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A criaçáo de capitais

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 152-157)

Uma das etapas essenciais da acumulação dos recursos

nacionais passa pela edificação de uma capital banco central simbólico, lugar onde se concentra o crédito literário. Barcelona, que se constituiu em verdadeira capital ao mesmo tempo literária e "nacional" da Catalunha, reúne, como Paris, como Londres, as duas características que são provavelmente constitutivas das capitais literárias: uma reputa- ção de liberalismo político e a concentração de um grande capital literá- rio. A constituição dos recursos intelectuais, artísticos e literários de Barcelona data do século e do período em que a cidade se tomou grande centro industrial. que encontrará na Catalunha o apoio necessário para impor o modernismo na Espanha, afirma assim em 1901, em suas crônicas enviadas da Europa: "Essa evolução que se exprime no mundo dos últimos anos, que constitui exatamente o que se chama o pensamento ou novo, nasceu e triunfou aqui [na Catalunha] mais do que em nenhum outro ponto da Península [Os catalães], pode-se chamá-los catalanistas, egoístas, o fato é que são, permanecendo catalães, universais."" No início do século Barcelona conheceu o grupo Els Gats, a arquitetura de Gaudí, teatro de Adriano Gual, a criação de Barcelona, o pensamento de Eugenio constituindo-se assim em capital cultural.

Do ponto de vista político, Barcelona também tomou-se um grande foco republicano no momento da guerra civil, local de resistência con- R. Espana 1901, citado por Torres-Varela, "1910-1914

Espagne", 1913. de la de

L. 1910-1914 Espagne, Paris,

REVOLTAWS

tra a ditadura: a sofreu particularmente a repressão franquista. E foi lá, a partir dos anos 60 e depois 70, que se reconstituiu, apesar da ditadura, uma vida intelectual relativamente autônoma. Grande núme- ro de editoras instalou-se em Barcelona, os escritores, os arquitetos, os pintores e os poetas, catalães ou não, vieram então viver na capital que conseguiu dessa maneira acumular papel intelectual nacional e um papel político: tornou-se uma espécie de enclave demo- crático ou liberal tolerado pelo poder franquista. "Nos anos diz Manuel Vázquez "Barcelona significava até certo ponto, dado o contexto político da Espanha, a inventividade democrática, ali reinava uma atmosfera mais livre que em Madri. Além disso, era, con- tinua sendo, centro de produção editorial mais importante de toda a Espanha e da América Latina." Barcelona torna-se assim a capital lite- rária do mundo hispânico: os escritores latino-americanos também puderam afirmar seus laços culturais e introduzir seus textos na Eu- ropa, sem se submeter politicamente, apoiando-se no pólo barcelonês. A agente literária mais célebre da Espanha, Carmen Balcells, começou sua carreira em Barcelona vendendo para o mundo inteiro os direitos de Gabriel García Márquez; foi por seu intermédio, e em seguida pelo de certos editores catalães, como que os romancistas latino-americanos foram publicados na Espanha nos anos 60 e 70.

Hoje os escritores tentam proporcionar um prestígio literário, uma existência artística à cidade, integrando-a à própria literatura,

zando-a, proclamando seu caráter romanesco. Manuel Vázquez Montalbán foi o primeiro, por Eduardo Mendoza e por uma coorte de jovens escritores castelhanos e catalães (entre os quais Quim a se empenhar por tornar Barcelona um dos personagens cen- trais de seus romances, multiplicando as descrições, as evocações de lugares, de bairros, construindo dessa forma, quase deliberadamente, uma nova mitologia literária a partir de Barcelona.

Joyce procedeu primeiro

em Os depois sobretudo em tratava-se para ele de enobrecer pela descrição literária-e mostramos a importância das des- crições de Paris na constituição da mitologia literária

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a capital irlan- desa e proporcionar-lhe justamente por esse caminho o prestígio que

72. Entrevista inédita autora, março de 1991.

Ademais, para o escritor irlandês, dar uma existência literária a uma capital nacional também fazia parte de uma luta interna ao campo nacional: queria afirmar em ato, na própria escrita, um posicionamento estético e romper com as normas "camponesas" e folclóricas que domi- navam o espaço literário irlandês. O mesmo processo é hoje empregado pelos autores escoceses. Com uma preocupação inseparavelmente polí- tica e literária, eles reabilitam "Glasgow, a Vermelha", capital

da Escócia, à qual tentam proporcionar nova existência literária, contra Edimburgo, a "cidade policiada"", capital histórica tradicional associa- da a todos os clichês do nacional.

