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Inserido numa região formada em função da produção de cacau, a conhecida “região cacaueira” do sul da Bahia, o município de Itacaré é lugar de uma produção do espaço ligada a inserção seletiva do turismo na região. Antigo produtor e porto cacaueiro, Itacaré desde a sua origem foi lugar tributário, como denota a formação “derivada” da região a qual pertence 14. A região cacaueira do sul da Bahia, atual microrregião de Ilhéus-Itabuna, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), à sua escala, reproduz a formação derivada da demanda estrangeira de cacau nos séculos 19 e 20 15.

A vila de Itacaré, que fez parte da formação regional cacaueira, foi feita destino turístico, a partir dos anos 1990, depois de um período de isolamento regional ligado à perda de importância comercial de seu rudimentar porto, ainda nas primeiras décadas do século 20, por causa da chegada das ferrovias à região. No final dos anos 1960, a perda de

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Segundo Santos (1996, p. 104), entre as especificidades do espaço nos países subdesenvolvidos está a de ser “derivado”, aquele que é criado ou transformado por demandas externas, por uma vontade estrangeira, ou seja, derivado de necessidades longínquas. O termo “derivado”, segundo Santos, foi primeiro empregado por Maximilien Sorre, que adotou a expressão “paisagens derivadas” para mostrar a relação entre a história de países industriais e a dos países subdesenvolvidos. É nessa relação histórica que se formaram e ainda se formam espaços em países subdesenvolvidos, derivados da demanda externa, “via de regra”, por algum produto primário, gerando regiões monoprodutoras ou transformando outras pré-existentes em função de novas necessidadesAs “paisagens derivadas”, citadas por Maximilien Sorre, são criadas pelas relações entre as forças diretivas da economia mundial com as formas de dispersão e de irradiação susceptíveis de guiar a instalação de novas formas de atividade, segundo condições tecnológicas específicas (SANTOS, 1971, p. 201). Esta questão nos leva direto ao “coração” da problemática do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, que ocupou, por muito tempo, parte das pesquisas de Milton Santos em sua busca por dados essenciais sobre a organização do espaço em países subdesenvolvidos. Para Santos, se quisermos definir esquematicamente uma situação espacial nos países do Terceiro Mundo, um método de abordagem, aparentemente simples, e não por isso menos eficaz, seria o de identificar as diferentes defasagens entre a gênese, os ritmos, as formas de evolução e a situação atual dos elementos formadores de subespaços. Além disse, continua Santos, devemos considerar duas coisas: em primeiro lugar, que a instalação, e a execução de diferentes elementos de modernidade, não se faz nem ao mesmo tempo e nem ao mesmo ritmo; e em segundo lugar, levar em conta o próprio fato da imensa diversidade geográfica e que combinações entre os elementos geográficos não dão sempre os mesmo resultados, fazendo com que cada pedaço do planeta se constitua em um caso particular, em um problema original.

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Em tese intitulada “O uso corporativo do território brasileiro e o processo de formação de um espaço derivado: transformações e permanências na região cacaueira da Bahia”, Chiapetti (2009) demonstra como, histórica e geograficamente, a formação socioespacial da região cacaueira do sul da Bahia ainda se processa de forma derivada, em função do uso corporativo e seletivo do território brasileiro. Discutindo a crise da produção de cacau, mais especificamente o caráter multidimensional das transformações ocorridas na região, Chiapetti mostra que o movimento de reestruturação produtiva regional se vincula ao desenvolvimento do modo capitalista de produção, que cria e recria mecanismos ideológicos de crenças na modernização e, assim, garante a sua própria reprodução.

importância do porto de Itacaré se acentuou com a construção de rodovias, como a BR-101 e vicinais, que concentraram o escoamento da produção regional (inclusive do interior de Itacaré) para o porto de Ilhéus, que cada vez mais fortalecia sua função de principal entreposto exportador de cacau, inclusive com modernizações (nos anos 1920) e construções portuárias (nos 1950).

Por quase todo o século 20, o litoral sul de Itacaré se manteve relativamente fora do sistema produtivo do cacau, em função da dificuldade de plantio e escoamento da produção num meio físico de relevo planáltico, de “mar de morros”. Apesar da proximidade física com Ilhéus, a vila de Itacaré esteve isolada em função da desintegração com o modo de produção cacaueiro e dos precários acessos por estradas não pavimentadas, num lugar cercado de morros, onde chove constantemente. Somente a partir dos anos 1960 foi possível chegar por estradas à Itacaré e, mesmo assim, o percurso saindo de Ilhéus levava no mínimo três horas e, isso, quando as estiagens permitiam, sendo comum interromper a viagem no meio de atoleiros.

