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Segundo Lanfant (2004, p. 373), no início dos anos 1960, ocorreu a imposição de uma tese que afirmava ser possível, também aos países subdesenvolvidos, o benefício do turismo

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. Tinha como o argumento, a afirmação de serem, esses países, dotados de recursos naturais e culturais incomparáveis, bem como possuidores de uma mão de obra desempregada. Lanfant (2004, p. 373) afirma que esta ideia foi sustentada por um economista suíço, Kurt Krapf, autor de uma reconhecida obra sobre consumo turístico, uma espécie de “pioneiro” na matéria, que depois se tornou um perito do Banco Mundial. Sob a liderança de Krapf, conta Lanfant, em 1963, a Conferência das Nações Unidas, reunida em

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Lacoste (1967, p. 644) afirma que o termo “subdesenvolvimento” apareceu depois da segunda guerra mundial, nos escritos dos economistas e, apesar das ambiguidades que cercam o termo, talvez tenham sido essas ambiguidades que o tenham tornado uma expressão em moda. Para Lacoste, o termo recobre um conjunto de problemas dos países pobres, mas revela muito pouco da amplitude e da gravidade deles. Segundo Lacoste (1967, p. 649), apesar da diversidade de países considerados subdesenvolvidos, existem numerosas características comuns que aparecem como uma combinação de fatores, de interações múltiplas e complexas, radicalmente diferentes daquelas que existem nos países desenvolvidos, como insuficiência alimentar, deficiências de população (analfabetismo, doenças, etc.), forte proporção de agricultores na base produtiva, entre outras. A descrição do subdesenvolvimento em escala planetária não leva em conta que os traços comuns, a todos os países subdesenvolvidos, exprimem uma generalização imposta. Lacoste (1967, p. 659-660) afirma que o geógrafo não pode se contentar com uma descrição assim geral, sugerindo uma análise da distorção interna entre o crescimento demográfico e o crescimento de recursos efetivamente disponíveis à população. De acordo com Lacoste, em alguns casos, esta distorção interna começa a diminuir e, em outros, se agrava em função do crescimento acelerado de populações, fazendo derivar, dessas diferenças de distorção interna, uma diferenciação dos países do “Terceiro Mundo” em “países em via de desenvolvimento” e “países em via de subdesenvolvimento”.

Roma, na Itália, proclamou solenemente que “o turismo internacional pode trazer, e traz efetivamente, uma contribuição vital aos países subdesenvolvidos”.

Na estratégia das organizações internacionais, afirma Lanfant (2004, p. 373), o turismo internacional se tornaria uma espécie de “correia de transmissão” entre países ricos e países pobres, já que, tanto uns quanto outros, estariam associados na mesma visão de desenvolvimento global, mas com interesses complementares. Nessa ótica, continua Lanfant, não se trata mais de somente responder aos desejos de viajar ao estrangeiro (por parte dos habitantes dos países desenvolvidos que tem acesso ao lazer), mas também de estimular e canalizar fluxos na direção de regiões subdesenvolvidas, as quais se dedicava a política de promoção turística. Ao mesmo tempo, se trata de preparar estas regiões subdesenvolvidas (a maior parte, além de distante dos grandes centros metropolitanos, é povoada por comunidades que vivem em condições rudimentares), para acolher os turistas que iriam os visitar em grupos mais ou menos densos.

De acordo com Lanfant (2004, p. 373-374), desenvolver o turismo torna-se uma exigência, cuja legitimidade é reforçada por esta doutrina, que faz do turismo internacional um fator de desenvolvimento econômico aplicável ao “Terceiro mundo”. Nesses anos 1960, afirma Lanfant, uma vasta ação de persuasão na direção dos países subdesenvolvidos é orquestrada pela União Internacional dos Organismos Oficiais de Turismo (UIOOT), que incluía apoio financeiro, concedido pelo Banco Mundial, para grandes centros turísticos nos cinco continentes, contribuindo para transformar regiões inteiras em estruturas de acolhimento para turistas dos principais países emissores. A partir de estão, segundo Lanfant (2004, p. 374), a mobilidade turística assume a forma de um prodigioso movimento alternativo de deslocamento de assalariados, sem precedentes na história.

