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TURISMO E ESTÉTICA DA MERCADORIA

3. SOBRE A CRÍTICA DA ESTÉTICA DA MERCADORIA

3.4 Padronização dos vendedores e ética corporativa do trabalho

A padronização dos vendedores, nos termos de Haug (1997, p. 95), nada mais é do que uma “formação” dos trabalhadores, seja pela interferência na própria aparência dos empregados, seja por meio do treinamento de técnicas para a venda. Esta formação envolve processos de padronização da linguagem, do vestuário, dos gestos e das fisionomias, que visam à produção de uma “aparência agradável”, de “gestos de auto-apresentação” nos vendedores. Antes mesmo de estarem empregados, os trabalhadores, por si sós, buscam essa padronização estética para aumentar a “vendabilidade” de sua força de trabalho, já que a aparência tem hoje um papel decisivo na procura de emprego.

“O impulso para essa padronização terrível de toda uma classe em direção ao ‘agradável’ passa em primeiro lugar pelo setor de vendas, obrigado a personificar funções de venda de acordo com a estética da mercadoria” (HAUG, 1997, p. 97). À exigência de uma “aparência agradável”, capaz de incorporar parte da sedução da mercadoria, se junta à exigência de que a venda seja algo “natural” para o vendedor, que é convencido a aumentar o faturamento em função da pressão econômica associada à ameaça de dispensa ou até de diminuição de salário, caso o empregado trabalhe sob um sistema de recompensas. O capitalista poderia até empregar a versão positiva dessa alavanca, ou seja, a participação no faturamento, mas só recorre a isso quando tem uma posição mais fraca no mercado de trabalho, quando seu vendedor pode arrumar facilmente outro emprego melhor.

De acordo com Haug (1997, p. 98), o capitalista, ciente de sua forte posição ao ver um exercito de vendedores esperando para assumir o lugar de seus empregados, recorre ao desenvolvimento de um “culto da venda”, tornando-se ele mesmo um pregador de um verdadeiro “fanatismo das vendas”. O objetivo do capitalista, que é o aumento do faturamento, deve ser interiorizado pelos seus empregados, tão profundamente até ser incorporado inconscientemente por eles. Segundo Haug (1997, p. 98), os trabalhadores têm de se transformar em “vendedores autômatos”, incutindo a função de venda como a sua essência mais íntima, defendendo o interesse do capitalista exatamente por serem dele dependentes.

Essa desejada socialização do trabalhador, nas condições de produção capitalista, envolve o controle social de suas capacidades físicas e mentais. Segundo Harvey (2010, p.

119), a educação, o treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais (a ética do trabalho, a lealdade aos companheiros, o orgulho local ou nacional) e de propensões psicológicas (a busca da identidade através do trabalho, a iniciativa individual ou a solidariedade social) desempenham um papel e estão claramente presentes na formação de ideologias dominantes. Ideologias que são cultivadas pelos meios de comunicação de massa, pelas instituições religiosas e educacionais, pelos vários setores do aparelho do Estado, bem como afirmadas pela própria experiência por parte dos que fazem o trabalho.

A noção do trabalho como “vocação” tornou se uma característica do trabalhador moderno, no sentido de uma tarefa de vida, de um campo definido no qual trabalhar (WEBER, 2003, p. 98), implicando na criação de uma “ética”, que concebe o trabalho como um fim em si mesmo, como uma vocação necessária ao capitalismo. Apresentada como reflexão, segundo Valle (2005),

A ética diz respeito à decisão, que incumbe a cada indivíduo e a cada sociedade, de julgar, escolher e instituir em sua própria existência os princípios, os valores que deverão guiar suas relações com o mundo, com as coisas, com os outros homens, submetendo-os a permanente questionamento. As decisões relativas ao trabalho dependem, quanto a elas, do que se poderia chamar, numa acepção bastante ampla, de técnica: escolha dos saberes a serem convocados, dos instrumentos, dos procedimentos, das ações a serem empregados na consecução do resultado final. Será forçoso constatar que assim definidos os dois termos, não existe uma ética do trabalho, embora possam (e devam!) existir formas éticas de se investir a atividade do trabalho. Mas, nesse caso, essas formas deverão estar continuamente submetidas ao exercício da autorreflexão e do questionamento constante.

“A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda uma sociedade em sociedade operária” (ARENDT, 2008, p. 12). Os princípios do “trabalho moderno”, afirma Valle (2005), modificaram definitivamente os hábitos e as mentalidades, modelando as antigas culturas às suas novas exigências: urbanização, aparelhamento burocrático, “racionalização” dos comportamentos e vínculos. De acordo com Weber (2001, p. 29), o capitalismo, que passou a dominar a vida econômica, educa e escolhe os indivíduos de que tiver necessidade por um processo de sobrevivência econômica do mais apto. O “espírito do capitalismo”, nos termos de Weber, exige indivíduos disciplinados e inclinados a negócios, bem como trabalhadores conscientizados a produzir cada vez mais, tendo como objetivo melhorar de vida. Para Valle (2005), com a modernidade, o trabalho passou a ser o que há em comum entre os homens e, a “produtividade”, o critério de todo valor, segundo o qual todos os homens devem passar a ser medidos e hierarquizados. Segundo Mészáros

(2002, p. 96), tudo, inclusive os seres humanos, devem se ajustar e provar sua “viabilidade produtiva” ao capital, ou perecer caso não consigam se adaptar, em função da “forma incomensurável de controle sociometabólico” que o capital assume enquanto sistema global.

