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A turistificação é espacialmente reconhecida pela transformação material e social que confere aos lugares, com a produção progressiva de formas e funções próprias do turismo (hotéis, pousadas, restaurantes, bares, equipamentos de cultura e lazer, etc.), bem como pelas suas consequentes relações sociais, notadamente as mudanças no emprego das pessoas residentes. Os espaços são, portanto, produzidos pelo turismo na perspectiva da produção do “espaço social” de Lefebvre (2000, p. 93), ou seja, como produzido e reproduzido em conexão com as forças produtivas e com as relações de produção. No entendimento de Bourdieu (1989, p. 133), é possível representar o mundo social na forma de um espaço (a várias dimensões) construído por princípios de diferenciação ou de distribuição, que se constituem

pelo conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir ao detentor delas, força ou poder neste universo.

De acordo com Lefebvre (2000, p. 93-94), nem a natureza (o clima e o sítio), nem a cultura ou a história anterior são suficientes para explicar um espaço social, pois o que ocorre em sua produção é uma interposição de mediações e mediadores, de grupos atuando por diferentes razões (conhecimento, ideologia, representações, etc.). Para Lefebvre (2000, p. 94), o espaço contém objetos muito diversos (naturais e sociais), que não são somente coisas, mas relações, bem como possuem particularidades compreensíveis, como contornos e formas transformáveis pelo trabalho social. As “realizações espaciais derivadas do processo social de reprodução dos meios de produção e do objeto de trabalho” são chamadas, em conjunto, por Castells (2006, p. 201), de “produção da estrutura”.

No turismo, essa estrutura se produz pelas realizações espaciais derivadas da reprodução dos meios de produção e dos objetos de trabalho próprios da atividade. Assim sendo, dizem respeito à infraestrutura turística, aos equipamentos de apoio aos turistas, aos objetos construídos para o olhar do turista 6 e, até mesmo, às antigas formas de apropriação da natureza, na medida em que a paisagem se torna um ativo para o capital do turismo 7.

Por sua vez, se os meios de produção são instrumentos que, inseridos entre o trabalhador e o objeto de trabalho, possuem propriedades mecânicas, físicas e químicas,

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Urry (1996, p. 55) reconhece a função de objetos construídos nos lugares para o “olhar do turista”, quando afirmou que, na primeira metade do século 20, os balneários britânicos do litoral possuíam ao menos um cais e frequentemente uma torre. Para Urry, “tais construções, porém, envolviam uma tentativa de conquistar a natureza, de construir um objeto feito pelo homem, que em todos os momentos e para sempre estaria presente, dominando ou o céu ou o mar. Sua dominação é o que lhes dá motivo para estarem lá, é sua função” (p. 55). Citando Barthes, Urry destaca a função da Torre Eiffel, em Paris, França, dizendo que ela possibilita ao turista participar de um sonho, proporcionando aos visitantes uma vista original da cidade, transformando Paris em “natureza”, na medida em que sua paisagem se junta aos temas naturais que são oferecidos à curiosidade dos homens, como o oceano, as montanhas, os rios, a neve, etc.

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Henrique (2009, p. 125-126) afirma que, ainda no século 19, a natureza passa a ser uma “isca” ou uma “imagem-símbolo” para atrair os compradores de imóveis, já que ela tinha valor por motivos estéticos (os passeios e a exibição de poder) ou por razões higienistas (de saneamento da cidade cada vez mais poluída pelas indústrias). Dialogando com um texto de Reclus, publicado na época (1886), Henrique coloca duas formas como se davam (e podemos dizer que ainda se dão) a apropriação da natureza. Uma “apropriação direta” que acontece, por exemplo, nas áreas costeiras, nos “pitorescos penhascos” e nas “praias charmosas”, que tem seu uso e acessos monopolizados pelos proprietários, bem como por agentes especulativos da terra. “A apropriação direta da natureza está presente também nas áreas de lagos, montanhas e demais paisagens valorizadas, em um determinado momento, fazendo que a natureza, materializada na paisagem, se torne propriedade privada, negando o caráter coletivo da produção e incorporação da natureza na vida social” (HENRIQUE, 2009, p. 126). Já a “apropriação indireta” se dá pela sua utilização na venda de produtos, quando incorporadores se apropriam de todos os locais charmosos e belos, dividindo-os em lotes retangulares e enclausurando os mesmos em muralhas uniformes onde são construídos mansões e casarões pretensiosos.

