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Os revolucionários

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 197-200)

"É de minha revolta contra as convenções inglesas, literárias ou de qualquer outra natureza que resulta a essência de meu talento. Não escrevo em inglês."

James Joyce "Durante longos séculos, as linguas nacionais corretas ainda não existiam De um lado havia o latim, isto é, a e, de outro, as linguas nacionais, isto é, as línguas vulgares O obje- tivo foi atingido, sesprime na

vulgar iissu coaliteratura que não hou- ve, de maneira global, uma separação, uma demarcação entre a literária e a correta o objetivo é produzir prazer e não pureza linguistica podem utilizar qualquer procedimento, realizar tudo o que é realizável, túdu, absolutamênti permitidu! Não existe, portanto, nenhu- ma obrigação de respeitar as normas Pare de pen- sar que você deve defender a lingua nacional correta."

Katalin

Quando os primeiros efeitos da revolta, ou seja, da "diferenciação" literária são sentidos e os primeiros recursos literários podem ser reivin- dicados e incorporados política e literariamente, as condições de forma- ção e de unificação de um novo espaço literário nacional estão reunidas. Um patrimônio literário nacional, mesmo minimalista, pôde ser acumu- lado. Nesse estágio aparecem os escritores da "segunda geração", como James Joyce: apoiando-se nos recursos literários nacionais agora cons- tituídos como tal, vão destacar-se do modelo nacional e nacionalista da literatura e inventar as condições de sua autonomia, isto é, de sua liberdade. Em outras palavras, se os primeiros intelectuais nacionais

recorriam a uma idéia política do literário a fim de constituir um parti- cularismo nacional, os recém-chegados vão recorrer às leis literárias internacionais e autônomas para fazer um outro tipo de literatura e de capital literário existir

O caso da América Latina é exemplar a esse respeito. O período conhecido como o do boom, ou seja, do reconhecimento

dos escritores do continente latino-americano

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após o prêmio Nobel outorgado -, representa o início de uma reivindicação de auto- nomia. A consagração desses romancistas e o reconhecimento de uma especificidade estética permite-lhes se libertarem coletivamente do que Alfonso Reyes (1889-1959) chamava a vocação da literatura hispano-americana e recusarem o puro "funcionalismo" político. "A li- teratura da América espanhola", afirma Carlos Fuentes [...], "teve de superar os obstáculos do realismo plano, do nacionalismo comemora- tivo e do engajamento dogmático. A partir de Borges, Asturias, Carpentier, Rulfo e Onetti, o romance hispauo-americano desenvolveu- se violando o realismo e seus códigos."' A partir dos anos 70, isto é, das premissas do boom, instaura-se o debate dentro desse espaço lite-

rário transacional entre os adeptos da literatura a serviço da causa na- cional e política (na época, na maioria das vezes, próxima do regime cubano) e os partidários de uma autonomia literária. A própria emer- gência desse debate é um indício importante do processo de conquista de autonomia que se põe em marcha então. Desde 1967, Julio

eugajado ao lado dos revolucionários castristas ou sandinistas, mem- bro do tribunal Russell, reivindicava contudo uma posição de autono- mia literária. Escrevia assim em uma carta ao diretor da revista cubana

Casa de Américas após duas viagens a Cuba: "Quando voltei à França após essas duas viagens, compreendi melhor duas coisas. Por um lado, meu engajamento pessoal e intelectual na luta pelo socialis- mo Por outro, meu trabalho como escritor seguiria a orientação que minha maneira de ser nele imprime e, mesmo se num dado momento acontecesse de ele refletir esse engajamento, eu iria fazê-lo pelas mes- mas razões de liberdade estética que me conduzem atualmente a escre- ver um romance que se passa praticamente fora do tempo e do espaço históricos. Correndo o risco de decepcionar os catequistas e os parti-

I. C. Fuentes, "Le roman mman, p. 23

da arte a serviço das massas, continuo a ser esse 'cronópio' que para seu prazer ou seu sofrimento pessoal, sem a menor con- cessão, sem obrigações 'latino-americanas' ou 'socialistas' compreen- didas a priori como

"Excêntricos" no pleno sentido do termo, esses escritores de "se- gunda geração" irão tornar-se os das grandes revoluções lite- rárias: lutam com armas específicas para mudar a ordem literária cstabelecida. Inovam e mudam as formas de maneira notável, os esti- los, os códigos literários mais bem aceitos no meridiano de Greenwich literário, desse modo para transformar em profundidade, para renovar e até para revolucionar os critérios da modernidade e, portanto, as práticas de toda a literatura mundial. Joyce e Faulkner operaram revoluções específicas tão grandes que a medida do tempo literário foi por elas profundamente modificada. Tornaram-se, e em grande parte são ainda, instrumentos de medida, referências que per- mitem avaliar todas as obras que pretendem entrar no universo.

