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Segundo George (1970 a, p. 134), a vida do homem moderno é ritmada por ciclos determinados por convenções de trabalho: ciclos cotidianos, semanais, sazonais, de vida ativa, sendo que, cada ciclo, se define por uma alternância entre trabalho e lazer. De acordo com Cordeiro (2007, p. 37), numa sociedade em que praticamente todo o tempo (de todos os dias e de quase todos os dias da semana) é tempo de trabalho, é compreensível que os períodos de “não trabalho” revistam-se de encantamento, assumam foro de raridade e se tornem artigos de luxo. Nesse tempo, o turismo é uma das possíveis práticas de lazer, na qual temos a pseudoliberdade de escolher para onde vamos viajar, bem como o que iremos fazer durante nosso tempo liberado do trabalho.

Todavia, esse tempo liberado do trabalho, na realidade, não nos pertence, pois de fato descansamos para retornarmos renovados ao trabalho, um descanso que é considerado, para as forças produtivas do capital, como necessário à reprodução da força de trabalho. Como disse Ambrózio (2005), “o turista não escapa da realidade: as férias existem para se poder trabalhar; trabalha-se para poder tirar férias e viajar — harmoniosamente de acordo com o capital, que permanentemente se multiplica apenas para continuar capaz de se multiplicar” (p. 107). Mais do que isso, no tempo em que nos deslocamos voluntariamente para praticar turismo, também estamos a serviço do capital, pois consumimos mercadorias que nos são vendidas como adequadas para satisfazer as nossas necessidades de descanso, de rompimento com o cotidiano, de evasão de nossas atividades rotineiras. Assim, como uma prática que visa satisfazer necessidades, entendemos o turismo como uma “mercadoria”, ou seja, “um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia” (MARX, 2010, p. 57).

Referindo-se à fantasia como a natureza e a origem de necessidades, Marx (2010, p. 57) faz a seguinte citação de Nicholas Barbon (1696): ‘Desejo envolve necessidade; é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o corpo. (...) A maioria [das coisas] tem valor porque satisfaz as necessidades do espírito’. De acordo com Urry (1996, pp. 29-30), a motivação básica para o consumo de mercadorias não é simplesmente “materialista”, pois os indivíduos não procuram a satisfação a partir dos produtos (de sua seleção, aquisição e

uso), porque, na verdade, a satisfação nasce da expectativa, da procura do prazer que se encontra na imaginação. Entretanto, como a realidade jamais proporciona os prazeres imaginados nos devaneios individuais, cada compra conduz a uma desilusão e ao anseio pela aquisição de novas mercadorias.

Segundo Urry (1996), “o turismo envolve necessariamente o devaneio e a expectativa de novas e diferentes experiências que divergem daquelas normalmente encontradas na vida cotidiana” (p. 30). E, a partir dos devaneios, segundo Urry (1996, p. 18), é que

Os lugares são escolhidos para serem contemplados porque existe uma expectativa, sobretudo, através dos devaneios e da fantasia, em relação a prazeres intensos, seja em escala diferente, seja envolvendo sentidos diferentes daqueles com que habitualmente nos deparamos. Tal expectativa é construída e mantida por uma variedade de práticas não turísticas, tais como o cinema, a televisão, a literatura, as revistas, os discos e os vídeos, que constroem e reforçam o olhar.

Urry (1996, p. 30) afirma ainda ser difícil conceber a natureza do turismo contemporâneo, sem considerar que suas práticas são, literalmente, construídas em nossa imaginação pela mídia e pela propaganda. Baudrillard (2006, p. 174) afirma que a publicidade tem por tarefa divulgar as características dos produtos e promover-lhes a venda, sendo que esta função objetiva permanece em princípio como sua função primordial 3. No entanto, observa Baudrillard, da informação, a publicidade passou à persuasão, depois à “persuasão clandestina”, que visa agora o consumo dirigido. A publicidade se transformou em algo que antecipa a produção, na medida em que a informação publicitária “tem dois rostos, um pelo qual ela busca instruir, e outro, pelo qual ela busca convencer” (SANTOS, 2009, p. 39).

