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As pequenas literaturas

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 111-114)

"A memória de uma pequena nação não é mais curta que a de uma grande, ela, portanto, trabalhacom maior profundidade o ma- terial existente. Decerto há menos empregos para os especialistas da história literária, mas a literatura é menos problema da história literária do que problema do povo, e por isso encontra-se, senão em mãos puras, pelo menos em boas mãos. Afinal, as exigências que a consciência coloca ao indivíduo em um país pequeno acar- retam a de que todos devem estar sempre prontos para conhecer a parcela de literatura que Ihes cabe, a sustentá-la e a lutar por ela, a lutar por ela em qualquer caso, mesmo se não a conhecem nem a sustentam tudo isso conduz à difusão da lite- ratura no pais, onde ela se agarra aos políticos."

Kafka, Diário, 25 de dezembro de 11.

O espaço literário não é uma estrutura imutável, congelada de uma vez por todas em suas hierarquias e suas relações unívocas de domina- ção. Mesmo se a distribuição desigual dos recursos literários induz formas de dominação duráveis, ele é o local de lutas incessantes, de contestações da autoridade e da legitimidade, de rebeliões, de missões e até de revoluções literárias que conseguem modificar as re- lações de força e provocar reviravoltas nas hierarquias. Nesse sentido a única história real da literatura é a das revoltas específicas, dos ato de violência, dos manifestos, das invenções de formas e de línguas, de todas as subversões da ordem literária que aos poucos "fazem" a ratura e o universo literário.

Todos os espaços literários, inclusive o espaço francês, foram domi- nados em algum momento de sua história. O universo literário

cional foi construído nas lutas dos diversos protagonistas que tentavam entrar no jogo e por meio deles. Em outras palavras, do ponto de vista

da história e da gênese do universo literário mundial, a literatura é uma espécie de criação, ao mesmo tempo irredutivelmente singular e no entanto inelutavelmente coletiva, de todos os que criaram, reinventaram ou se reapropriaram do conjunto das soluções disponíveis para mudar a ordem do mundo literário e a univocidade das relações de força que o governam: novos gêneros literários, formas inéditas, novas línguas, traduções, literarização dos usos populares da língua, etc.

É por isso que se pode observar quase experimentalmente a partir de 1549, data da edição princeps de A defesa e ilustração da língua francesa, mecanismos que devem ser descritos paradoxalmente ao mesmo tempo como históricos e trans-históricos. Existem "efeitos de dominação" que são os mesmos em toda a parte, que se exercem em qualquer lugar e em qualquer época de maneira idêntica e cujo conhe- cimento fornece (quase) universais de compreensão dos textos literários. Esse modelo permite de fato compreender fenômenos literários totalmente diferentes e distantes no tempo e no espaço, abs- traindo-se particularidades históricas secundárias. O fato de ocupar uma posição dominada e excêntrica tem efeitos tão fortes que é vel aproximar escritores que aparentemente tudo separa. Podem estar separados historicamente, como e Kateb Yacine, ou como C. F. Ramuz e os escritores do "crioulismo"; podem estar separados porque empregam uma língua diferente, como B. Shaw e Henri Michaux, ou como Ibsen e Joyce; ou porque são antigos coloniais ou simples provincianos, fundadores de movimentos literários ou sim- ples renovadores, exilados interiores em seu próprio país, como Juan Benet, ou emigrados literários, como Danilo e Joyce

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todos es- tão diante das mesmas alternativas e estranhamente encontram solu- ções semelhantes para os mesmos dilemas, conseguindo vezes operar verdadeiras revoluções especificas, atravessar o espelho e impor-se provocando uma reviravolta nas regras do jogo central.

O efeito de revelação provavelmente jamais é tão grande como quando tem condições de aproximar e escritores que aparen- temente tudo opõe e que, separados por toda a tradição lingüística e cultural, pelo menos têm em comum tudo o que está inscrito em uma relação similar com uma potência literária central. É o caso, por exemplo, de dois autores suíços, Robert Walser e C. F. Ramuz, que, nascidos no mesmo ano, 1878, no mesmo pais, um em Bienne,

o outro em Lausanne, tiveram itinerários homólogos, cujos efeitos se inscrevem nas próprias obras: suas principais tentativas para impor-se em sua capital literária respectiva

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Ramuz instala-se em Paris, tenta impor-se ali durante doze anos; Walser estréia em Munique e depois em Berlim -, o fracasso deles, o retomo forçado ao país natal, a rei- vindicação de uma especificidade e de uma "modéstia" suíca. etc. E é decerto a diferença dos "recursos" específicos entre as duas regiões helvéticas que explica ainda a diferença entre as escolhas formais dos dois escritores, situados na mesma relação de ruptura fascinada com suas tradições respectivas: o romance "camponês" de Ramuz

se, em grande parte, na ausência de tradição literária do cantão de Vaud; em compensação, Walser, que pode se apoiar em uma história literária suíça alemã mais duradoura, adota formas mais refinadas.