Em certos espaços literários nacionais, a autonomia relativa das ins- tâncias literárias pode ser percebida pela presença (e pela luta) de duas capitais, uma

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em geral a mais antiga

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concentrando os poderes, a função e os recursos políticos, onde se escreve uma literatura conserva- dora, tradicional, ligada ao modelo e dependência política e nacional, a outra, às vezes bem mais recente, em geral cidade portuária, aberta para o exterior, ou cidade universitária- reivindicando uma modemidade literária, a contribuição de modelos estrangeiros e pontificando, pelo abandono dos modelos literários caducos no meridiano de Greenwich, a entrada na concorrência literária mundial. É a geral que pode tomar compreensíveis as relações entre Varsóvia e Cracóvia, Atenas e Tessalônica, Pequim e Xangai, Madri e Barcelona, Rio de Janeiro e São Paulo

...

A

das pequenas nações

A lucidez particular dos protagonistas excentrados leva-os a perce- ber e sentir as afinidades entre os espaços literários (e políticos) emergen- tes. O literário comum a eles leva-os a se considerarem mutuamente referências ou modelos históricos, a comparar sua situa- ção literária, a aplicar estratégias comuns reivindicando a lógica do precedente. Nessa lógica, uma aliança das "pequenas" nações - ou melhor, das internacionais das pequenas literaturas - pode

73. H.

livres, 24, outubro de p. 12. 301

se, permitindo-lhes lutar contra o domínio unívoco dos centros. Assim, no início do século, a Bélgica tomou-se para os pequenos países da Europa uma espécie de modelo. Sobretudo os irlandeses, que tentavam escapar da autoridade inglesa e reivindicavam sua própria tradição cultural, viram no exemplo belga a prova do sucesso possível dos peque- nos países em matéria cultural. Também dividida lingüística, política e religiosamente e colocada sob o domínio cultural da França, a Bélgica fomeciaum modelo duas facções em luta: os anglo-irlandeses podiam identificar-se a Maeterlinck ou Verhaeren, poetas que, embora escreven- do em francês, "jamais se confundiram com os homens de letras fran-

, ja os "irlandeses irlandizantes" tinham como modelo Hendrik porque ele empreendera o flamengo. Yeats conhe- ceu Maeterlinck em Paris e nele viu um modelo transponível: líder e teórico do simbolismo, inovador em matéria de teatro e poesia, impondo- se em Paris, ao mesmo tempo em que reivindicava sua pertença à na- ção belga, esse belga de língua francesa de Flandres, que lia o alemão, o inglês e o holandês, era um escritor nacional não nacionalista.

Uma relação do mesmo tipo instaura-se entre a Irlanda e a Noruega, que, como a Bélgica pouco depois, é pelas diversas facções em luta. O modelo de uma pequena nação européia recentemente libe- rada do jugo colonial imposto há séculos pelos dinamarqueses e que uma nova língua da iniciativa de alguns escritores é imedia- tamente retomado pelos nacionalistas católicos irlandeses, adeptos do renascimento do e de uma concentração exclusiva sobre pro- duções literárias de caráter Os intelectuais irlandeses, por sua vez, em primeiro lugar Joyce

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mas também Yeats em outro re- gistro -, adeptos da abertura de seu país para a cultura européia, uti- lizarão a obra de Ibsen como modelo para a introdução da idéia de autonomia literária na Irlanda: o reconhecimento do dramaturgo no- rueguês na Europa é para eles a demonstração de que uma literatura nacional digna desse nome deve, para ter uma cbance de ser reconhe- cida no plano internacional, cessar de se dobrar aos cânones impostos

74. Citado por John Insh Review", in 1913. formes

de de p. 1028.

Ibid.

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pela moral religiosa e pelas exigências populares. Joyce apaixonou-se desde cedo (provavelmente a partir de 1898) por identificou-

se a esse artista exilado voluntariamente (seu fascínio por Dante ad-

quirirá a mesma forma e irá confortá-lo em uma mitologia literária que associa o artista ao exílio) e deu-lhe na arte o lugar - central

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que Parnell assumira para si na vida Aprendeu até o dina-

marquês-norueguês para poder ler o texto das peças de Ibsen. Seu pri- meiro ensaio, Drama and muito inspirado na análise de Shaw em The of escrito após uma discussão com um

de seus condiscípulos que sustentava a tese da decadência do teatro

moderno e da má influência de Ibsen, empenhava-se em demonstrar a

superioridade de Ibsen sobre Shakespeare - verdadeiro atentado con-

tra o panteão nacional britânico

-

e professava a necessidade de pro-

mover o realismo na arte dramática. A admiração de Joyce era assim

uma identificação com esse dramaturgo que, vindo de um pequeno país recém-libertado de uma dominação política e escrevendo em uma língua quase desconhecida na Europa, inventava a forma de uma lite-

ratura nacional inédita e ao mesmo tempo tomava-se o porta-voz da

vanguarda européia revolucionando todo o teatro europeu. Por isso, pode-se ler como a versão dublinense de Peer