Além das famílias de fazendeiros que possuíam residência em Itacaré, só mesmo hippies e surfistas se dispunham a visitar a inóspita vila de pescadores, tornando-se os primeiros turistas do lugar, isso ainda nos anos 1970 e 1980. Em 1998, o isolamento se rompeu com a pavimentação do trecho da BA-001, entre Ilhéus e Itacaré, chamado “estrada-parque” (porque atravessa uma unidade de conservação da natureza), uma obra idealizada e financiada por políticas do Programa de Desenvolvimento Turístico da Bahia I (PRODETUR I). O isolamento submetido à Itacaré responde, em parte, pela conservação de fragmentos de “Mata Atlântica”, que ainda recobrem muito dos morros do lugar e que, como paisagem, serve de material para estetizar o turismo, isso a partir dos anos 1990.

Apropriada pela estética da mercadoria, a paisagem de Itacaré, na perspectiva do “olhar romântico do turista”, de “beleza natural intocada” (URRY, 1996, p. 70), é representada por imagens fotográficas das pequenas praias ladeadas de coqueiros e emolduradas por morros cobertos de mata atlântica. Na produção do turismo, a natureza de Itacaré é usada para estetizar uma mercadoria que é consumida por surfistas, ecoturistas e, cada vez mais, por outros tipos consumidores do chamado “turismo de natureza”. A presença da Mata Atlântica, no litoral sul da Bahia, é herança da natureza e do modo de produção do cacau na região, que subutilizou (ou simplesmente não utilizou) algumas áreas florestadas, bem como fez dominante a “cabruca”, o modo de plantio sombreado por árvores de dossel, um sistema chamado de “sustentável”, por apologistas do desenvolvimento turístico.

Para o turismo, a letargia pela qual passou Itacaré, durante o tempo em que ficou isolado, serviu para produzir uma natureza e uma cultura úteis à valorização da mercadoria: a paisagem natural e a história do cacau. Em seus planos, o PRODETUR I incluiu Itacaré na “Costa do Cacau”, uma desenhada “zona turística”, que abrangeria os territórios dos municípios de Itacaré, Uruçuca, Ilhéus, Itabuna, Una e Canavieiras. A Costa do Cacau é polarizada pela cidade de Ilhéus, que é a porta de entrada da região e lugar reconhecido por conta dos romances de Jorge Amado, publicados em todo o mundo, muito deles adaptados para televisão e cinema. O cacau dá nome à zona turística “produtora do fruto que dá origem ao chocolate”, que “se destacou pela riqueza e prosperidade”, que é a “terra de famosos coronéis romanceados por Jorge Amado” (BAHIA, 2005, p. 73).

A definição de zonas turísticas faz parte das políticas do PRODETUR I que, como instrumento de planejamento, diz ter como finalidade “dar maior reforço às ações já empreendidas para consolidar o desenvolvimento do turismo no Estado”. Desde os anos 1950, políticas públicas para o incremento do turismo, como instrumentos de ação estatal, representam uma alternativa de desenvolvimento para o Estado da Bahia. Até os anos 1970, as ações públicas estatais baianas se deram sempre na esfera municipal de Salvador, provenientes de políticas de desenvolvimento do turismo na capital. As políticas só se voltaram para o interior do Estado, primeiro nos anos 1980, com o programa “Caminhos da Bahia” 16, e depois com o PRODETUR I, este último considerado oficialmente responsável pelo crescimento dos apologéticos números da economia do turismo, na virada do século 17. A participação da renda vinda do turismo no Produto Interno Bruto (PIB) baiano passou de