então a “natureza”, o espaço físico (a “Terra”) é o arsenal primitivo desses meios (MARX, 2010, p. 212). Portanto, de acordo com Marx, os elementos naturais da “Terra” (inclusive a água), que estão distribuídos como formas componentes do espaço, são objetos de trabalho fornecidos pela natureza que, quando modificados pelo trabalho humano, tornam-se “matéria-prima”, ou seja, outros “objetos de trabalho”. Dessa premissa de Marx, sobre o espaço físico da Terra como arsenal de meios de produção, fica fácil depreender a importância da natureza e de seus elementos como meios de produção do turismo.

Por sua vez, como condições materiais necessárias à realização do trabalho, os meios de produção também podem ser resultantes de um trabalho anterior (edifícios, fábricas, canais ou estradas) e, como formas espaciais construídas, compõem um instrumental de trabalho capaz de transformar outros objetos em produtos. Mais uma vez, partindo das premissas de Marx, depreendemos como os equipamentos turísticos, de toda ordem, se constituem num instrumental de trabalho, em meios de produção que compõem a mercadoria do turismo. Mais do que um instrumental de trabalho, o conjunto de formas naturais e construídas, arranjadas em um determinado espaço, também é um produto que corresponde a uma dada ordem econômica, servindo de suporte territorial à produção, como lugar de reprodução dos meios de produção, dos objetos de trabalho e, sobretudo, da força de trabalho.

Assim, como produto da reprodução dos meios de produção e da força de trabalho, os espaços do turismo revelam uma divisão territorial que distingue os sujeitos produtores de espaço, bem como suas respectivas e distintas territorialidades, notadamente Estado, empresários, trabalhadores, sociedades locais, bem como turistas. Neste contexto, o Estado costuma ter um papel de regulação socioeconômica do turismo, mediando conflitos, organizando e normalizando o uso do território, quase sempre assumindo a função de implantar a infra e a supraestrutura regional. Cada lugar, cada subespaço, afirma Santos (1999, p. 12), se define pela presença conjunta, indissociável, de uma “tecnosfera” (mundo dos objetos) e de uma “psicosfera” (esfera da ação) funcionando de modo unitário, pois os objetos, naturais ou artificiais, não têm existência real (valorativa) sem as ações.

Primeiro construídos no plano das ideias (a “psicosfera”), os lugares eleitos pelo capital do turismo têm, em seguida, a produção de uma “tecnosfera”, um sistema de objetos técnicos implantados no espaço para viabilizar as atividades econômicas. Segundo Santos (2002, p. 256),

A tecnosfera se adapta aos mandamentos da produção e do intercâmbio e, desse modo, frequentemente traduz interesses distantes; desde, porém, que se instala, substituindo o meio natural ou o meio técnico que o precedeu, constitui um dado local, aderindo ao lugar como uma prótese. A psicosfera (reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido) também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à racionalidade ou estimulando o imaginário.

Silveira (1997, p. 37) fala de uma “aptidão paisagística” para se referir a uma manifestação da psicosfera, entendida por ela como um conjunto de dados “psiconaturais” e técnicos de um lugar, que constitui o domínio do visível, isto é, a paisagem. “Queremos significar por dados psiconaturais os processos de apropriação dos elementos ditos naturais, porque se esses dados não têm artifício na sua constituição material, eles os têm na sua constituição simbólica e social” (SILVEIRA, 1997, p. 37). Segundo Silveira (1997, p. 37), os elementos naturais são apropriados pela psicosfera através de preferências moldadas ao ritmo da publicidade, das modas culturais e esportivas, dos critérios estéticos, das possibilidades técnicas e estratégias de mercado do turismo. Por sua vez, haveria os dados técnicos, que dizem respeito à densidade de objetos que permitem um tipo de lazer, ou seja, as infraestruturas necessárias para o turismo acontecer, são os dados da tecnosfera do lugar. “Essa produção material dos lugares é causa e consequência da produção imaterial do turismo” (SILVEIRA, 1997, p. 37). É a “paisagem-mercadoria”, nos termos de Gomes (1998, p. 259), assumindo significância para os apelos dos “pacotes turísticos”, que destacam a natureza como atributo valoroso.

