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TURISMO E ESTÉTICA DA MERCADORIA

4. GÊNESE E DIFUSÃO DO TURISMO

4.2 Das práticas elitistas de viagem ao turismo de massa

Segundo Boyer (2003, p. 31), a origem do turismo está na “invenção do inútil”, quando, ainda no século 18, práticas e lugares desconhecidos eram identificados por “alguém original” da alta sociedade (um “gate-keeper”), que tem suas inovações adotadas por grupos de celebridades, inclusive famílias reais, consagrando as atrações. Para Knafou (1991, p. 13), a maior parte dos primeiros turistas manteve-se anônimos ou pouco conhecidos, mas alguns passaram para a posteridade em companhia do lugar que eles contribuíram para lançar ou popularizar. O personagem célebre é útil, continua Knafou, até mesmo necessário, para o lançamento do lugar turístico, como alguns criados por celebridades ou outros que se tornaram famosos, graças a um personagem conhecido, como a atriz de cinema Brigitte Bardot, que tornou famoso o balneário francês de Saint-Tropez.

Já a difusão do turismo, afirma Boyer (2003, p. 9), se realizou por “capilaridade social”, em duas fases distintas: uma quando o turismo ainda era uma prática elitista (do século 18 até o início do século 20), e uma segunda a partir do momento que o turismo é apropriado como prática de lazer para os trabalhadores, de modo especial, após a segunda guerra mundial, ou seja, quando o turismo se massifica. Na primeira fase (da origem no século 18 até o início do século 20), os “gate-keepers” (em geral, artistas, artesãos ou altos cortesãos) inventavam práticas e lugares para se viajar, que ganhavam reputação com a visita de famílias reais. Depois de inventados, os lugares e as práticas de turismo se difundiram por “imitação” por membros das classes mais altas da sociedade, como magistrados, parlamentares, banqueiros e grandes negociantes (figura 1).

Figura 1. Pirâmide de difusão do turismo nos séculos 18, 19 e início do século 20. Fonte: Boyer (2003, p. 35).

No entanto, segundo Gemini (2008, p. 44), por todo o século 19, o desenvolvimento do turismo se caracterizou pelo impulso propulsor da aristocracia decadente, bem como pelo comportamento imitativo da alta burguesia do capitalismo industrial. De acordo com Gemini (2008, p. 44), até o último quartel do século 19, os turistas eram os proprietários de terra e os capitalistas, que seguiam o modelo do século 18, ou seja, viagens com disponibilidade praticamente ilimitada de tempo, como fazia a aristocracia: estadias de inverno aconteciam em cidades mediterrâneas, estadias de verão em estações termais e balneárias, períodos de férias na montanha (mais breves) para um número menor de turistas aventurosos, bem como residências rurais para os proprietários de terra que se dedicavam à caça e à recuperação de uma “vida de castelo”.

Ainda segundo Gemini (2008, p. 44), as estações intermediárias (outono e primavera) eram ideais para as estadias nos lagos alpinos e, sobretudo, em Paris e Londres, onde haviam animadas ocasiões festivas e sociais, além de viagens em direção as nunca esquecidas origens da civilização europeia: Grécia clássica e Egito. De acordo com Hobsbawm (2009, p. 287), depois da abertura do Canal de Suez (em 1869) e, principalmente depois da construção da estrada de ferro ao longo do rio Nilo (na década de 1870), o Egito tornou-se um destino que combinava vantagens climáticas, exotismo e monumentos históricos com a dominação europeia.