Esses criadores internacionais aos poucos constituíram um con- junto de soluções estéticas que, experimentadas e elaboradas em his- tórias e contextos diferentes, produziram um verdadeiro patrimônio internacional, uma reserva de estratégias específicas para serem usa- das prioritariamente pelos protagonistas excentrados. Reutilizado, reinventado, reivindicado um pouco por todo mundo, o capital consti- tuído de todas as soluções novas para a dominação permite que os escritores refinem e tornem cada vez mais complexas as vias de suas revoltas e de sua libertação literárias. Pelo acúmulo desse patrimônio literário mundial, que permite que todos os dominados re- corram a soluções estilísticas, lingüísticas e políticas e as tomem em- prestado, hoje há uma gama de possibilidades de que os escritores dispõem para reinventar em cada situação cultural, em cada contexto e nacional, sua própria solução (estética, lingüística, for- mal ...) para o problema da desigualdade literária. Os que, como Darío, Paz, ou Benet, vão ao centro buscar (compreender, assimilar, con- quistar, roubar a riqueza e os possíveis literários que até então eram desconhecidos e proibidos, contribuem para acelerar o processo

2 . Citado par C. e C. de de

de constituição de fundo literário das "pequenas" nações. Todos lem- bram que Octavio Paz, compreendendo a necessidade de entrar no jogo, ou seja, de ter acesso a temporalidade central, decidira "partir em bus- ca" do presente "e levá-lo [suas] terrasn3;

...

o moderno estava fora", escreve também, "precisávamos O recurso essencial que Ihes falta é o tempo. Recorrerão, portanto, como os escritores nacio- nais, mas sob outras formas, a estratégias de "caminhos mais curtos", ou ao que chamo aqui de "aceleradores temporais". Os grandes inova- dores literários provindos das periferias do espaço apelarão progressi- vamente, no decorrer do processo de ampliação do espaço literário internacional, para todo o patrimônio "herético" transnacional acumu- lado desde as primeiras revoluções bem sucedidas. A revolução natu- ralista, o surrealismo, arevolução de Joyce ou a de Faulkner fornecerão assim aos excêntricos literários, cada qual em épocas, espaços e con- textos históricos e políticos diferentes, instrumentos para modificar a relação de dependência em que se encontram.

Como os escritores nacionais, fomentadores das primeiras revoltas literárias, se baseiam em modelos literários da tradição nacional, ao contrário, os escritores internacionais inspiram-se, para encontrar uma saída ao encerramento nacional, nesta espécie de repertório

cional das soluções literárias. Por apelarem para valores que têm cotação no meridiano de Greenwich, eles criam um pólo autônomo em um espa- ço até então fechado as revoluções internacionais, contribuindo desta maneira para unificá-lo. Ao mesmo tempo, os escritores mais autôno- mos das "pequenas" literaturas são também na maioria das vezes, como se mostrou, tradutores: importam diretamente pela tradução, ou indireta- mente por meio de suas obras, as inovações da modernidade literária. Nos de grande capital histórico desvalorizado, os escritores inter- nacionais são ao mesmo tempo introdutores da modernidade central e tradutores internos, isto é, os promotores nacionais do capital nacional. moder- no, como dissemos - é também o tradutor de para esta língua.

Uma vez consagrados, os grandes revolucionários são eles próprios desviados, por sua vez, pelos escritores mais subversivos vindos de

3. Octavio Paz, La p. 20.

4. p. 23. O grifo é meu.

espaços desprovidos e integrados aos recursos transnacionais de todos os inovadores literários. Joyce é assim ao mesmo tempo o criador da primeira posição de autonomia dentro do espaço literário irlandês e o inventor de uma nova solução estética, política e sobretudo lingüística para a dependência literária. Existe uma genealogia internacional onde entram todos os grandes inovadores invocados como verdadeiros li- bertadores literários nas regiões periféricas do espaço panteão de grandes homens e de clássicos universalizados (como Ibsen, Joyce ou Faulkner) que os escritores excêntricos podem opor às histórias literárias centrais ou às genealogias acadêmicas dos panteões nacio- nais ou coloniais.

Conjugando uma lucidez de dominados com o conhecimento de todas as inovações estéticas autônomas do espaço, eles podem se de possíveis coextensivos ao universo literário inteiro. Graças à cons- tituição desses recursos internacionais, a gama das possibilidades téc- nicas cresce consideravelmente, e o impensável literário recua. Mais, eles são os únicos a conseguir encontrar e reproduzir o projeto ou a trajetória dos grandes hereges literários, dos grandes revolucionários específicos que, uma vez canonizados pelos centros e declarados clás- sicos universais, perdem uma parcela do que está ligado à sua

cidade e ao mesmo tempo de seu poder de subversão. Só os grandes subversivos sabem reivindicar e reconhecer na própria história, isto é,

na estrutura de dominação do espaço literário, todos os que, coloca- dos na mesma situação que eles, souberam encontrar as soluções que fizeram a literatura universal. Desviam assim em seu proveito os clás- sicos centrais usando-os de uma maneira nova e específica, como Beckett e Joyce fizeram com Dante, Henry Roth fará com Joyce, ou Juan Benet com Faulkner

...

Os revolucionários como Joyce e Faulkners dão aos desprovidos literários novos meios específicos para reduzir a distância que os separa dos centros. São grandes aceleradores temporais, pois suas inovações formais e estilísticas permitem transformar os sinais do despojamento cultural, literário (e muitas vezes econômico) -em "recursos"

5 . Proponho aqui apenas um estudo bem parcial de algumas genealogias heréticas. Seria acrescentar principalmente Luis reivindicado coma mestre por grande número de romancistas, centrais e excêntricos (entre eles

rios e alcançar a maior modernidade. Transformando radicalmente a definição e os limites designados à literatura (o prosaico, o sexual, o escatológico, o jogo de palavras, a banalidade do cenário urbano

...

no caso de Joyce; o despojamento, a ruralidade, a pobreza

...

no caso de Faulkner), permitem que protagonistas excêntricos, e até então excluí- dos de qualquer acesso à modemidade literária, entrem no jogo apenas com seus instrumentos.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 197-200)

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