Em “New elements of a theory of commodity aesthetics”, Haug (2005, p. 43) publica um texto que trata, entre outros conteúdos, das relações entre “diferença e dominância”, estabelecidas entre uma “cultura global de massa” e um “turismo de pobreza”, ou uma “pobreza do turismo” (poverty tourism), a ambivalência do termo em inglês parece bem adequada. Haug (2005, p. 43-44) afirma, em tradução nossa:

Como é diferente a jornada contrária a da rota dos trabalhadores imigrantes, que é a do turismo de pobreza dos ricos! Aos consumidores do centro da riqueza global capitalista é oferecido, em doses facilmente consumíveis, um turismo de massa para o Sul. A distante diferença pode ser alcançada em um voo-charter. No ar, o processo é dobrado, quando telas de vídeo entretêm com filmes inteiramente

voltados para promover o turismo. A operação combina surrealismo digital com estímulo estético da mercadoria turística. O turista experimenta a globalização em retalhos. No estilo dos vídeo-clips, estímulos variados por segundo perseguem-se uns aos outros, em trechos do mundo todo, sequenciados de acordo com o valor do estímulo. Estímulos em sua maioria tirada do mundo da pobreza e, exatamente a pobreza, é excluída da sua representação. Apenas sob a forma do pitoresco e do fotogênico faz, os elementos do seu traço domesticado, entrar na imagem.

De acordo com Ouriques (2005, p. 95), a introdução do turismo na periferia do capitalismo gerou “ilhas de prosperidade”, mas uma prosperidade restrita a poucos, não atingindo os trabalhadores, já que para eles o turismo “significou apenas a diminuição e/ou substituição de atividades econômicas tradicionais por outras, direta e indiretamente turísticas, como guias, garçons, cozinheiros, faxineiros, etc.”. A geração de empregos, promessa que reveste a mercadoria no turismo, não parece capaz de modificar substancialmente as condições de existência da população residente dos lugares turísticos, em função da desvalorização e da precariedade que caracteriza o trabalho nos serviços prestados aos turistas.

Para a própria Organização Mundial do Turismo (OMT, 2001, p. 352), o trabalho no turismo se caracteriza pela grande ocorrência de trabalhadores temporários e ocasionais, por jornadas de meio expediente, pela desvalorização da mão-de-obra feminina, pela significativa presença de jovens, pela baixa remuneração (quando comparadas as de outros setores da economia), pelo elevado número de horas trabalhadas, bem como pelo baixo grau de sindicalização. Ouriques (2005, p. 128) afirma que o turismo se pauta na extração da mais-valia absoluta (pela extensão da jornada de trabalho) e pela superexploração da força de trabalho, com remunerações miseráveis, isto é, abaixo do necessário para a reprodução da força de trabalho.

Apesar de estarem sempre presentes, e de serem os indivíduos do lugar que estão realmente em contato direto com os turistas, sendo inclusive responsáveis pela efetiva experiência positiva dos visitantes, os trabalhadores do turismo são considerados, pelas forças produtivas do turismo, apenas como parte dos meios de produção. Aliás, a parte essencial da produção do turismo, da qual será obtido o lucro dos empresários por meio da extração da mais-valia, ou seja, da venda dos serviços prestados pelos trabalhadores que excedem os custos de seus salários. Assim, os espaços do turismo são como “depósitos de mais-valia”, nos termos de Santos (2002b, p. 88), onde os trabalhadores, cotidianamente,

prestam muito mais serviços dos que os suficientes para pagar os seus salários 13. É para viver que o trabalhador vende ao capital sua força de trabalho, como explicou Marx (2006 b, p. 36):

(...) a força de trabalho em ação, o trabalho, é a própria atividade vital do operário, a própria manifestação da sua vida. E é essa atividade vital que ele vende a um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários. A sua atividade vital é para ele, portanto, apenas um meio para poder existir. Trabalha para viver. Ele nem considera o trabalho como parte da sua vida, é antes um sacrifício da sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um terceiro. Por isso, o produto de sua atividade tampouco é o objetivo de sua atividade.

