• Nenhum resultado encontrado

Dependências políticas

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 120-124)

A politização sob a forma nacional ounacionalista- portanto, de certa forma, a "nacionalização

-

é um dos traços constitutivos das "pequenas" literaturas. É até o traço "vivo", a prova, de certo modo, do laço necessário que une, no momento das primeiras revoltas e das primeiras tentativas de dissimilação, literatura e nação. Sabe-se, por exemplo, que o movimento do Renascimento literário irlandês substi- tuiu de certa maneira o movimento de nacionalismo político. A queda e o suicídio de Parnell em 1891

-

nacionalista irlandês, "grande agitador", que encamara então uma imensa esperança política em toda a Irlanda- assinalavam o de uma certa forma de ação políti- ca ao afastar qualquer solução politicamente aceitável. O Renascimento literário marca então o desencanto politico de uma geração intelectual. A passagem do nacionalismo politico para o nacionalismo cultural (e sobretudo literário) aparece, nesse pais fortemente politizado e há muito acostumado ao combate nacional, como a perseguição dos mes- mos fins por caminhos diferentes. Ou melhor, a questão nacional e politica será precisamente o embate central que clivará o espaço literá- rio: de um lado estarão os anglo-irlandeses protestantes, com Yeats como líder - mais "culturalistas" do que políticos

-

e, de outro, os intelectuais católicos mais políticos, comprometidos na luta pela rea- bilitação do ou pelo realismo estético (e politico). Mas tanto para recusá-la como para assumi-la, "a conexão com a politica"

-

para repetir a expressão de a propósito das "pequenas literatu- ras" - dos escritores irlandeses é permanente.

Se o movimento literário ocupa durante alguns anos o lugar do com- bate político, também fornece-lhe outras armas e, de certa maneira, os insurretos da Páscoa de 1916 também são leitores ardorosos dos textos de Yeats, Synge e Hyde. Muitos dentre os líderes dessa revolta reprimida a ferro e fogo, como Patrick Pearse ou Mac Donagh, são inte-

lectuais. "Eu bem sabia", lembrou George em 1934, "o quanto era profundo o amor de pelo que descobriu ou A própria cronologia do movimento é politica, pois a insurreição da Páscoa de 1916 marcou também um momento-chave na criação dramática e poética. Yeats então se retira para uma espécie de distância aristocrática e espiritualista. Contra o realismo literário, assi- milado diretamente ao politico, busca a autonomia no retiro nostálgico. A politização do espaço literário irlandês dá a medida de sua de- pendência: ainda em 1930 é um espaço muito excentrado, afastado dos grandes centros literários europeus e que permanece amplamente sob o domínio histórico e politico de Londres. As escolhas literárias dos escritores de são, em grande proporção, determinadas por sua posição diante das instâncias inglesas, e mesmo seu distauciamento, sua recusa a dobrar-se às exigências estéticas e criticas da capital britâ- nica acabam assinalando o peso das instâncias e dos cânones londri- nos nos debates literários irlandeses. Essa dependência proíbe assim limitar a descrição desse espaço (como namaioria das vezes faz a aná- lise literária, que confunde fronteiras nacionais e limites do espaço literário) aos fenômenos literários que se desenvolvem em Dublim.

Dentro desses espaços desprovidos, os escritores são "condenados" a uma temática nacional ou popular: devem desenvolver, defender, ilus- trar, ainda que criticando, as aventuras, a história e as controvérsias na- cionais. Na maioria das vezes, empenhados em defender uma idéia de seu pais, estão portanto comprometidos com a elaboração de uma litera- tura nacional. A importância do tema nacional ou popular em uma pro- dução literária nacional seria provavelmente a melhor medida do grau de dependência politica de um espaço literário. A questão central em tomo da qual se organiza a maioria dos debates literários nesses espaços literários emergentes (e isso diferencialmente segundo a data de sua in- dependência politica e da importância de seus recursos literários) 35. Herói mitico irlandês no "ciclo do (séculos tomou a ser homenageado

por W. Yeats. Filho do deus Lug, dotado de sete dedos em cada e em cada pé, assim como de sete pupilas em cada olho, é a dacólerae da independência nacionais irlandesas. "O irlandês", p.