16 O programa Caminhos da Bahia contemplava a construção e o gerenciamento de hotéis e pousadas, ações promocionais e capacitação de mão-de-obra para Salvador e alguns lugares escolhidos do interior e litoral: Camamu, Cipó, Cachoeira, Caldas do Jorro, Ibotirama, Ilhéus, Itaparica, Jacobina, Juazeiro, Lençóis, Paulo Afonso, Porto Seguro e Valença. Uma de suas ações de marketing foi criar o slogan “Bahia, terra da felicidade”, uma marca veiculada em material distribuído no Brasil e no exterior em eventos de promoção próprios, em parceria com o Rio de Janeiro e da EMBRATUR. Para viabilizar essa estratégia, foram investidos, “também e pela primeira vez”, recursos em folheteria receptiva, com páginas alusivas a Salvador e às cidades escolhidas pelo Programa “Caminhos da Bahia”, incluindo mapas desses destinos turísticos, além de folhetins promocionais da capital baiana, em seis idiomas, e folheto receptivo dos destinos dos “Caminhos da Bahia”, em português (BAHIA, 2005, p. 41).

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O Programa de Desenvolvimento Turístico da Bahia (PRODETUR/BA) é uma articulação estadual do Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste (PRODETUR/NE), que repassa repassou recursos federais, bem como do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em financiamentos liberados pelo Banco do Nordeste. Além destes recursos, o PRODETUR/NE conta com outras agências de financiamento, como o Banco Mundial, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDS), a Caixa Econômica Federal e a Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR).

4,0 %, em 1991, para 7,9 %, em 2004, segundo estimativa da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia (BAHIA, 2005).

Com o PRODETUR, a ação estatal na Bahia se pautou na desconcentração relativa do turismo, com a aplicação de recursos para infraestrutura em outros lugares além de Salvador. Para a Costa do Cacau, os investimentos estatais somaram 170 milhões de dólares, concentrados em transporte (pavimentação da rodovia que liga Ilhéus a Itacaré), saneamento, energia elétrica, meio ambiente e reforma do aeroporto de Ilhéus (HVS, 2005, p. 39). É pela estrada que, partindo do aeroporto de Ilhéus, Itacaré recebe surfistas, ecoturistas, turistas de aventura, “baladeiros”, “mochileiros”, turistas de sol e mar, entre outros visitantes que consomem o turismo em Itacaré.

Na entrada do século 21, a dinâmica do turismo transformou Itacaré, tornando o porto cacaueiro decadente, a vila de pescadores inóspita, num destino turístico vendido como “relíquia” e “paraíso ecológico” para o mercado internacional. Com o acesso dado pela pavimentação da estrada, o turismo em Itacaré virou “moda”, nos primeiros anos da década de 2000, inclusive com a visita de celebridades (artistas e atletas), que conferiram fama e reputação de “lugar da moda”. Desde então, o turismo determina a produção do espaço em Itacaré, no sentido de uma urbanização não apenas “turística”, nos termos de Mullins (1991, p. 326) 18, ou seja, como produção de formas e paisagens que derivam dos serviços turísticos em si, mas também de uma urbanização “periférica”, com a formação de aglomerados de exclusão no entorno e em interstícios da antiga vila.

De todo modo, a ideologia do “turismo sustentável”, surgida quando da construção da “estrada-parque”, no final dos anos 1990, continua padronizando o consumo e reproduzindo a estética da mercadoria ecoturismo, por meio de um chamado “marketing verde”. Já as estratégias de segmentação, que na metade da década de 2000, foram desenhadas com o objetivo de estender ou ampliar os mercados da mercadoria do turismo em Itacaré, parecem não ter saído do papel, ao mesmo tempo em que as ações prioritárias de planejamento estatal se voltam para outros destinos do Estado da Bahia.

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De acordo com Mullins (1991, p. 326), a urbanização turística diz respeito a espaços construídos unicamente para o consumo da “alegria, do prazer, do relaxamento, da recreação, etc.”, e não para um consumo de necessidades básicas sob a forma de habitação, serviços de saúde, educação e assim por diante. Para Mullins, cidades turísticas representam uma “nova” e “extraordinária” forma de urbanização, por elas são cidades construídas apenas para consumo, que fornecem uma grande variedade de oportunidades de consumo de mercadorias e serviços.

Como referência empírica desta tese, propomos uma análise da produção deste espaço do turismo localizado no Sul da Bahia, partindo de uma crítica à estética da mercadoria e à precarização do trabalho que caracteriza a produção turística do lugar. Esta proposta contempla uma análise geográfica, em escala regional e local, que considera a formação socioespacial, bem como o reconhecimento dos processos de produção envolvidos nestas escalas, notadamente a criação de apelos turísticos e a subordinação do trabalho ao capital.

PARTE I

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