prometido pela mercadoria torna-se então instrumento para se obter dinheiro. Desse modo, o seu interesse contrário estimula, na perspectiva do valor de troca, o empenho em se tornar uma aparência de valor de uso, que exatamente por isso assume formas bastante exageradas, uma vez que, da perspectiva do valor de troca, o valor de uso não é essencial.

A estética da mercadoria, portanto, situa-se nessa relação dos interesses de troca, existente desde os primórdios do capitalismo, de subordinação do valor de uso ao valor de troca. Com a produção privada de mercadorias, produzem-se essencialmente valores de troca e não meios para a satisfação de necessidades, o que faz das mercadorias sejam mais do que tudo um meio para atingir um fim: a realização do valor de troca. Procurando ilustrar essa assertiva, Haug cita o que Marx afirmou nos Manuscritos parisienses: todo produto ‘é uma isca, com a qual se pretende atrair a essência do outro, seu dinheiro’ e que ‘toda necessidade real ou possível (do homem sensível) significa uma fraqueza que levará a mosca à armadilha’ (MARX citado por HAUG, 1997, p. 27).

O dinheiro é um mediador crucial “como extensão do homem, como poder sobre outros homens e circunstâncias”, como “mágica ampliação do raio de ação humana por meio do dinheiro” (LUKÁCS citado por BERMAN, 2007, p. 63). Em virtude de sua propriedade de tudo comprar, o dinheiro é o objeto por excelência e a universalidade desta sua propriedade é a sua natureza onipotente. Discorrendo sobre a natureza do dinheiro, para melhor compreendê-la, Marx (2006, p. 168) cita uma passagem do “Fausto” de Goethe 20 que, em seguida, é assim comentada por ele:

20

De acordo com Berman (2007, p. 50), desde que se começou a pensar em cultura moderna, a figura de Fausto, cuja história se conta desde o século 16, tem sido um dos seus heróis culturais. Segundo Berman, embora tenha assumido muitas formas, a figura de Fausto tem sido praticamente sempre a mesma, um “garoto cabeludo”, um intelectual não conformista, um marginal, um caráter suspeito. Também em todas as versões, a tragédia ou a comédia ocorre quando Fausto “perde o controle” de suas energias mentais que, a partir daí, adquirem vida própria, dinâmica e altamente explosiva. Para Berman, o Fausto de Goethe ultrapassa todos os outros, em riqueza e profundidade de perspectiva histórica, em imaginação moral, em inteligência política e percepção psicológica. Iniciado em torno de 1770, quando Goethe tinha 21 anos, seu trabalho no tema do Fausto prosseguiu por seis anos, mas Goethe não considerou a obra terminada até 1831, um ano antes de sua morte, aos 83 anos, e sua publicidade só se deu algum tempo depois. A força que anima o “Fausto goethiano”, e que o distingue dos demais, está no que Berman (2007, pp. 52) designa de “desejo de desenvolvimento”, sentimento que Fausto tenta explicar ao diabo, porém “não é fácil fazê-lo”. Assim como nas primitivas encarnações, o Fausto de Goethe também vende sua alma ao diabo em troca de dinheiro, sexo, poder, fama e glória, porém não pelo que elas representam em si, mas sim pelo desejo de “um processo dinâmico que incluiria toda sorte de experiências humanas, alegria e desgraça juntas, assimilando-as todas ao seu interminável crescimento interior; até mesmo a destruição do próprio eu seria parte integrante do seu desenvolvimento” (BERMAN, 2007, p. 53).

O que para mim existe por meio do dinheiro, aquilo que eu posso pagar, ou seja, o que o dinheiro pode comprar, sou eu, o próprio possuidor do dinheiro. O poder do dinheiro é o meu próprio poder. As propriedades do dinheiro são as minhas – do possuidor – próprias propriedades e faculdades. Aquilo que eu sou e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Consequentemente, não sou feio, porque o efeito da fealdade, o seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro. Como indivíduo, sou manco, mas o dinheiro fornece-me vinte e quatro pernas; portanto não sou manco; sou um homem detestável, indigno, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é objeto de honra, por conseguinte, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, e deste modo, também o seu possuidor é bom. Além disso, o dinheiro poupa-me, ao esforço de ser desonesto; por consequência, sou tido na conta de honesto; sou estúpido, mas o dinheiro constitui o espírito real de todas as coisas: como poderá o seu possuidor ser estúpido? Ademais, ele pode comprar para si as pessoas talentosas: quem tem poder sobre as pessoas inteligentes não será mais talentoso do que elas? Eu, que por meio do dinheiro posso tudo o que o coração humano ambiciona, não possuirei todas as capacidades humanas? Não transformará assim o dinheiro todas as minhas incapacidades no seu contrário?

Segundo Haug (1997, p. 28), logo que o valor de troca se emancipou, por meio do dinheiro, surgiu também o pressuposto para a emancipação da “perspectiva do valor de troca”, fundamentando um novo interesse que acompanha essa emancipação: o “interesse da valorização”. Usura e comércio são as duas primeiras configurações históricas advindas da emancipação do valor de troca pelo dinheiro, pois comprar para vender com lucro é a atividade do comerciante. O dinheiro, a “essência do outro”, nos termos de Marx, o que se pretende atrair com todo produto, toda mercadoria, “é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida do homem e os meios de subsistência” (MARX, 2006, p. 167).

Haug (1997, p. 27), ainda citando Marx, afirma que, na perspectiva do valor de troca, a natureza sensual do proprietário do dinheiro passa a ser observada, fortalecida e atendida em qualquer desejo, arbitrariedade ou capricho, na medida em que o capitalista ‘submete-se às suas mais abjetas ideias, buscando o casamenteiro entre ele e suas necessidades, excitando nele prazeres doentios, espreitando todas as suas fraquezas... ’ (MARX citado por HAUG, 1997, p. 27). “Amáveis préstimos” através de “amabilíssimas aparências” são oferecidos onde quer que haja carência, necessidade e precisão, por um proprietário de mercadorias, que logo em seguida apresenta a conta. “Não será diferente com o capitalista preocupado com a venda de suas mercadorias e com o futuro lucro; a ele, a propaganda oferece os seus serviços com uma aparência gentil, até a prazo” (HAUG, 1997, p. 57).

Ao nível da publicidade, o crédito se constitui como um argumento decisivo na “estratégia do desejo”, atuando tal como qualquer qualidade do produto: “está em pé de igualdade na motivação de compra com a escolha, a ‘personalização’ e a fabulação

publicitária da qual vem a ser complemento tático” (BAUDRILLARD, 2006, p. 166). Para Baudrillard, o usuário “a crédito” aprende pouco a pouco a usar o produto como se este fosse “seu”, com a ressalva de que o próprio tempo em que ele paga é aquele em que o usa, de modo que o “vencimento” do produto acha-se ligado à sua decadência. Desse modo, como disse Baudrillard (2006, p. 167), “achamo-nos continuamente em atraso com relação a nossos objetos”, já que eles estão aí, mas se encontram um ano à frente, na última prestação que os saldará ou no próximo modelo que os substituirá. Primeiro se compra para, em seguida, resgatar o compromisso por meio do trabalho, voltando-se, assim, com o crédito, a “uma situação propriamente feudal, a de uma fração de trabalho devida antecipadamente ao senhor, ao trabalho escravo” (BAUDRILLARD, 2006, p. 169) 21.

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