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Naipaul, a identificação conservadora

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 131-134)

A história de V. S. Naipaul, vindo dos confins do império britânico,

é a de um escritor inteiramente identificado aos valores literários in- gleses que, na ausência de qualquer tradição literária em seu país, tem como escolha "tornar-se" inglês. Apesar de todos os sofrimentos, contradições, aporias aos quais foi exposto por sua trajetória, cultura

3. loyce, 1929, integral de A. Morel,

assistido por S. inteiramente revista por V. e pelo autor). bms.:

1975, 8 257

ASSIMILADOS

ou até cor da pele, lembrança inextinguível de sua distância, só conse- gue manter-se entre duas aspas: nem completamente inglês (embora tenha recebido título de nobreza da rainha), nem totalmente indiano.

V. S. Naipaul nasceu em Trinidad, Antilhas inglesas. É descendente de emigrantes indianos, camponeses sob contrato por volta de 1880 para povoar as plantações de diversas partes do império britânico4

e enviados às ilhas às ilhas Maurício, à África do Sul

-

comunidade por por volta do final do -,

e à Trinidad. Graças a uma bolsa, foi para a Inglaterra a fim de prosse- guir seus estudos com o projeto de tomar-se escrito? e não descansou até assimilar-se, integrar-se, encamar enfim a mais perfeita. O enigma da chegada6, livro publicado na em 1987, ou seja, quase quarenta anos após a chegada de Naipaul à capital do império, é uma espécie de volta para si mesmo, o balanço desencantado de uma vida transcorrida na busca patética de um lugar definido e definitivo. "Faz tempo que não leio um livro tão triste, com um tom de melancolia contí- nua", escreve Rushdie arespeito dessa obra quando ela foi

em Londres7. A ausência de uma tradição literária e cultural própria de

Trinidad que ele poderia reivindicar, apropriar-se ou construir, e a im- possibilidade de se identificar totalmente, em decorrência do corte históri- co e geográfico demasiado grande, com a da qual duas gerações emigradas o separam, fazem de a encamação dolorosa de um duplo. Nesse livro, ele resgata, com a lucidez impiedosa de quem sofreu terrivelmente por perceber o fato de ser estrangeiro estampado no olhar dos outros e com aquela espécie de crueldade aplicada a si mesmo que o aproxima de Ramuz contando sua chegada a Paris8, sua viagem de

of Spain, capital de Trinidad, até Southampton. Vindo "como um provinciano de [seu] canto afastado do impérion9, Naipaul compreende

4. Cf. V. S. Naipaul, de Londres, 1990, Paris, 1992, [Ed. bras.: Um milhão de motins agora. Paulo: Companhia das Le- tras, 1997.1

5. Cf. V. S. Naipaul, de Londres, 1987, Paris, 1991,

p. [Ed. 1994.1

6 . Ibid.

7. S. Rushdie, p. 164.

8. Cf. C. E Ramuz, d'étrr. Paris, La Différence, 1991

9. S. Naipaul, de p. 169.

que é um incapaz de apropriar-se efetivamente da tradi- ção cultural da índia, mas também muito distante, por sua educação, sua origem e a cor de sua pele, dos costumes intelectuais e literários de Lon- dres: "Esse universo semi-indiano", escreve a respeito de Trinidad, "esse universo afastado da índia no espaço e no tempo, e carregado de misté- rio para o homem que nem mesmo compreendia a língua pela metade, não penetrava em sua religião e ritos, esse universo semi-indiano era a forma de sociedade que ele

Naipaul aborda, após sua formação e sua estréia difícil como escri- tor, sua instalação no Wiltshire, em uma Inglaterra rural onde, como num "segundo nascimento", tenta finalmente "tomar-se" inglês, compreender a paisagem, a passagem das estações, a história e a vida das pessoas da- quele país. "Adquiria lentamente um saber. Não se comparava ao conhe- cimento quase instintivo das plantas e das flores de Trinidad que me fora dado em minha infância; era como aprender uma outra língua."" "Foi nesse momento que aprendi a identificar essa estação precisa [o final da primavera], a associar a ela um certo estado das flores, das árvores, do Essa vontade desesperada de aderir a um país, de conhecer sua "intimidade" cotidiana, e essa maneira de apoderar-se de sua história para dela se apropriar - "ficava o tempo todo impregnado do sentimento da antiguidade dessas terras, de sua apropriação pelo homem estava ago- ra em uníssono com a paisagem, com esse lugar solitário, pela primeira vez desde minha chegada à Inglaterra"" -são lembradas o tempo todo como paliativo para uma ausência, uma falta ou o que sente como tal. Para fazer cessar seu estado de estrangeiro definido a princípio negativamente, sem história, sem literatura, sem país (Trinidad não tem nem mesmo esse estatuto), sem tradição, sem cultura própria tudo o que ele chama de seu "passado incerto"'" ele na "anglitude".