Diante das regras atuais da produção e dos imperativos do consumo, a competitividade se torna uma regra de convivência entre as pessoas. Para Santos (2009, p. 57), a necessidade de competir é

Legitimada por uma ideologia largamente aceita e difundida, na medida em que a desobediência às suas regras implica perder posições e, até mesmo, desaparecer do cenário econômico. Criam-se, desse modo, novos ‘valores’ em todos os planos, com uma nova ‘ética’ pervasiva e operacional face aos mecanismos da globalização (...). Concorrer e competir não são a mesma coisa. A concorrência pode até ser saudável sempre que a batalha entre agentes, para melhor empreender uma tarefa e obter melhores resultados finais, exige o respeito a certas regras de convivência preestabelecidas ou não. Já a competitividade se funda na invenção de novas armas de luta, num exercício em que a única regra é a conquista da melhor posição. A competitividade é uma espécie de guerra em que vale tudo e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência.

É este o contexto em que as forças produtivas cooptam os trabalhadores, incutidos com uma ética corporativa de trabalho fundada na noção de “vocação”, como anotou Weber (2003, p. 32), “o trabalho deve ser executado como um fim absoluto em si mesmo”. Se junta a essa noção, as ideias de incorporação, vínculo e de identificação com os objetivos do capitalista, que lhes exige qualificação, autonomia, iniciativa, responsabilidade e comunicação, elementos úteis para a produção e para a estética da mercadoria. Por trás disso, a ideia alienada de liberdade, afirma Mészáros (2007), oriunda da conquista do trabalhador de poder “vender-se livremente”, por meio de um suposto “contrato entre iguais”, mas “ignorando e até idealizando as graves restrições materiais e sociais da nova ordem” (p. 118).

A noção de “trabalho livre contratual” aparentemente absolve o capital, do peso da dominação forçada, já que a “escravidão assalariada” é internalizada pelos trabalhadores, não tendo de ser imposta e constantemente reimposta a eles sob a forma de dominação política (MÉSZÁROS, 2002, p. 102). Esta subordinação do trabalho ao capital contribui como elemento da estética da mercadoria, na medida em que as forças produtivas padronizam o comportamento dos submetidos e resignados trabalhadores na perspectiva da valorização da mercadoria. Segundo Bauman (2003), não compete mais a empresa guiar, regular e controlar seus empregados, pois “agora é o contrário: os empregados é que devem provar seu fervor, demonstrar que trazem recursos que faltam aos outros empregados” (p. 116).

Para Bauman (2003, p. 116), as empresas pagam ao empregado o tempo que trabalham para elas, mas demandam toda sua capacidade, sua vida inteira e toda sua personalidade, já que a competição “ferrenha” veio para dentro dos escritórios das empresas, fazendo o trabalho significar testes diários de capacidade e dedicação, méritos acumulados que não garantem a estabilidade futura. De acordo com Haug (1997, p. 167), os trabalhadores se movimentam nos caminhos que lhes prescreve a dependência salarial e, afora o grande interesse no salário e em sua cota de consumo, nada mais encontra satisfação (nem pode ser satisfeita) na sociedade capitalista. A organização dos operários, afirma Haug (1997), “no tocante à coletivização na esfera da produção não lhes pertence, não é problema deles, mas do capital” (p. 167). A força produtiva do trabalhador é uma força alheia, continua Haug, já que a sua produção reproduz esse alheamento, numa escala continuamente presente, e assim sua própria dependência. “A sua atividade coletiva – a práxis em escala social – não possui nenhum sentido coletivo, mas apenas o sentido privado- pobre de sua reprodução individual, enquanto trabalhador assalariado” (HAUG, 1997, p. 168).

Castilho (2002, p. 6) afirma que as chances reais de inserção no mercado de trabalho são muito restritas, já que somente os indivíduos que possuem um “capital material e sociocultural”, acumulados durante suas histórias de vida, conseguem se inserir, cabendo aos restantes uma inserção mínima, por meio de atividades informais e clandestinas. Capital material, segundo Castilho, é o montante de dinheiro que possuem os indivíduos, utilizado como recurso financeiro para pagar cursos de capacitação e qualificação, comprar material de estudo, custear meios de transporte e roupas que os deixem “apresentáveis”. Capital sociocultural é o conjunto de conhecimentos adquiridos na escola (que permite aos indivíduos conseguir uma vaga nos cursos), os relativos ao modo de se apresentarem e se portarem em lugares públicos, bem como suas relações sociais, familiares e de amizades com pessoas “integradas”.

De acordo com Haug (1997, p. 149), os trabalhadores se defrontam com o capital não somente como classe explorada na produção, mas também como “compradores”, incitados ao consumo pelo capitalista, que procura dar novos estímulos às suas mercadorias, inculcando-lhe outras necessidades. Aí também se manifesta uma estratégia de controle social do trabalho, na medida em que o capitalista proporciona uma fugaz satisfação material ao trabalhador e, por meio de uma contínua propaganda apolítica de mercadorias, expressa sua linguagem de sedução estética, fechando um ciclo onde o trabalhador é o próprio consumidor das mercadorias que produz.

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