“A publicidade é a ponte entre a produção e o consumo: demonstra a necessidade de se consumir um produto ou serviço para que tenhamos certo estilo de vida ou possamos pertencer à determinada ‘tribo’” (GUNN, 2005, p. 40). É isso que faz a publicidade do turismo que, como produto intangível, vende, de fato, os espaços dos lugares, tornados mercadorias turisticamente comercializáveis, a partir do momento em que algum tipo de trabalho humano imputa-lhes um valor de troca, seja a instalação de uma infraestrutura hoteleira e de acesso ou, ainda, fazendo marketing promocional (CORDEIRO, 2007, p. 35). Segundo Miossec (1977, p. 65), é difícil para o turista conhecer, com precisão, o valor exato de tudo o

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“Não esqueçamos, todavia, que as primeiras publicidades falavam de poções miraculosas, dos remédios caseiros e outros truques: consequentemente informação, mas das mais tendenciosas” (BAUDRILLARD, 2006, p. 174).

que se oferece nos lugares em que ele sonha, sendo os especialistas que, em parte, se encarregam da organização das “migrações de férias”, dando aos turistas potenciais uma particular (e imprecisa) ideia do valor dos lugares.

As organizações de viagem e de férias orientam e decidem, mas elas também são “persuasivas”, afirma Miossec, por meio de seus próprios serviços de informação e marketing, que modulam a propaganda, ajustando-as às necessidades e desejos dos turistas, num processo de “perpétua retroação”, que é a base de poder destas organizações. Assim, os destinos turísticos, por meio da “estética da mercadoria”, nos termos de Haug (1997), tornam-se fetiches, objetos de desejo, sonhos de consumo. A “estética da mercadoria”, segundo Haug (1997) “designa um complexo funcionalmente determinado pelo valor de troca e oriundo da forma final dada à mercadoria, de manifestações concretas e das relações sensuais entre sujeito e objeto por elas condicionadas” (p. 15).

Segundo Duarte (2001, p. 5), o aspecto estético da mercadoria assume importante dimensão, pois é ele que define se os objetos produzidos satisfarão as condições para fazer com o que o valor se realize (“e com ele a mais valia”). Se utilizando de um aparato sensorial que envolve a mercadoria em embalagens, “vitrinismo”, layout de lojas, publicidade gráfica, radiofônica e televisiva, a estética tem a função de seduzir o potencial comprador. De acordo com Haug (1997, p. 13), o conceito de “estética da mercadoria” surgiu fortuitamente, a partir de um primeiro ensaio seu intitulado “Sobre a estética da manipulação” que, na opinião dele, deveria ser chamada de “crítica da manipulação”, uma pesquisa sobre as condições dos possíveis efeitos da manipulação para o consumo.

Haug (1986, p. 247) afirma que a manipulação se caracteriza pelo controle “não- terrorístico” da consciência e do comportamento, produzido por meios linguísticos e estéticos. Haug associa, ao conceito de manipulação, o de “repressividade”, e que, com essa associação (manipulação-repressividade), é possível falar de “necessidades manipuladas” e de suas “satisfações repressivas”. Para Haug (1997, p. 14),

A manipulação, porém, só pode ocorrer se ela ‘de algum modo, encaixar-se nos interesses objetivos dos indivíduos manipulados’. ‘As massas’, afirmei, ‘são manipuladas por força de seus próprios interesses. Por isso, os fenômenos manipulativos falam sempre a língua de interesses reais, ainda que como língua estrangeira de interesses alienados e desfigurados, portanto, irreconhecíveis’. Em uma frase resumo este postulado, que contém in nuce um programa de pesquisa e uma perspectiva política: ‘A objetividade da felicidade e do sofrimento fundamenta também a da manipulação’.

Ideia compartilhada por Bauman (1999, p. 92), quando este afirma que, para o mercado de consumo seduzir os consumidores, é preciso que haja consumidores que queiram ser seduzidos. Na “sociedade de consumo”, segundo Bauman (1999), os consumidores buscam com todo empenho serem seduzidos, “vivem de atração em atração, de tentação em tentação, do farejamento de um petisco para a busca de outro, da mordida numa isca à pesca de outra – sendo cada atração, tentação, petisco ou isca, uma coisa nova, diferente e mais atraente que a anterior” (p. 92). Para Bauman (1999, p, 92), agir assim é uma compulsão, um “must” para os consumidores, ou seja, uma obrigação, uma pressão internalizada, uma impossibilidade de viver a vida de outra forma, que se revela para os consumidores sob o disfarce de um “livre exercício de vontade” 4.

De acordo com Mandel (1985, p. 274), Marx previu, “por assim dizer, a ‘sociedade de consumo’”, pois com a expansão do modo de produção capitalista, ocorre a concomitante expansão dos salários monetários e do mercado de bens de consumo industrializados, criado pela própria acumulação do capital. Com a expansão constante da produção de mercadorias e com a mecanização crescente que exige produção em massa, o capital “procura estimular necessidades de consumo sempre novas na população, inclusive na classe operária” (MANDEL, 1985, p. 275).