Sujeitando-se a execução de tarefas que lhe são ordenadas, em função da venda que fez de sua força de trabalho, o trabalhador prestador de serviços turísticos, assim como qualquer outro, está submetido a “alienação do trabalho”, nos termos de Marx (2006, p. 110), ou seja, ao estranhamento provocado pelas tarefas que executa e pelos produtos de seu trabalho, que não lhe dizem respeito. Mészáros (2006, p. 19) identifica, ao analisar o conceito de alienação em Marx, algumas características do “trabalho alienado”, como a alienação do homem com sua própria atividade, expressa na relação do trabalho com o ato de produção no interior do processo de trabalho. Assim, a relação do trabalhador com sua própria atividade é uma atividade alheia que não lhe oferece satisfação em si e/ou por si mesma, mas apenas pelo ato de vendê-la a outra pessoa.

O estranhamento com o trabalho também se dá com o produto do trabalho, que não pertence ao próprio trabalhador, mas pertence a outro individuo, ao sujeito que comprou sua força de trabalho. Desse modo, se estabelece outro tipo de alienação, também descrita por Marx, do “homem em relação a outro homem”, pois se o trabalho não pertence ao trabalhador, pertence a outro homem que, por ser proprietário da força de trabalho de outro, é distinto do trabalhador, este sim um despossuído (MÉSZÁROS, 2006, p. 20).

No turismo, a alienação do trabalho vai além desses estranhamentos do trabalhador com seu trabalho e com seu objeto de trabalho, acontecendo também em função da

13 Segundo Lefebvre (2003, p. 136), a mais-valia aparece no nível do trabalhador individual, que produz mais do que recebe em dinheiro ou salário durante o tempo de trabalho que vende ao capitalista. É por meio da realização da mais-valia que acontece a acumulação capitalista e, nesse sentido, os empresários se esforçam para aumentar os lucros, aumentando a jornada de trabalho e a produtividade, melhorando as técnicas de produção e acelerando a circulação do capital. Para que haja a realização de fato da mais-valia é necessário que o circuito D – M – D’ (dinheiro – mercadoria – dinheiro) seja completado o mais rapidamente possível. Em termos teóricos, é desse excedente de trabalho, dessa produção de bens ou prestação de serviços que vai além da necessária para cobrir os custos trabalhistas, que advém a extração da “mais-valia” pelos empresários, ou seja, a exploração da força de trabalho.

natureza da atividade, ou seja, pelo estranhamento que há entre o trabalhador e o turista, entre o indivíduo que trabalha e aquele que consome “seu” lazer. Além disso, como os espaços do turismo são de uso exclusivo daqueles que podem neles consumir, há um estranhamento do trabalhador com o espaço, pois, muitas vezes, o seu local de trabalho é um espaço de seu próprio lugar, aquele em que nasceu e se criou, e que agora, em função do turismo, só pode ser vivido por ele como lugar de trabalho.

As alienações do trabalho e do espaço que atingem o trabalhador, não são as únicas que derivam da produção do turismo, já que é possível reconhecer alienações do consumo (SANTOS, 2007, p. 50) e do lazer (BAUDRILLARD, 2007, p. 167) que atingem diretamente os turistas. Enquanto mercadoria, o turismo implica no “consumo”, no hábito que se tornou “a grande perversão do nosso tempo”, em função do papel que representa na vida coletiva e na formação do caráter dos indivíduos (SANTOS, 2007, p. 47). O consumo se instala no cotidiano, cercando-nos de mercadorias tornadas objetos de desejo pela estética da mercadoria, pela publicidade incessante, pelo estímulo à competição social, pela ideologia da valorização de quem possui as mercadorias, entre outros aspectos da produção de consumidores.