Um dos primeiros textos de Joyce é uma crítica violenta da políti- ca teatral de Yeats no The Abbey Theatre. Escrito em 1901, The Day of

the protesta contra a orientação irlandizante do Irish Literary Theatre e contra recorrer-se ao povo como conservatório de lendas e

tradições que seria e Desde as primeiras

linhas, o jovem Joyce traça um paralelo entre a Irlanda e a Noruega: o Irish Literary Theatre é, escreve, "o último movimento de protesto contra a esterilidade e a mentira do teatro moderno. Há meio século, ergueu-se na Noruega o primeiro protesto Ora, o demônio do povo

é mais perigoso que o demõnio da A afirmação do

76. E por motivos bem próximos dos de Shaw.

77. Ellmann, Joyce, Paris, 1987, p. 74.

78. Joyce, Paris, Hachette, 1993, 71-72

Emoutubro de 1901, as peças anunciadas eram

escrito em e uma inspirada . em uma lenda irlandesa, assinada por

Yeats e Diarmuid e R. Ellmann. p. 113.

nio e da modernidade de Ibsen permite que Joyce recuse as posições arcaizantes e conservadoras

-

tanto políticas quanto literárias -, ao mesmo tempo em que recusa o nacionalismo das produções teatrais católicas, que reivindicarão em seguida a estética realista, mas para fins patrióticos e não cosmopolitas. Sua admiração declarada por Ibsen

é uma maneira de todas as suas posições estéticas e políticas. Muitas vezes irá comparar sua atitude distante do nacionalismo políti- co à do dramaturgo norueguês.

Já em 1900, Joyce resume a violência e a importância da luta toda a Europa em torno da obra de Ibsen: "Há vinte anos, Ihsen escre- veu Casa de bonecas", lembra; "essa obra quase marcou época na história do teatro. Desde então seu nome difundiu-se no exterior e deu a volta em dois continentes, provocando mais debates e críticas do que qualquer um de seus contemporâneos. Alguns consideraram-no um profeta, um reformador social e finalmente um grande dramaturgo. Outros atacaram-no violentamente como um importuno, um artista fracassado, um místico incompreensível e, segundo a expressão pitores- ca de um inglês, 'como um cão remexendo em excrementos' É possível perguntar-se se alguém jamais exerceu influência tão pro- longada sobre o pensamento moderno."" Existe, em outras palavras, uma leitura das obras literárias que só pertence aos literá- rios. Estes percebem bomologias e aproximações que os únicos a poder discemir pela sua posição; principalmente, a interpretação de obras excêntricas por excêntricos, que tem todas as chances de ser mais "realista" (ou seja, mais fundamentada historicamente) que a lei- tura central é sempre mal compreendida ou igno- rada devido à ignorância da estrutura mundial de dominação literária. Esse interesse dos escritores de uma "pequena" nação pelos escri- tores de outra "pequena" nação é tanto quanto diretamente político, ou melhor, as comparações são igualmente afirma- ções implícitas de uma homologia política. Se a e a Bélgica puderam desempenhar o papel de referências e modelos para a Irlan- da, foi a princípio a partir de uma visão política que a uma comparação melódica entre as experiências nacionais. Sabe-se assim que certos teóricos políticos irlandeses propuseram aplicar à Irlanda o

81. James Joyce, nouveau d'lbsen". p. 56.

modelo da autonomia húngara dentro do império austríaco. Arthur Griffith um dos fundadores do movimento Sinn Fein, queria transpor para a Irlanda o movimento de boicote do Parlamento austríaco pelos deputados húngaros e os esforços em favor do cimento da língua nacional que haviam resultado em um acordo com a Áustria e numa autonomia política real da Hungrias2.

A aliança manifesta e manifestada de artistas de "pequenos" países contra a univocidade da dominação dos centros pode também ter efei- tos objetivos de emancipação e reconhecimento. Nessa lógica, é possí- vel compreender a trajetória e a história do movimento Cobra- o que permite levantar a hipótese de que os movimentos picturais funcionam, em parte, segundo o mesmo modelo. Na Paris do pós-guerra, que era não apenas a capital da literatura, mas também a da pintura, o

lismo terminal tentava retomar controle e lançava novas excomunhões, em particular contra os surrealistas belgas agrupados em torno de Magritte. Cansado do monopólio da arte e do intemacionalismo que haviam sido confiscados pela velha vanguarda surrealista, um peque- no grupo de artistas belgas, dinamarqueses e holandeses (Christian Dotremont, Joseph Noiret, Asger Jorn, Karel Appel, Constant e Corneille) decide pela cisão e assina em Paris um manifesto intitulado "La cause était entendue", proclamação insolente de independência - "Paris é mais o centro da arte", escreve Dotremont - e a fundação de uma nova comunidade: "É num espírito de eficácia que acrescenta- mos a nossas experiências nacionais uma experiência dialética entre nossos O acrônimo Cobra será portanto constituído das ini- ciais das três cidades que se declaram dessa maneira aliadas e solidárias, novos centros de invenção de uma arte menos fixada como estética sé- ria: Copenhague, Bruxelas e Amsterdã. O questionamento radical da centralidade de Paris pode explicar ein parte a insistência dos Cobras na dispersão geográfica do movimento que pretende ser, pelo seu nome, uma representação do intemacionalismo em ato em oposi- ção à centralização autoritária das instâncias A

82. É que hoje e servem um outro de e referência.

