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Citado por M Riaudel, p 304.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 178-180)

Macunaíma, o anti-Camões

80. Citado por M Riaudel, p 304.

das aporias nas se baseia, consegue contudo superar,

mente pela ironia, a maldição de sair de um povo desprovido. Apesar de sua desilusão (ou de seu realismo), ele tenta de fato proporcionar fundamentos nação brasileira: como na metáfora de Macunaíma e de seus dois irmãos

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branco, negro e vermelho -, que representam as três etnias fundadoras do Brasil e que afirmam, segundo Pierre Rivas, a "vitalidade de um povo jovem e rico em sua diversidade", "contra os mitos eugenistas e racistas anteriores deploram a decadência de um Brasil

Aquele que um dia escreve "sou um índio tupi tocando

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formidável resumo de seu dilaceramento cultural e de sua tragédia ín- tima e coletiva

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só poderia portanto afirmar que ele próprio era um paradoxo vivo. É sob esse aspecto que poderia ser hoje considerado como um emblema de todas as narrativas nacionais funda- doras: esse empreendimento literário múltiplo e complexo, ao mesmo tempo nacional, etnológico, modernista, irônico, desencantado, políti- co e literário, lúcido e anticolonial e antiprovinciano, autocrítico e plenamente brasileiro, literário e leva ao da expressão o nacionalismo constitutivo das literaturas desprovidas e emergentes.

Essa via dissimiladora é portanto a reapropriação "nacional", "po- pular"

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às vezes sob a forma dialetal

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e literária de uma língua central que permite que os escritores exibam diferença. Essa rei- vindicação de uma língua popular falada que tem acesso ao status lite- rário (ou literário-nacional, conforme o caso) consegue afirmar-se em qualquer forma ou grau da dissimilação: simples desvio do sotaque, regionalismo, dialetos ou crioulos. A literarização da língua oral per- mite assim apenas manifestar uma identidade distintiva, mas tam- bém colocar em questão os códigos aceitos das convenções literárias e de linguagem, da correção inseparavelmente gramatical, seinântica, sintática e social (ou política), impostas pela dominação política, lin- güística e literária, e provocar rupturas violentas, ao mesmo tempo políticas (a língua do povo como nação), sociais (a língua do povo

82. et dans in M. de Andrade,

Macounaima, p. 1 1 .

como classe) e literárias. O recurso ao registro da obscenidade princi- palmente, ou da grosseria (o que os críticos da literatura legítima cha- mam de que exprime uma vontade de ruptura e a atuação de uma violência específica, é uma das técnicas mais empre- gadas pelos escritores.

Sabe-se que Walt Wbitman, decidido a romper com os cânones literários ingleses, provoca uma reviravolta não apenas na forma poé- tica, mas ainda na própria língua inglesa, introduzindo em Folhas das folhas da relva arcaísmos, neologismos, termos de gíria, palavras es- trangeiras e, é claro, americanismos. Melhor, é possível afirmar que o nascimento do romance americano coincide com a "invenção" da oralidade na escrita de língua inglesa, com a publicação de As aventuras

de Huckleberry

Finn

de Twain em 1884: a crueza, a violência, o anticonformismo da língua popular rompia em definitivo com as nor- mas literárias britânicas. O romance americano criava sua diferença pela reivindicação de uma língua específica liberada das amarras da língua escrita e das regras das convenções literárias inglesas; sabe-se que Hemingway escreveu a respeito desse livro: "Toda a literatura americana moderna descende de As aventuras de Huckleberry Finn.

Tudo o que se escreveu nos Estados Unidos vem daí. Nada havia antes. Não houve nada tão desde Com As aventuras de Huckleberry Finn, o mundo literário e o público americanos puderam reivindicar verdadeira "americanidade", uma oralidade, uma especificidade e portanto uma diferença que se baseia em todas as va- riantes dialetais do pot, uma alegre distorção iconoclasta da língua pelos ingleses.