36. Declan Kiberd, The Literature the Nafion, Londres,

PEQUENAS LITERATURAS

manece a da nação, da língua e do povo, da língua do povo, da definição lingüística, literária e histórica da nação. Nas regiões anexadas ou domi- nadas politicamente, a literatura é uma arma de luta ou de resistência nacional. "Quando a Coréia perdeu sua soberania em virtude de sua anexação pelo Japão (em coube unicamente à literatura a tarefa difícil de garantir a volta dessa soberania. Essa missão foi de certa seu ponto de Encarregados de instaurar uma especificidade

de fixar uma língua ou dar as chaves de uma cultura nacio- nal única, os escritores colocam a escrita a serviço da nação e do povo. A literatura toma-se nacional popular a serviço da idéia nacional, encarregada de colocar a nova nação na categoria de todas aquelas que têm existência e reconhecimento Desse modo estabelece-se um panteão, uma história, ancestrais prestigiosos e fundadores, etc. "Uma pequena nação", constata Kundera, "assemelha-se a uma grande e ela gosta de se designar assim Na grande família de uma pequena nação, o artista fica portanto amarrado de várias maneiras, por muitas cordas. Quando Nietzsche maltrata ruidosamente o caráter ale- mão, quando proclama que prefere a Itália à sua pátria, ne- nhum alemão, nenhum francês se ofende com isso; se um grego ou um checo ousasse dizer coisa, sua famíliairia anatematizá-lo como um traidor

A ligação com a luta nacional gera uma dependência do novo pú- blico nacional, portanto uma ausência quase total de autonomia. É o que explica, na Irlanda do início do século xx, os diversos "escânda- los" que pontuam a vida do The Abbey uma das únicas insti- tuições nacionais da Irlanda ocupada, frequentada por muitos militantes nacionalistas que ali se encontravam por motivos políticos. Tudo o que poderia parecer questionar a initologia do heroísmo nacional ou a narrativa fundadora da nação era imediatamente rejeitado por um pú- blico furioso, impedindo qualquer manifestação de autonomia dos es- critores. A violência que presidiu em 1907 a estréia de Playboy of the World de Synge manifesta essa ausência quase total da auto- nomia, essa dependência constitutiva do público nacional e o combate

nacionalista. Ainda em 1923, no momento das representações de The Shadow of a de foi no programa uma nota que avisava os espectadores: "Os tiros ouvidos durante o espetáculo fazem parte do roteiro. Pede-se que o público permaneça

Deve-se dizer que a peça estreara em de 1923, quando ainda eram trocados os últimos tiros da guerra civil, e em cena eram evocados acontecimentos que tinham ocorrido havia apenas três anos. O "efeito do real" é, em todo caso, direta e imediatamente relacionado com a situação política e não com uma técnica dramática específica. Joyce, que reivindica uma posição de autonomia com respeito às normas po- pulares questionando a evidência do "dever nacional" dos escritores nacionais, deplora precisamente, em seu violento panfleto de 1901 contra o Irish Literary Theatre, The Day the Rabblement, a submis- são dos criadores aos gostos do público:

...

o do povo é mais perigoso que o da vulgaridade O Irish Literary Theatre agora não passa da propriedade da plebe da raça mais atrasada da Europa O populacho plácido e intensamente moral pontifica nas galerias e ca- marotes, cacarejando aprovação Se um artista cobiçar os favores do populacho, não poderá escapar ao contágio de seu fetichismo e de seu ilusão e, se se unir a um movimento popular, será por sua conta e

Diferentemente do que ocorre nos velhos países europeus em declínio e que assistem ao renascimento de nacionalismos regressivos e nostálgicos, os novos nacionalismos são, na maioria das vezes, poli- ticamente subversivos, na medida em que são construídos contra a imposição política central de um imperialismo. Da mesma maneira que os nacionalismos (políticos e culturais) não são equivalentes, nem em sua forma, nem em seu conteúdo, e diferem segundo a antiguidade nacional, os escritores que reivindicam um papel nacional espaços mais recentes -como Synge, O'Casey e Douglas Hyde na Irlanda do início - ocupam por isso uma posição complexa, nem acadêmica nem conservadora: lutam com meios aparentemente

37. Kim Yun-Sik, de coréenne moderne", coréenne, n" 40, setembro de 1995, p. 4.

38. M. Kundera, op. p. 226- 227.

39. D. Kiberd, p. 218. A é minha.

40. "Le jour de Paris, p. 82-83.

PEQUENAS

nômicos, para impor sua independência. Para todos os desprovidos de qualquer literário, de qualquer tradição constituída, despos- suídos em matéria de língua, de cultura e de tradição populares, há outra saída senão entrar na luta política a fim de conquistar os instru- mentos específicos (sob pena de se aniquilar em uma outra tradição literária). Nessa luta, as armas principais o povo e a língua (su- posta ou proclamada) do povo.

Os desafios políticos mudam de sentido no momento em que o campo literário afirma sua independência diante dos imperativos nacio- nais e políticos e em que aparecem escritores anti ou anacionais

-

como, na Irlanda, primeiro James Joyce, depois Beckett

-

que,

bando de certa forma a polaridade do espaço, remetem os nacionais à dependência política, ao atraso estético ou ao academismo.