Para ter acesso à simples existência literária, para lutar contra a invisibilidade que os ameaça de imediato, os escritores têm de criar as condições de seu "surgimento", isto é, de sua visibilidade literária. A liberdade criadora dos escritores vindos das "periferias" do mundo não lhe foi proporcionada de imediato: a conquistaram à custa de lutas sempre denegadas como tal em nome da universalidade literária e da igualdade de todos diante da criação e da invenção de estratégias complexas que provocam total reviravolta do universo dos possíveis literários. As soluções criadas aos poucos, arrancadas da inércia da estrutura, são o produto de compromissos refinados; as soluções ima- ginadas para o despojamento literário tomaram-se cada vez mais sutis e fizeram os termos da equação evoluírem ao mesmo tempo no plano estilístico e no plano da "política" literária.

Com o intuito de restituir seu sentido e sua razão de ser ao conjun- to das obras, dos projetos literários e das estéticas das regiões menos dotadas literariamente, deve-se portanto levar em conta o conjunto das soluções relativas à dependência literária para construir uma espécie de modelo gerador, que permita, a partir de uma série limitada de pos- sibilidades (essencialmente lingüísticas, estilísticas e políticas), tornar a gerar a série infinita das soluções, aproximar escritores que nem a análise estilística as histórias literárias nacionais permitiriam re- lacionar, e constituir "famílias" literárias, conjuntos de casos que, em- bora às vezes estejam muito distantes no tempo e no espaço, sejam

PEQUENAS LITERATURAS

unidos por uma "semelhança de família". Classificam-se em geral os escritores por nações, gêneros, épocas, línguas, movimentos literários

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Ou opta-se por não classificá-los, preferindo-se ao emprego de uma verdadeira história literária comparativa a celebração do "milagre" da singularidade absoluta. Na melhor das hipóteses, detectam-se algumas posições extremadas, como a crítica britânica, que hoje opõe, por exem- plo, V. S. Naipaul a Rushdie, ou seja, uma posição de assi- milação aos valores centrais reivindicada contra uma postura de resistência explícita ao neo-imperialismo literário. O fato de conside- rar as obras literárias em escala conduz à descoberta de outros princípios de contigüidade e de diferenciação, que permitem aproximar o que em geral se separa e separar às vezes aquilo que se tem o costume de reunir, fazendo assim surgir propriedades ignoradas. É evidente que essa sintaxe literária é uma proposta teórica que a infinita diversidade do real só poderia matizar, comgir, refinar. Não se trata de pretender que todos os possíveis tenham sido esgotados, nem que poderiam ser previsíveis por meio desse modelo: simplesmente tenta-se mostrar que a dependência literária favorece a criação de uma espécie de gama literária inédita que todos os escritores dominados do mundo têm ao mesmo tempo de reinventar e reivindicar para criar a modemidade, ou seja, para provocar novas revoluções literárias.

Mas não se explicaria a realidade dos caminhos tomados por esses autores se não fosse precisado de imediato que nenhum deles age e trabalha de acordo com estratégias elaboradas consciente e racional- mente, mesmo que sejam, como dissemos, os protagonistas mais lúci- dos do universo literário. A "opção" por trabalhar na elaboração de uma literatura nacional, ou de escrever em uma grande língua literária, jamais é uma decisão livre e deliberada. As "leis" de fidelidade (ou de pertença) nacionais estão tão bem incorporadas que raramente são vi- vidas como coerções. Tomam-se uma das principais da definição (literária) de si. Em outras palavras, trata-se de descrever aqui uma estrutura geral cujos efeitos os "excêntricos" sentem sem nem sempre saber, e que os "centrais" ignoram por completo pela sua posição de imediato universalizada.

Esse modelo permite também reconstituir a cronologia da forma- ção de cada espaço literário, pois, como se demonstrará, com poucas variantes e diferenças secundárias que certamente se devem à história

política, à situação lingüística e ao previamente acumulado, as principais etapas da formação literária inicial são quase as mesmas para todos os espaços literários constituídos tardiamente e nascidos de uma reivindicação nacional. Existe uma ordem de desenvolvimento quase universal e trans-histórica

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com algumas variantes históricas ou lingüísticas

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do que é vivido, analisado e relatado em geral pelos historiadores da literatura como particularidade histórica e nacional inalienável. Durante os quatro séculos de formação e de unificação do campo literário mundial, de fato, as lutas e as estratégias dos escritores para criar ou reunir seus recursos literários próprios far-se-ão, mais ou menos, segundo a mesma lógica. Mesmo que as clivagens