83. cause était citado em

e o movimento serão reivindicados como modernidade e liber- dade. É dessa forma que Joseph Noiret evoca a "prática geográfica da A aliança de três pequenos países que reconhecem um ao outro não apenas um parentesco cultural, mas sobretudo uma posição seme- lhante de marginais e recusados (ou tolerados) nos centros, dará a esses artistas a força de voltar as costas às injunções da vanguar- da parisiense Dizer que Cobra é contra, que Cobra está com raiva, é pouco. Contra Paris, contra os surrealistas, contra Breton, contra o intelectualismo parisiense, as ditaduras estéticas, o estruturalismo, o monopólio da contestação política dada ao Partido Co- munista

...

A liberdade conquistada por Cobra vai afirmar-se em um debate constante com a ortodoxia parisiense. A ausência reivindicada de dogmatismo, em oposição deliberada aos imperativos estéticos de Breton, é ela própria erigida em princípio unificador; assim como a noção da obra como experiência sempre aberta, sempre a ser feita, a multiplicação das inovações técnicas e o recurso a materiais às vezes irrisórios (migalhas de pão, lama, areia, cascas de ovos, graxa...), a recusa de optar entre abstração e figuração ("uma arte abstrata que não acredita na abstração", escreve a escolha da obra coletiva con- tra o culto da singularidade. Em suma, Cobra é construído em uma oposição quase termo a termo à doutrina surrealista e outras opções estéticas então reconhecidas em Paris: Kandinsky, o

lista (em 1949, Dotremont e Noiret polemizam com Les Lettres ou a abstração geométrica de Mondrian. "A unidade de Cobra faz-se sem palavra de ordem", dirá Dotremont e sobretudo na evidência alegre de cores primárias que eclodem como provocação.

A "linha do Norte" foi a orientação determinante de Cobra e tomou- se a trajetória de Christian Dotremont, apaixonado pela Escandinávia

e pela onde criou seus e Esse caráter

nórdico muitas vezes reafirmado deve-se em parte ao avanço teórico dos pintores dinamarqueses. As revistas, criadas antes e durante a guerra em sinal de resistência ao ocupante nazista, mas sobretudo a presença

inarcante de teóricos da arte abstrata inspirados pela Bauhaus, como Petersen - que em 1933 publicou Symboler i abstrakt kunst [Símbolos na arte abstrata] -, tiveram uma influência considerável sobre o desenvolvimento da pintura e da reflexão pictural nos anos 30 e 40 na Dinamarca. Jom, que foi um dos principais teóricos de Cobra, baseia-se nessa herança germãnico-dinamarquesa para dar forma e co- erência a sua oposição grave e alegre. Aatenção à arte popular

desde os primeiros números da revista Cobra é a reivindicação de uma especificidade cultural do assim como a afirmação de uma inventividade, de uma vitalidade e de uma universalidade reais ("A arte popular é a única que é internacional", diz Essa liber- dade popular, afirmada em oposição ao elitismo artístico que consa- grava alguns seres excepcionais, é a mesma que preside à arte bruta (Dubuffet está presente na revista Cobra) com desenhos de loucos e crianças.

A vida oficial de Cobra foi breve: em 195 1, apenas três anos após sua criação, decidiu-se terminar as atividades do grupo. Cada artista desenvolveu sua obra independentemente, e, longe das cóleras origi- nais, inventou seu caminho. Foi no entanto sua recusa comum das im- posições de Paris, mais do que seus laços reais, que permitiu construir aos poucos uma coerência estética. A invenção progressiva de propostas comuns que confederavam e racionalizavam sua contes- tação do centro proporcionou aos poucos ao movimento Cobra uma verdadeira existência estética. Todos esses pintores serão pouco de- pois acolhidos e expostos em Paris. Porque haviam ousado aliar-se transnacional e culturalmente contra a onipotência de Paris em maté- ria de arte, receberão finalmente a consagração das instâncias críticas parisienses.

84. Citado por Richard Cobra, Paris. Nouvelles 1994, 28.

85. Ibid., 49.

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No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 152-157)

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