É provavelmente assim que se pode explicar sua visão do mundo decididamente inglesa, sua vontade quase provocadora de afirmar-se mais inglês que os ingleses, mais nostálgico do que eles do império e

10. Ibid., p.

Ibid., p. 43.

12. Ibid., p. 249

13. Ibid., p. 14. Ibid., p.

de um poder perdido pela Inglaterra, seu orgulho de proclamar-se pro- duto da civilização ocidental. Seu discurso publicado em The New York Review of Books, cujo próprio título - "Nossa civilização

-supõe uma apropriação reivindicada, é uma magnífica ilustração de sua identificação sem falha aos valores do Império britânico. Fazendo a comparação, aparentemente objetiva, entre dois tipos de colonialismo, o sistema europeu e a colonização muçulmana, condena a e afirma sua adesão e seu orgulho de ser produto do primeiro: "E se tenho de descrever a civilização universal, diria que é a civilização que me permitiu empreender essa viagem da periferia ao centro." Naipaul permanece nessa posição ao mesmo tempo conservadora, de- sencantada e impossível: o estigma da pele lembra-o incessantemente essa espécie de "traição" específica com relação a seus semelhantes, ex-colonizados da Inglaterra.

Mesmo seu ponto de vista sobre a Índia contemporânea, complexo, doloroso, difícil e é marcado por essa estranha lucidez triste que o faz reconhecer, primeiro e inclusive nas reivindicações de independência nacional, a marca da herança inglesa. Sua proximidade distante permite-lhe enunciar verdades tão paradoxais e insuportáveis quanto estas: "A história da antiga foi escrita por seus

As próprias noções de pátria, de herança nacional, de cultura e de civilização que mais tarde alimentaram o movimento nacionalista indiano saíram das concepções inglesas do mundo e da história. E ele próprio criança, na longínqua Trinidad, aprendera "o que Goethe dis- sera de Shankuntala, a peça de teatro em sãnscrito que Sir William Jones traduzira em

15. V. S. Naipaul, discurso pronunciado no Manhattan Institute de Nova The of 31 de janeiro de 1991. 16. Ver também V. S. Naipaul, Paris, Michel, 1981. 17. Olhar que mudou com o tempo e evoluiu entre sua primeira viagem em 1962

Paris, Bourgois, a de 1975, a qual vai escrever (Paris, Bourgois, 1989) em 1975,

de em 1990.

18. V. S. Naipaul, Um de p. 439.

19. Ibid., p. William Jones, grande erudito britânico do século ardoroso Luzes, nomeado juiz na Corte suprema de Bengala em Calcutá, fazer nas Indias e aprendeu sânscrito para traduzir os grandes textos da tradição sagrada da

Estes são os estranhos paradoxos, os impasses sucessivos nos quais Naipaul, como ele descobre bem cedo, se encontra preso. E até sua visão pessimista da Inglaterra, sua nostalgia conservadora de um país pastoral, dos solares testemunhas da grandeza antiga e do declínio, sua saudade quase colonial do poder britânico, são tantos sinais de uma estranha inversão de pontos de vista e de adesão total à visão inglesa do mundo, com a qual, contudo, jamais consegue coincidir. O "des- gosto olímpico de Naipaul" evocado por que o conduz a encarar os países do Terceiro Mundo com cinismo e desencantamento, tanto nas suas ficções (por exemplo, Guerrilheirosz1) quanto nas suas reportagens, também é o efeito de sua condição de "assimilado", de "traidor" da condição de colonizado, de cético radical.

Sua busca da

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recompensada por seu tí- tulo de nobreza outorgado pela rainha da Inglaterra - o conduz natural- mente a jamais inovar em matéria formal e Seu conservantismo político, uma espécie de hipercorreção, como dizem os lingüistas, com relação ao espaço político e literário inglês também se encontra em todos os seus textos. O caráter tradicional de todas as suas narrações e

vas segue a tendência dessa busca patética de identidade. Escrever como um inglês é estar em conformidade com os cânones da Inglaterra. Seu Nobel em 2001 veio de certa forma encerrar o de sua assimilação, levando a um grau de perfeição extrema sua transmutação literária e nacional: de escritor inglês, virou autor universal. Sobretu- do, esse reconhecimento supremoz2 permite-lhe "justificar" as ambi- güidades de sua posição de assimilado mediante a qual pretende poder dizer melhor que outros a verdade sobre os grupos mais deserdados (principalmente em seus livros ensaísticos), recorrendo a sua dupla pertença para adotar sobre eles o ponto de vista mais desfavorável.

20. S. Rushdie, Parries 399.

Naipaul. Paris, Albin Michel, [Ed. bras.: São Paulo, Companhia das Letras, 1990.1

22. O Nobel concedido a Naipaul opõe-se a toda a tácita de político do prêmio.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 131-134)

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