No turismo, os lugares tornados objetos de desejo, pela estética da mercadoria, são vendidos para os turistas como produtos valorizados, ou seja, por um preço muito maior do que valem considerando apenas os seus valores de uso. Nesse processo de valorização dos lugares, é possível reconhecer algumas estratégias da estética da mercadoria apontadas por Haug (1997), como a padronização da sensualidade, a inovação estética, a criação de marcas e, de modo especial para esta tese, a padronização dos vendedores (os trabalhadores do turismo). Por meio da estética da mercadoria, há uma espécie de imposição de padrões de

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Lembra Bauman (1999, pp. 87-88) que “quando falamos numa sociedade de consumo, temos em mente algo mais que a observação trivial de que todos os membros dessa sociedade consomem; (...) o que temos em mente é que a nossa é uma ‘sociedade de consumo’ no sentido, similarmente profundo e fundamental, de que a sociedade dos nossos predecessores, a sociedade moderna nas suas camadas fundadoras, na sua fase industrial, era uma ‘sociedade de produtores’”. Fazendo uma retrospectiva, Bauman (2003, p. 117) situa o nascimento da “sociedade e da mentalidade de consumo”, no último quartel do século 19, aproximadamente, quando a “teoria do valor-trabalho de Smith/Ricardo/Marx/Mill” foi confrontada pela “teoria da utilidade marginal de Menger/Jevons/Walras”. De acordo com Bauman, foi nesse período que se disse, “em alto e bom som”, que o que dá valor às coisas não é o suor necessário à sua produção (Marx), mas um desejo em busca de satisfação. “Quando isso aconteceu, ficou claro que (como disse Jean-Joseph Goux) ‘para criar valor, basta criar, por qualquer meio, uma intensidade suficiente de desejo’ e que ‘o que em última análise cria o valor excedente é a manipulação do desejo excedente’” (BAUMAN, 1999, p. 117).

comportamento e de valores que, no caso do turismo, gera a produção e o consumo do espaço dos lugares turísticos.

De acordo com Cazes e Courade (2004, p. 250), o turismo se baseia sobre a construção de “depósitos” turísticos, elaborados por imagens que os põem à venda num “jogo de espelhos”. Para Cazes e Courade, enquanto atividade fantasiosa, o turista consome um imaginário, como o da “evasão”, porém, em sua viagem, o turista segue em uma “bolha” climatizada, asséptica e segura (hotel, veículo para todo terreno, avião ou carro, etc.), onde muito do que vê, escuta e respira foi cuidadosamente elaborado em função do que ele é e espera. O turismo, afirmam Cazes e Courade (2004, p. 250), é uma atividade que se vende sobre o “papier glacé” do sonho, sofisticado ou mais comum (sol, coqueiros, buffet à vontade, festas), utilizando-se da publicidade e das pesquisas de opinião e de satisfação para seus procedimentos, que esconde uma impressionante logística de produção.

Segundo Carlos (2001), “o valor de troca – impresso no espaço-mercadoria – se impõe ao de uso do espaço na medida em que os modos de apropriação passam a ser determinados cada vez mais pelo mercado” (p. 74). Para Coriolano (2006, p. 216), o turismo implica no consumo de espaços (sob diversas formas de utilização estruturantes de paisagens e negócios), bem como agiliza processos dotados de grande capacidade de organização territorial. Na medida em que o turismo se instala num lugar, formas e funções espaciais necessárias à atividade são produzidas, estruturadas e processadas pelo capital turístico, “territorializando” os lugares, ao determinar relações sociais pelo espaço mediadas.

Como relações sociais projetadas no espaço, os territórios podem se configurar como uma rede de relações e não, necessariamente, como espaços concretos. Segundo Haesbaert (2002, p. 39), a crescente globalização dos mais diferentes fenômenos (dos de ordem econômica e política às organizações culturais; dos circuitos legais aos ilegais) que ocorre por meio de redes globais (que nem sempre estão claramente conectadas entre si), distingue a organização de “territórios-rede”, como o das diásporas de imigrantes, do narcotráfico, do contrabando, do “turismo”, entre outros. Entretanto, o espaço concreto (material) é o substrato das territorialidades e faz parte do território enquanto espaço delimitado por sua complexidade de relações de poder.

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