Por outro lado, enquanto prática de “lazer para trabalhadores”, o turismo destina-se ao consumo do espaço dos lugares turísticos, por indivíduos crentes que são possuidores do seu tempo liberado do trabalho. Partindo de férias, os turistas estão ungidos pela ideia de que, por meio da viagem turística, além de satisfazerem suas necessidades de evasão do cotidiano, poderão realizar seus sonhos de consumo de possuir uma mercadoria: o turismo, que promete mais do que uma viagem, promete estilo de vida e prestígio social. Contudo, “o repouso, a evasão, e a distração talvez sejam ‘necessidades’, mas não definem por si mesmas a exigência própria do lazer, que é o consumo do tempo” (BAUDRILLARD, 2007, p. 163).

Portanto, continua Baudrillard, não basta afirmar que o lazer está “alienado” porque se reduz ao tempo necessário para a reconstituição da força de trabalho. “A ‘alienação’ do lazer é mais profunda: não diz respeito à direta subordinação ao tempo de trabalho, encontra-se ligado à própria impossibilidade de perder o seu tempo” (BAUDRILLARD, 2007, p. 163). O verdadeiro valor do uso do tempo, que o lazer procura restituir, é a “perda” do tempo, que faria com que as férias fossem uma busca de um tempo que se possa perder. Assim, como prática de lazer, o turismo exige o consumo do tempo e, desse modo, o tempo das férias deve ser obrigatoriamente consumido, de preferência num “belo lugar”, num “paraíso distante”, em espaços produzidos para a realização desse consumo.

2.6 O argumento

O turismo, como produtor de mercadorias intangíveis, pressupõe o consumo dos espaços produzidos nos lugares turísticos, vendendo-os na perspectiva de satisfação das necessidades de descanso fisiológico, bem como de necessidades sociais criadas pela estética da mercadoria. A lógica da mercadoria “regula a cultura inteira, a sexualidade, as relações humanas e os próprios fantasmas e pulsões individuais” (BAUDRILLARD, 2007, p. 205). Assumido nessa lógica da mercadoria, o turismo faz com que as suas necessidades sejam objetivadas e manipuladas em termos de lucro, na medida em que evoca, provoca e difunde imagens de padrões alienantes do consumo de uma prática de lazer, que também é alienada pela exigência do consumo do tempo liberado do trabalho.

Segundo Miossec (1977, p. 64-65), as aspirações dos turistas se reforçam por meio de necessidades imaginadas, que são difíceis de satisfazer totalmente, pois primeiro se escolhe (individualmente ou em família) um destino ou um circuito em meio a aspirações e fantasmas. Depois vem a perda de tempo e energia (cansaço) para resolver os problemas materiais de locação, encarar os acessos congestionados ao lazer desejado (praias superlotadas, acomodações lotadas, insuficiência de equipamentos, etc.) e as tarefas cotidianas. Por isso, afirmou Miossec, o turismo de massa, bem longe de liberar, contribui para alienar o indivíduo.

Nos lugares, os espaços produzidos, pelo e para o turismo, a partir de uma psicosfera e de uma tecnosfera, implicam na produção de estruturas normativas, físicas e, consequentemente, sociais, ou seja, há formação e/ou reprodução de classes, onde o trabalho está subordinado ao capital. No espaço produzido para o turismo, o trabalho é apropriado pelo capital turístico por meio da ideologização de uma “ética corporativa” e de uma “padronização estética” dos trabalhadores, bem como numa perversa precarização das relações de trabalho.

A partir das premissas apresentadas anteriormente, argumentamos que o turismo se insere nos lugares transformando o espaço, na medida em que produz formas e funções espaciais tornadas meios de produção e objetos de trabalho adequados aos propósitos de reprodução ampliada do capital. Assim, a produção do turismo modifica a organização socioespacial anterior dos lugares, afetando, de modo perverso, a população local que, incorporando o trabalho necessário, é atingida pelos processos de alienação do trabalho, bem como por uma alienação do espaço de seu próprio lugar.

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