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Os caminhos da liberdade

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 59-61)

Os espaços nacionais constroem-se, como vimos, em relação ínti- ma com o espaço político da nação que, em compensação, contribuem para edificar. Mas, nos espaços literários mais dotados, a antigüidade do capital - que pressupõe ao mesmo tempo sua nobreza, seu prestí- gio, seu volume, seu reconhecimento internacional - permitirá a con- quista progressiva da autonomia do conjunto do espaço. Os campos literários mais antigos também os mais autônomos, ou seja, os mais exclusivamente consagrados à literatura em si mesma e por si mesma. Seus próprios recursos literários fornecem-lhes o meio de ela- borar contra a nação e seus interesses estritamente políticos, ou

nacionalistas, uma história específica, uma lógica própria, irredutíveis ao político. O espaço literário toma a traduzir em seus termos especí- ficos -estéticos, formais, narrativos, poéticos - as apostas políticas e nacionais: afirma-as e nega-as no mesmo movimento. A lógica lite- rária não é independente das imposições políticas, mas tem seus jogos e desafios próprios que podem permitir-lhe, se necessário, negar sua dependência. Esse processo permite que a literatura invente suas pro- blemáticas e se constitua contra a nação e o nacionalismo, tornando-se assim um universo específico onde as problemáticas externas

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his- tóricas, políticas, nacionais

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só estão presentes refratadas, transfor- madas, retraduzidas em termos e com instrumentos literários: nos lugares mais autônomos, a literatura constrói-se contra as reduções ou as instrumentalizações políticas elou nacionais. É aí que se inventam as leis independentes da literatura e se realiza a construção extraordi- nária e improvável do que se deve chamar a partir de então o espaço internacional autônomo da literatura.

Octavio Paz, 1991,

MUNDO

Ao contrário, esse longo processo histórico no decorrer do qual se conquista a autonomia e se constitui o legado literário8 oculta a origem

"política" da literatura: pode fazer com que se esqueça o laço histórico muito forte que une literatura e nação no momento da fundação nacio- nal, produzindo, assim, a crença de uma literatura completamente pura, liberada da história. É o tempo que permite que a literatura se liberte do tempo e seja pensada como uma prática que escaparia à história. Mas, se ainda hoje, e mesmo nos lugares mais "livres", a literatura continua sendo a arte mais conservadora, isto é, a mais sujeita às con- venções e às normas mais tradicionais da representação - normas de que os pintores e artistas plásticos, principalmente por meio da revolu- ção da abstração, se libertaram, de maneira radical e há muito tempo

-, é porque o laço negado com a nação política, sob a forma da língua, é ainda muito poderoso9.

A autonomia, sempre relativa, toma-se então um dos princípios organizadores do espaço literário mundial. Permite aos territórios mais independentes do universo literário enunciarem sua própria lei, assen- tarem os critérios e os princípios específicos de suas hierarquias

pronunciarem juízos e avaliações justamente em nome de sua autono- mia, contra a imposição das divisões políticas ou nacionais. O impera- tivo categórico da autonomia é a oposição declarada ao princípio do nacionalismo literário, ou seja, a luta contra a política no uni- verso literário. O internacionalismo estrutural das regiões mais literá- rias garante sua autonomia.

Principalmente na França é tal o volume de capital acumulado, a dominação literária que se exerce sobre o conjunto da Europa a partir do século é tão pouco contestada e contestável, que o espaço literário francês se toma o mais autônomo, isto é, o mais livre com relação às instâncias político-nacionais. A emancipação literária pro- voca efetivamente o que se poderia chamar de uma espécie de

Cf. P. Bourdieu, conquête de de l'art. cit., 1992, [Ed. brasileira: As arte. São Paulo, Companhiadas Letras, 1996.1 9. Encontra-se a prova disso principalmente no engajamento dos escritores nos debates

em torna das reformas A defesa da língua nacional como

específico de sua pelos mais conservadores deles, mas também como pro- priedade nacional, da qual se instauram guardiães. evidencia sua dependência política justamente na momento em que pretendem engajar-se precisamente em nome da

cionalização", isto é, um desarraigamento dos princípios e das instân- cias literárias das preocupações alheias ao próprio espaço literário. Desse modo, o espaço francês, já constituído como universal (ou seja, nacional, escapando às definições particularistas), vai impor-se como modelo, não como francês, mas como autônomo, isto é, pura- mente literário, isto é, universal. A particularidade do capital literário "francês" é de ser também patrimônio universal, isto é, constitutivo (e, no caso francês, fundador) da literatura universal e não nacional. É até graças a essa particularidade de serem (ou de poderem ser) universalizáveis. desnacionalizados. aue será . reconhecer os espaços (relativamente) autônomos. O literário é um instru- mento de liberdade com relação às exigências nacionais. É por ser um dos protagonistas mais eminentes do espaço literário francês e um dos grandes introdutores da literatura mundial em Paris, que Larbaud pode enunciar o artigo de fé constitutivo da crença nos grandes cen- tros: "Qualquer escritor francês é internacional, é poeta, escritor para toda a Europa e, ainda, para parte da América Tudo o que é 'nacio- nal' é tolo, arcaico, baixamente patriótico Era bom em circuns- tâncias particulares, mas são tempos passados. Existe um país Europa."

Como vimos, Paris toma-se capital mundial da literatura no de- correr do século em virtude desse mesmo movimento de emanci- pação que, exatamente ao mesmo tempo, desparticulariza. A França é

a nação literária menos nacional, é nessa qualidade que pode exercer uma dominação quase incontestada sobre o mundo literário e fabricar a literatura universal consagrando os textos vindos de espaços excêntri- cos: de fato pode desnacionalizar, desparticularizar, literarizar, portan- to, os textos que lhe chegam de horizontes longínquos para declará-los de valor e válidos no conjunto do universo literário sob sua

Sua ruptura com as instâncias nacionais a conduz a promover no uni- verso literário, contra a lei política das nações e dos nacionalismos, contra as leis comuns das nações, a lei do universal literário: a autono- mia. Sendo o campo literário francês o mais "avançado" na emergên- cia desse fenômeno, tomar-se-á assim ao mesmo tempo um modelo e um recurso para os escritores de todos os outros campos que aspiram à autonomia.

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No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 59-61)

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