Na segunda fase de difusão do turismo, segundo Boyer, (de 1920 até 2000), a reputação dos lugares e das práticas do turismo passa a ser dada por celebridades, notadamente “estrelas” do cinema, teatro, arte e literatura (figura 2). As novidades se difundiam rapidamente e as viagens turísticas da alta burguesia, de profissionais liberais, de altos funcionários públicos, industriais e homens de negócios, tornaram-se mais numerosas. Uma “barreira cultural permeável” atinge a pequena burguesia, os funcionários públicos de escalões mais baixos, os professores, aposentados e os trabalhadores de status mais privilegiados, como ferroviários e alguns operários, enquanto que, uma “barreira cultura muito forte”, ainda atinge pequenos comerciantes, artesãos, camponeses e a grande maioria dos operários (BOYER, 2003, p. 36). Nessa fase, a difusão do turismo também se insere no contexto das conquistas alcançadas pelos trabalhadores em lutas travadas, desde meados do século 19, como a redução da jornada de trabalho.

De acordo com Ouriques (2005, p. 13-14), às vésperas da segunda guerra mundial, surgiu o descanso semanal remunerado e a disseminação das férias pagas, proporcionando

uma maior disponibilidade de tempo passível de ser usado para fins turísticos. Segundo Ouriques, o descanso remunerado torna-se realidade na Europa, como um “instrumento de propaganda” da ideologia nacional-socialista (na Alemanha de Adolph Hitler), como reconhecimento do direito de “existência do trabalhador” (na França em 1936), e como marca de “cidadania”, um direito ao lazer (na Grã-Bretanha). Segundo Becker (1996, p. 182), após a segunda guerra mundial, estas conquistas trabalhistas marcaram uma massificação do turismo, com o estabelecimento do estado de bem estar social, o “welfare state”, a regulação e a limitação do tempo de trabalho, a instituição das férias e das aposentadorias, numa sociedade de consumo e com transportes desenvolvidos.

Figura 2. Pirâmide sociocultural de difusão do turismo entre 1920 e 2000. Fonte: Boyer (2003, p. 36).

De acordo com George (1965, p. 73), o reconhecimento do direito do trabalhador aos lazeres, e o desejo de usufruir deles, foi um estímulo extraordinário para o consumo. Para George, as distrações exteriores conservam grande importância na vida social contemporânea, notadamente pelo papel que assumiu o cinema, o estádio e,

principalmente, as viagens. Afirma George que a restrição feita aos conjuntos urbanos foi, justamente, a de não serem concebidos para reter a população fora das horas de trabalho. “A insuficiência da vida social, dos lazeres coletivos ou, pelo menos, de um ambiente de vida coletiva local é, em grande parte, responsável por esse desejo irresistível de mudança de ares que, todo fim de semana, impulsiona milhões de citadinos” (GEORGE, 1965, p. 73).

Segundo Guglielmo (1968, p. 217), nos anos 1950-1960, o consumo aumentou em função da pressão exercida pelos produtores e comerciantes sobre os consumidores, notadamente com o aperfeiçoamento das técnicas de estudos de mercado e da venda a crédito, bem como pela evolução dos meios de difusão da publicidade. Bens e serviços, antes restritos a minorias, começaram a ser produzidos para um “mercado de massa”, como o setor de “viagens a praias ensolaradas”, como explica Hobsbawm (1995, p. 259):

Antes da guerra, não mais de 150 mil norte-americanos viajaram para a América Central ou o Caribe em um ano, mas entre 1950 e 1970, esse número cresceu de 300 mil para 7 milhões. Os números para a Europa foram, sem surpresa, ainda mais espetaculares. A Espanha, que praticamente não tinha turismo de massa até a década de 1950, recebia mais de 44 milhões de estrangeiros por ano em fins da década de 1980, um número ligeiramente superado pelos 45 milhões da Itália.