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portanto as lutas

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tenham assumido formas novas desde o início do século e, a despeito da extrema diversidade das situações literárias e geopolíticas, dos debates estéticos, dos conflitos políticos, pode-se descrever de modo quase trans-histórico as modalidades de revoltas e de reivindicações de liberdade literária, começando-se pela literatura francesa da segunda metade do século

As duas grandes "famílias" de estratégias, fundadoras de todas as lutas dentro dos espaços literários nacionais, são, por um lado, a milaçáo, isto é, a integração, por uma diluição ou um desvanecimento de qualquer diferença original, em um espaço literário dominante, e, por outro, a dissimilação ou a diferenciação, isto é, a afirmação de uma diferença a partir sobretudo de uma reivindicação nacional. Esses dois tipos principais de soluções são muito claros no momento do surgimento de um movimento de reivindicação nacional ou de uma independência nacional. Foram descritos há muito pelos "indígenas" que, melhor do que ninguém, sabem diante de que dilema estão. Assim, evocando em 1923 "a literatura flamenga contemporânea", André de Ridder escrevia: "Imaginem o destino dos verdadeiros intelectuais perdidos em semelhante ilhota concebendo-os como sepa- rados do resto do mundo, tendo como todo alimento espiritual essa literatura de província, essa música folclórica, essa arte de pátria pe- quena. Entre o perigo de absorção por uma cultura poderosa, dotada de uma força de expansão universal

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como é para nós a cultura lati- na em nossas fronteiras do sul, a cultura germânica nas do leste

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e o de um isolamento em uma suficiência mesquinha e esterilizante,

PEQUENAS LITERATURAS

dos de uma pedra a outra, nossos pilotos souberam conduzir bem sua barca."' Glissant, poeta antilhano, formula a mesma

tiva em termos bem próximos, acrescentando a isso a problemática da língua: "'Viver um fechamento ou abrir-se a outro': é a alternativa qual se pretendia reduzir qualquer povo que reivindicava falar sua lín- gua As nações não teriam outro futuro que não esse fechamento em um particular limitativo ou, ao contrário, a diluição em um universal E Octavio Paz confirma o diagnóstico, destacando em A busca do presente as duas grandes tensões fundadoras das literaturas americanas: "Embora sendo muito diferentes, essas três literaturas (primeiro a anglo-americana, depois os dois ramos da Amé- rica Latina: a hispano-americana e a brasileira) têm um ponto comum: a luta, mais ideológica do que literária, entre as tendências cosmopoli- tas e autóctones, entre o 'europeanismo' e o

Uma das particularidades da relação que os escritores desprovidos mantêm com o mundo literário é portanto o dilema terrível e necessário que têm de enfrentar e resolver sob formas diferentes, qualquer que seja sua história política, nacional, literária ou lingüística. Colocados diante de uma antinomia que só pertence (e aparece) a eles, têm de operar uma "opção" necessária e dolorosa: seja afirmar sua diferença e "condenar- se" ao caminho incerto e difícil dos escritores nacionais (regionais, po- pulares, etc.) escrevendo nas "pequenas" línguas literárias e pouco ou não reconhecidas no universo literário internacional, seja "trair" sua per- tença e assimilar-se a um dos grandes centros literários renegando sua "diferença". Édouard Glissant traz assim à lembrança um "sofrimento de expressão", que só pertence aos países dominados, e que Ihes pertence de tal forma que os outros o ignoram a ponto de não o compreender: "Tam- bém descobrimos, surpresos, pessoas instaladas na massa tranqüila de sua língua, que nem mesmo compreendem que possa existir em algum lugar um de linguagem para quem quer que seja e que, como nos Estados Unidos, dizem sem rodeios: 'isso não é um

A lucidez extraordinária de Ramuz também permite confes- sar e confessar-se em 1935, em Questions, o que permanece em geral em estado inconsciente e que mereceria ser chamado a partir de en- tão o dilema de Ramuz: o dilema que a mim se colocou quando eu tinha vinte anos e que se coloca a todos os que estão no mesmo caso que eu, quer sejam em grande número, quer não: os exteriores, os excêntricos, os que nasceram fora de uma fronteira; os que, ao mesmo tempo em que estão ligados a uma cultura pela língua, são de certa forma dela exilados pela religião ou por sua pertença política O problema coloca-se mais cedo ou mais tarde: ou é necessário fazer carreira primeiro e dobrar-se a um conjunto de tegras que não são apenas estéticas ou literárias, mas também sociais, políticas ou até mundanas; ou romper deliberadamente com elas, não apenas revelando- as, mas exagerando suas próprias diferenças, ainda que se as faça serem admitidas mais tarde, se

Por fim, a história irlandesa irá servir-nos de paradigma e mostra- rá que o "milagre" literário irlandês também pode servir de unidade de medida e de "modelo reduzido" para compreender a quase totalidade dos problemas que se colocam aos escritores e universos literários do- minados.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 111-114)

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