Da mesma maneira, se foi possível falar de "Escola de Glasgow" a respeito dos romancistas escoceses que surgiram em 1984, foi porque eles têm em comum o explícito de língua popular, que é tam- bém uma forma específica de reivindicação nacional: ligados ao mo- vimento nacionalista escocês, esses escritores tentam proporcionar uma existência literária a uma língua operária, afirmada como

da "naçáo" escocesa, e isso contra as representações camponesas e bucólicas de uma nação concebida desde Herder como conservatório

Angela Mac Robbie, wet, wet",

de lendas antigas e do gênio de um povo. A grande subversão duzida por James Kelman, por exemplo, é a da importação radical, ou seja, exclusiva, dessa língua popular e urbana para seus romances. man optou por acabar com a convenção (ela também inseparavelmente literária e política) segundo a qual, a partir do momento que se dá a palavra ao povo em um romance, deve-se mudar de registro e de nível de língua. A "nobreza" e o uso literários reservam portanto o estilo dito falado aos diálogos, enquanto o se exprime com a "elevação" literária. Essa convenção, diz Kelman, repousa em um pressuposto ineren- te ao funcionamento social da literatura segundo o qual "leitor e escritor são idênticos, exprimem-se com a mesma voz que a narrativa e são diferentes desses de proletários que dialogam em

Assim, em seu romance The Busconductor ele transcreve o ritmo e o idioma de Glasgow (sem passar pela transcrição fonética como seu compatriota Tom Leonard, por exemplo), e assinala a equivalência entre diálogo e narração pela ausência de e aspas. Kelman recu- sa enfaticamente a qualificação de sua linguagem como "grosseira" e "obscena", apesar da grande freqüência de termos não conformes às convenções literárias em seus textos: como questiona as hierarquias na- cionais e sociais, subverte também a distinção entre as palavras cultas e os palavrões. Sobretudo, permanecendo na língua inglesa, cria uma "di- ferença" ao mesmo tempo social e "nacional" pela exibição e reivindi- cação de uma língua popular, afirmada como especificidade escocesa.

A questão da língua toma-se o motor da formação do espaço lite- rário, o tema dos debates e das rivalidades. Os historiadores da litera- tura brasileira mostraram que a reflexão sobre a língua e a vontade reafirmada por várias gerações de poetas e romancistas de criar uma língua especificamente brasileira em seus usos e em seu vocabulário, fora o principal motor, o catalisador da formação de uma literatura e de um universo literário nacionais. A própria definição da língua, de seu uso e da sua forma, proporciona o conteúdo das primeiras lutas internas. O novo modo de expressão torna-se um tema de debates em

84. "James Kelman interviewed", 1985, p. 77, citado em Liber, 24, p. 14.

85. Edimburgo, Polygon, 1984.

tomo do qual se organiza e unifica o conjunto do espaço. A oposição entre Jorge Amado e Mário de Andrade no Brasil dos anos 30 é carac- terística desse tipo de luta unificadora. Jorge Amado procurou uma via popular em seus primeiros romances de acordo com uma perspectiva diretamente entra para a Juventude Comunista em 1932 e escreve um de seus primeiros romances, Cacau, no final de 32, come- ço de 33, sob a influência, diz, do "romance proletário" soviético que começava a ser publicado e traduzido em algumas editoras de São Paulo. Em seguida, enquanto procura os instrumentos romanescos que lhe permitiriam descrever a miséria dos camponeses e das classes popula- res do Nordeste brasileiro, permanece fiel às convenções neonaturalistas herdadas do romance proletário: "O decisivo para nós foi a Revolução de 1930, que representava um interesse pela realidade brasileira que o modernismo não tinha, e um conhecimento do povo que nós tínhamos e que os escritores modernistas absolutamente não que- ria introduzir no Brasil uma revolução literária que também fosse, inseparavelmente, uma revolução política: nos pretendíamos modernistas e sim modernos: lutávamos por uma literatura brasileira que, sendo brasileira, tivesse um caráter universal; por uma literatura no momento histórico que vivíamos e que se inspirasse em nossa realidade a fim de Amado recusa portanto as opções do modernismo brasileiro que lhe parecem sinais de uma lite- ratura "burguesa" e cuja revolução formal parece artificial porque não pode se prevalecer justamente de uma "autenticidade" popular: "A língua de é uma língua inventada, não é uma língua do povo o modernismo foi uma revolução formal, mas do ponto de vista social não trouxe grande Sabe-se que Synge foi atacado violentamente nos mesmos termos na Dublim do início do século e que foi acusado de levar ao palco do teatro uma falsa língua do povo: ela era recusada ao mesmo tempo como não correta do ponto de vista das normas nacionais e não aceitável do ponto de vista das representa- ções políticas do povo.

86. Cf. Política e Rio de Janeiro, Campus. 1979.

87. Jorge Amado, Alice p. 38.

88. Ibid., p. 20. O grifo meu.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 178-180)

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