As praias ensolaradas são estâncias de veraneio para os citadinos dos países temperados, de inverno longo e enfadonho, que recebem, na Europa, dezenas de milhões de veranistas durante os meses de julho e agosto, se transformando, “nos dias quentes, em caravançarás estendidos em menos de dois quilômetros de extensão” (GEORGE, 1970a, p. 135). O afluxo é tamanho, afirma George (1970a, p. 135), que

(...) se procuram constantemente novas orlas, onde se constroem, para ganhar espaço, conjuntos de imóveis de oito ou dez andares, alugados peça por peça, ou apartamentozinho por apartamentozinho, vendidos também como apartamentos urbanos, de que eles representam a réplica estival. Reconstitui-se no litoral a trilogia formada pelos imóveis, pelas estradas e pelos pátios de estacionamento. Organizam-se, febrilmente, novos setores, constrói-se em Ravena, na Costa Brava, na costa de Languedoc e do Rusilhão, reconstrói-se em Agadir, fazem-se pesquisas nas costas da Argélia e da Tunísia... e os ricos batem as asas, assim que termina o inverno, para as Canárias ou para as Bahamas, um pouco mais tarde para as Baleares, em quaisquer ocasiões para as ilhas do Pacífico, aonde, tanto em Taiti quanto nas ilhas havaianas, se transporta o paraíso da Côte d’Azur para os “ingleses” do século 20, que são americanos, alemães ou escandinavos.

Para Baud, Bourgeat e Bras (2008, p. 513), o “turismo de massa”, feito por (para) uma grande parte da população, se desenvolveu na Europa dos anos 1960, ligado ao crescimento

econômico do pós-guerra, quando se aumentou muito o poder de compra, tornando possíveis as viagens para um maior número de pessoas. Segundo Boyer (2003, p. 10), não se deve subestimar o papel dos transportes no advento do turismo de massa, mas é preciso também considerar que eles não eram meios populares. Boyer cita como exemplo os “trens”, que possuíam vagões exclusivos para aqueles que estavam a passeio (os turistas), deixando trabalhadores e migrantes se apertarem na terceira classe, o mesmo acontecia com os navios. Todavia, conta Boyer, o “rei” do turismo de massa foi o automóvel popular (Volkswagen, Citroën 2cv, Renault 4cv, etc.) que dominou a cena durante os “Trinta Gloriosos”, como são chamados os trinta anos que sucederam o fim da segunda guerra mundial.

De acordo com Baud, Bourgeat e Bras, a extensão das férias remuneradas, a adoção de políticas turísticas por alguns países, como a organização do litoral mediterrâneo da França para o turismo popular, nos anos 1960, também contribuíram para a expansão do turismo de massa. Segundo Pearce (2003, p. 75), além da evolução dos transportes, fatores inter-relacionados contribuem para o aumento na demanda turística, como o crescimento absoluto da população, a elevação dos padrões de vida e os empreendimentos públicos e privados destinados ao desenvolvimento das atividades do turismo. Para Clary (1976, p. 130), “férias para todos” e “acessível a todos” tornaram-se desejos, que fizeram do turismo um fenômeno de massa, graças a “progressos econômicos” (“elevação do nível de vida que resultou em modificações nas estruturas de consumo”), a “progressos técnicos” (“era do automóvel sucede aos trens de prazer”) e a um conjunto de medidas sociais (“férias pagas e redução da jornada de trabalho”).

Segundo a OMT (2007), mais da metade (51 %) das mais de 846 milhões de chegadas de turistas internacionais que ocorreram no mundo, em 2006, foram motivadas por lazer, recreação e férias, ou seja, 430 milhões de turistas que viajaram motivados por estes aspectos. As viagens de negócios contribuíram com 16 % (131 milhões), enquanto que 27 % (225 milhões) referiram-se a viagens por outros motivos, como visitar amigos e parentes, razões religiosas e peregrinações, tratamentos de saúde, etc., além de 6 % de chegadas por motivos não especificados. De maneira geral, as pessoas em viagem necessitam de serviços de apoio, especialmente os de agenciamentos, transportes, hospedagem e alimentação. A prestação destes serviços de apoio aos turistas faz com que o turismo seja considerado uma espécie de “ativo”, ou seja, um capital para os lugares receptores.