Por vezes, para a produção da tecnosfera do turismo, são elaborados programas de planejamento, quase sempre para a implantação de infraestrutura de acesso ao destino turístico, como rodovias e aeroportos. Na elaboração do planejamento territorial são determinantes os discursos e as ações do poder público, das empresas, dos turistas, dos trabalhadores, da sociedade civil organizada, etc., guardadas as proporções de poder econômico, propriedade de “capital espacial”, nos termos de Lévy (2003), e de influência política de cada um desses sujeitos têm nos processos de produção do espaço. Segundo Lévy (2003, p. 124), “capital espacial” é o conjunto de recursos acumulados por um “ator”, que lhe permite tirar vantagem em função de sua estratégia de uso da dimensão espacial da sociedade, ou seja, é um bem social acumulável e utilizável para produzir outros bens sociais. Construído por analogia com o conceito econômico de “capital”, a noção de capital

espacial se situa, segundo Lévy, em trabalhos de sociólogos que visam alargar e generalizar a ideia de uma dotação desigual dos diferentes membros de uma sociedade, no que diz respeito aos recursos utilizados para a produção 8.

De todo modo, “a sociedade local comanda, sobretudo, os aspectos técnicos do trabalho local, enquanto é residual e incompleto seu comando sobre aspectos políticos do trabalho local, cujo controle se dá em outras instâncias, superiores e distantes” (SANTOS, 2002, p. 273). A condição de classe, que distingue a territorialidade dos diferentes sujeitos, permite aos de maior poder econômico uma maior capacidade de seleção e de uso da terra, bem como de influir nas políticas que possam normalizar seu uso. Assim, com o exercício assimétrico da territorialidade, os sujeitos de maior poder econômico e influência política são privilegiados no momento de definição do uso do território, inclusive com a apropriação privada de espaços públicos. Portanto, o uso que se faz do espaço, bem como o que se fez e o que se fará dele, determina uma produção espacial caracterizada pela presença de formas estabelecidas pelas desiguais relações capitalistas contemporâneas.

Nessa perspectiva, a produção do espaço acontece de modo desigual e contraditório, refletindo as relações sociais diferenciadas de poder, notadamente as que ocorrem entre capital e trabalho, configurando um território onde uns usam e controlam o espaço, enquanto que outros são usados e controlados por meio dele. Uma dimensão social de vivência em comunidade é definida por uma “produção do espaço” que envolve, segundo Gomes (1991, p. 54), homens que trabalham para produzir os bens sociais necessários à nossa vida diária em cada momento da produção. Nesse sentido, “produzir espaço” tem dois significados: para o capitalista, é produção de lucro acumulativo e, para o trabalhador, é criar uma ambiência condigna de existência material e espiritual. Assim, a “produção do espaço” consiste na realização prática de produção de objetos “geograficizados”, segundo uma lógica econômica, destinados a cumprir funções diferenciadas, em sintonia com as necessidades de reprodução das relações sociais de produção e da divisão social do trabalho (GODOY, 2004, p. 31).

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Concretamente, afirma Lévy (2003, p. 125), da mesma maneira que um capital econômico compreende um patrimônio e uma capacidade de fazê-lo frutificar, o capital espacial compreende um patrimônio de lugares, de “redes” apropriadas de uma maneira ou de outra, bem como uma competência para geri-los e adquirir outros patrimônios. Nesse entendimento, segundo Lévy (2003, p. 126), o portfólio patrimonial de um indivíduo é constituído de um “conjunto de espaços”, sobre o qual há uma capacidade de uso que se pode tirar proveito: “poder e direito de habitar”, “construção de redes sociais localizadas”, etc. Esta competência, para Lévy, pode se nutrir de experiências acumuladas nos espaços, que abrem a possibilidade para se economizar tempo, energia e testes em novos espaços ou, ainda, de se desenvolver novas maneiras de se usar os antigos.

Segundo Cordeiro (2007, p. 36), no turismo, a compreensão sobre a produção de um espaço deve se alicerçar, antes de tudo, no entendimento do espaço enquanto mercadoria, já que não há registros de destinos turísticos surgidos unicamente em função do “desejo da troca de experiências entre visitante e visitado” ou do “prazer em receber o visitante”. Os espaços do turismo, completa Cordeiro, são produzidos com o único intuito de obter retornos financeiros em troca da visitação, tão somente como reflexo da lógica de conversão do valor de uso em valor de troca.

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