A partir da segunda metade do século os escritores dos espaços mais desprovidos têm, na realidade, de conquistar simultaneamente duas de independência: uma independência política, para proporcio- nar uma existência à nação política e assim participar de seu reconheci- mento político no plano internacional: e uma independência propriamente literária, impondo sobretudo uma língua nacionalipopular e participan- do do enriquecimento literário por meio de suas obras. Em um primeiro tempo, para liberar-se do domínio literário que vigora em escala

cional, os escritores das nações mais jovens devem apoiar-se em uma força política, a da nação, o que os conduz a subordinar, em grande parte, suas práticas literárias a embates políticos nacionais. Por isso a conquista da autonomia literária desses países passa a princípio pela conquista de uma independência política, isto é, por práticas literárias fortemente ligadas à questão nacional, portanto, não específicas. Só quan- do um mínimo de recursos e de independência política pôde ser acumu- lado é que se pode conduzir a luta pela autonomia propriamente literária.

Nos espaços mais antigos também acontece, por razões

turais, de o processo de autonomização ser brutalmente interrompido e com isso os intelectuais serem remetidos às mesmas opções que os criadores de nações emergentes. A tomada do poder por ditaduras mili- tares como as que dominaram Espanha e Portugal na própria Europa, ou a instalação dos regimes comunistas em regiões menos antigas lite- rariamente, como a Europa Central e Oriental, produziram o mesmo fenômeno de "nacionalização" e de politização intensa (e portanto de

marginalização) literárias. Durante as longas ditaduras franquista e os espaços literários espanhol e português viram-se sub- metidos às instâncias políticas e diretamente anexados por elas através da censura ou da imposição de formas e conteúdos. Apesar de uma história literária antiga e, portanto, de uma relativa autonomia, as prio- ridades literárias tomaram-se dependentes das

políticas. Os escritores foram imediatamente instrumentalizados ou submetidos à censura; qualquer manifestação de autonomia estética (e política) foi reprimida, e o processo histórico de separação das ins- tâncias políticas e nacionais foi suspenso. Nessas situações, a literatu- ra é condenada a aos limites estreitos de uma definição estritamente político-nacional

-

inclusive entre os adversários do re- gime. Lá onde qualquer mediação e qualquer independência supri- midas, os criadores encontram-se portanto de novo diante das opções características dos universos emergentes: produzir uma literatura polí- tica a serviço dos interesses nacionais ou exilar-se.

O que ocorreu na França entre 1940 e 1944 deve ser compreendido da mesma forma. Durante todo o período da ocupação alemã, de fato, o espaço literário francês perde brutalmente qualquer independência e . . de repente é submetido à censura e à repressão política e militar. Em alguns meses, a totalidade dos objetivos e das posições é redefinida e, como nos espaços emergentes mais desprovidos, a preocupação nacio- nal

-

há muito marginalizada em proveito de uma visão autônoma das práticas literárias

-

toma-se (mais uma vez) uma prioridade em tomo da qual se reconstitui a totalidade das tomadas de posição inte- lectuais: como dentro das "jovens" literaturas, a luta por um retomo à autonomia literária passa pela luta em favor da independência política da nação. A partir desse momento, assiste-se a uma inversão aparente das posições e, como mostrou Gisèle os escritores franceses 41. littéraire. littéraire

e littéraire et littérature du Deux . . .

e Henry de

de 1996, p. 3-58

. , , . .

Guerre - Paris, 1999, principalmente a primeira parte, 'Zogiques de I'engagement". p. tese de doutorado em sociologia, 1994. Ver também Anne Simonin, de

1955. Le IMEC 1994, capítulo 11:

PEQUENAS LITERATURAS mais autônomos antes da guerra, isto é, os mais formalistas, os menos

políticos, tornam-se a partir de 1939 os mais "nacionais", isto é, os que se engajam ao lado da Resistência, da defesa da nação contra o ocupante alemão e a ordem nazista. Abandonam provisoriamente o formalismo autônomo a fim de lutar politicamente pela autonomia do campo. Ao contrário, os escritores mais "nacionais" antes da guerra, os menos autônomos, são também os que, globalmente, vão na maioria das ve- zes alinhar-se do lado da colaboração.