Segundo Baud, Bourgeat e Bras (2008, p. 519), o turismo tem enorme importância econômica, tendo sido responsável por 10 % das receitas do comércio mundial, em 2007. Entretanto, de acordo com Baud, Bourgeat e Bras, estas receitas não são igualmente repartidas, pois 80 % delas vão para os países mais desenvolvidos do mundo, notadamente para os da Europa, onde o turismo teve origem e se desenvolveu mais fortemente. Segundo a OMT (2007), entre os dez países que mais receberam turistas internacionais no mundo, em 2006, sete são países europeus (França, Espanha, Itália, Reino Unido, Alemanha, Áustria e Rússia), dois são norte-americanos (Estados Unidos e México) e um é asiático (China) (figura 3).

Figura 3. Mundo: principais países receptores de turistas em 2006. Fonte: OMT (2007); IBGE (2009). Edição de Paulo Fernando Meliani.

Levando em consideração as regiões estabelecidas pela OMT (2007), a Europa foi a que recebeu o maior número de turistas em 2006: foram 460,8 milhões de chegadas de turistas internacionais, que representaram 54,4 % das mais de 846,4 milhões das chegadas estimadas para o mundo todo, naquele ano 27. De acordo com a OMT (2007), considerados

27 Considerando a origem das chegadas de turistas, observamos que a Europa, além de principal destino, é também a principal região emissora de turistas, pois foi de lá que saíram, em 2006, segundo a OMT (2007), mais de 56 % (473,7 milhões) dos turistas internacionais. A região da “Ásia e Pacífico” é a segunda em termos de emissão de turistas, de onde saíram 19,7 % dos turistas internacionais, ou seja, mais de 166 milhões. Das Américas saíram outros 16,8 % (142,2 milhões), mais 2,9 % saíram tanto do Oriente Médio (24,8 milhões) quanto da África (24,5 milhões), além de 1,7 % das chegadas não terem a origem especificada. Em cada ano analisado (2000, 2005 e 2006) observa-se uma crescente participação da “Ásia e Pacífico” na origem das chegadas de turistas internacionais: 16,8 % (114,8 milhões) em 2000; 19,3 % (154,7 milhões) em 2005 e 19,7 % (166,5 milhões) em 2006.

em conjunto, Ásia e Pacífico (excluídos os países asiáticos do Oriente Médio) tiveram estimadas 167,2 milhões (19,8 %) de chegadas de turistas internacionais, em 2006. Nas Américas foram 135,9 milhões de chegadas de turistas internacionais (16,1 %), enquanto que no Oriente Médio (incluído o africano Egito) foram 41,8 milhões (4,9 %), na África (excluído o Egito) 40,7 milhões (4,8 %) e na Oceania 10,5 milhões (1,2 %). Na sub-região “América do Sul”, o Brasil (com 5 milhões de chegadas) foi país que mais recebeu turistas internacionais, seguido pela Argentina, com 4,1 milhões e do Chile, com 2,2 milhões de chegadas (OMT, 2007).

O número de chegadas de turistas internacionais no Brasil, que se mantinha em torno de um milhão até meados dos anos 1990, ultrapassou os 2,5 milhões em 1996 e, a partir de 1998, passou a se manter entre 4 e 5 milhões até 2008, exceto em 2003, quando chegaram 3,7 milhões de turistas (MTur 2007; 2009a). Segundo Santos e Silveira (2001, p. 235), foi nas décadas de 1980 e 1990, que o consumo do turismo se expandiu significativamente no Brasil, fenômeno reconhecido por eles a partir da análise do número de estabelecimentos hoteleiros, notadamente com a instalação de cadeias globais ou da ampliação de infraestruturas e localizações. De acordo com Santos e Silveira, havia 1.255 hotéis de todas as categorias no Brasil em 1980 e 2.366 em 1994, com destaque aos ritmos de crescimento ocorridos nas regiões Nordeste e Norte. Santos e Silveira analisaram também o número de agências de viagem no país, que passou de 531 em 1967, para 1.582 em 1987.

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