Exceto nessas situações políticas extraordinárias, deve-se evitar confundir os escritores nacionais saídos de "pequenas" nações literárias com os "nacionais" (ou nacionalistas) dos espaços literários mais do- tados. As fortes correntes acadêmicas que se perpetuam nos espaços literários mais antigos, por exemplo na França e na Grã-Bretanha, são a prova de que a autonomia continua muito relativa mesmo nesses universos considerados independentes e de que o pólo nacional per- manece poderoso. São escritores que continuam a ignorar a existência de um presente literário do qual são excluídos e que combatem às ve- zes com violência. Produzem com os do passado textos "nacionais". Há hoje uma internacional acadêmica (e da Academia) que continua a professar uma nostalgia por práticas literárias caducas em nome de uma grandeza literária perdida. São ao mesmo tempo cen- trais e imóveis, ignorantes das inovações e das invenções do presente da literatura. Em geral membros de júris literários ou presidentes de associações (nacionais) de escritores, são eles que fabricam e contri- buem para reproduzir (principalmente por meio dos prêmios nacionais como o prêmio Goncourt) os critérios mais convencionais e mais "su- perados" com relação aos critérios mais recentes da modemidade: con- sagram obras conformes às suas categorias estéticas. Nos velhos países, o intelectual nacionalista é, por definição, um acadêmico no plano estilístico, pois nada conhece além de sua tradição nacional.

O conformismo e o conservadorismo nacionais típicos dos acadê- micos franceses, ingleses ou espanhóis nada têm em comum com a luta política e literária dos quebequenses ou dos catalães por sua auto- nomia nacional. Qualquer que seja o lugar que ocupam em seu espaço, os escritores dessas sociedades, inclusive os mais cosmopolitas e sub- versivos, continuam, por um lado, ligados a uma exigência de fideli-

dade nacional ou, pelo menos, continuam a situar-se com relação aos debates internos. Interpelados para participar prioritariamente da edificação da nação simbólica, os escritores, os os lingüis- tas, os intelectuais estão na de um combate para atribuir uma "razão de ser", como diz Ramuz, à nação nascente.

Assim, nesses universos em que os pólos políticos e literários ain- da são indistintos, os escritores constituem-se, na maioria das vezes, como "porta-vozes", no sentido próprio, do povo. "Acho que é hora de também os escritores começarem a falar com as palavras dos trabalhadores e afirma o queniano Ngugi wa Thiong'o nos anos 60. Chinua Achebe defende, segundo ele próprio diz, uma "literatura e a necessidade de consagrar-se a uma "arte aplicada" para evitar o que chama os impasses da "arte

Essa posição inseparavelmente política (nacional) e estética explica sua concepção, reafirmada várias vezes, do papel do escritor nas jo- vens nações. "The novelistas a e role of a writer a new artigos muito discutidos e encampados pelos intelec- tuais africanos

-

explicam com clareza sua concepção do escritor pedagogo e construtor de uma nação: "O escritor não pode esperar ser dispensado da tarefa de reeducação e de regeneração que deve ser re- alizada. De fato, deveria marchar à frente de seu povo. Pois, afinal é o ponto sensível de sua Considerando-se pio- neiro literário, está necessariamente a serviço da edificação nacional. Assim como Standish e Douglas Hyde, historiadores da na- ção e da literatura irlandesas na Irlanda do final do século

xrx,

Chinua Achebe tomar-se-á e depositário de sua história nacional. Sua tetralogia romanesca publicada entre 1958 e 1966 pleiteia retraçar a história da Nigéria desde o início da colonização até a independência.

42. James Ngugi, "Response to a African Per

1969, p. 56, citado por Neil New

Haven-Londres, p. 207. A tradução para o é minha. 43. Citado por Denise Coussy, Le Roman Paris, p. 491.

44. Londres, 1975.

45. março de 1970, 15, 3.

46. C. Achebe, "The as a teacher", c i t , p. 45, citado por Coussy, op.

PEQUENAS LITERATURAS

Seu primeiro romance, Things um dos raros africanos (mais de dois milhões de exemplares vendidos), evo- ca as relações dos primeiros missionários com os habitantes de uma aldeia ibo e consegue apresentar e explicar ao mesmo tempo os dois pontos de vista antagônicos: no lugar exato do intermediário, ele dá conta em inglês da realidade e da civilização africanas. Esse romance realista, didático, demonstrativo e nacional tem a dupla ambição de devolver à Nigéria sua história nacional e ensiná-la a seu povo.

Na falta de autonomia, a de historiador

-

aquele que co- nhece e transcreve a verdade nacional e constitui, por meio de sua narrativa, o primeiro patrimônio cultural nacional

-

e a de poeta con- fundem-se. A forma romanesca é o primeiro suporte da his- tórica e da epopéia nacional. já sublinhara isso a respeito da Checoslováquia que nascia: a tarefa de historiador nacional também é essencial à constituição de um patrimônio

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 120-124)

Outline

Documentos relacionados